O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O tributo da memória: Ditadura de ontem e juristas ainda hoje

O conhecido tributarista Ives Gandra da Silva Martins publicou na Folha de S.Paulo de 16 de março deste ano um artigo altamente elogioso do governo da Presidenta Dilma Rousseff, o que contrasta com os pronunciamentos desse jurista sobre o governo anterior do Partido dos Trabalhadores. O artigo pode soar a alguns como uma espécie de mea culpa eleitoral.
Quanto a mim, encontro no texto sinais inquietantes de negacionismo no tocante ao passado recente do Brasil: a ditadura militar.
Creio que o renomado jurista está corretíssimo em afirmar que "aqueles 20 anos de governo militar" não foram apenas anos de chumbo. O tributarista não chega a tratar do tema, porém se deve lembrar que o governo autoritário tinha um braço militar e outro civil. Não se trata apenas do partido governista, a ARENA. Sem o apoio milionário do empresariado, a repressão política e a propaganda governamentais não teriam sido tão eficientes.
O chumbo não era a única arma do regime, de forma alguma. Os meios de comunicação engajados no autoritarismo cumpriram bem sua tarefa de louvar generais e arenistas e de condenar ou silenciar - uma espécie de complemento jornalístico do pau-de-arara - os opositores.
Um dos dedos desse braço civil eram os juristas militantes do regime autoritário. Na época, atuavam para negar o caráter ditatorial do governo, criando uma fumaça de "estado de direito" para embaçar a visão do povo brasileiro e da sociedade internacional.
E o que dizer daqueles que afirmam terem sido contrários a ditadura, mas hoje diminuem ou negam os crimes daquele regime? Esses não estão, mesmo involuntariamente, a colaborar com a nostalgia das fardas?
Infelizmente, foi exatamente isso que o célebre tributarista fez ontem. Ele escreveu, no artigo publicado pela Folha, que o Supremo Tribunal Federal "então constituído de notáveis juristas, nunca se curvou ao Poder Executivo, e este nunca pressionou o pretório excelso."
Fica vilipendiada, portanto, a memória de três dos maiores juristas brasileiros, que foram afastados do Supremo Tribunal Federal por meio do Ato Institucional nº 5 (de 13 de dezembro de 1968): Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal foram aposentados compulsoriamente com base neste artigo:

Art. 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.


A aposentadoria compulsória veio em 1969, com base no artigo 9º do AI 5, que também suspendeu o habeas corpus. Não havia direito de defesa contra os atos arbitrários da presidência; como em outros AI, impedia-se a apreciação judicial de "todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos." (art. 11).
O Supremo Tribunal já havia sido atingido pelas medidas de exceção. Por meio do artigo 6º do AI 2, de 27 de outubro de 1965, a ditadura havia aumentado a composição do Supremo Tribunal Federal em mais cinco Ministros: foi a forma que Castello Branco encontrou para intervir na Corte - desde 1964 a chamada "linha dura" pressionava para que houvesse modificação na composição do STF, a despeito dos protestos do Ministro Ribeiro da Costa, então Presidente da Corte (ele morreria em 1967, antes do AI 5).
Alguns anos depois, Costa e Silva percebeu que a medida não tinha sido suficiente, pois os novos Ministros não agiam como partidários do governo (também Ives Gandra da Silva Martins comenta esse fato em artigo que escreveu com Arnoldo Wald, "As nomeações para o STF", na Folha de S.Paulo de 30 de março de 2006), e que, segundo os consideranda do AI 5, "os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la".
A natureza essencialmente ilegal da ditadura militar revelou-se também nesse momento: nem mesmo o direito de exceção criado pelo regime era cumprido pelo poder.
Com o afastamento dos três Ministros, pediram aposentadoria Antonio Gonçalves de Oliveira, o presidente do Tribunal, e Lafayette de Andrada; dessa forma, o STF voltou a ter 11 membros, o que foi referendado pelo artigo 1º do AI 6, de 1º de fevereiro de 1969. O AI 6 também interveio reduzindo a competência do Tribunal, para que não julgasse habeas corpus em crimes políticos.
Emília Viotti em O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania erroneamente afirma que os três Ministros foram aposentados a partir do AI 6. Esse engano já foi esclarecido outras vezes; o Ministro Luiz Gallotti, por exemplo, declarou para Osvaldo Trigueiro do Vale, em O Supremo TRibunal Federal e a instabilidade político-institucional: "Aquelas três aposentadorias não se seguiram ao Ato Institucional n. 6 (1-2-1969). Foram anteriores a esse Ato e baseadas no Ato Institucional n. 5."
A Corte já estava enquadrada e com a competência reduzida, o que talvez seja um dos motivos de sua jurisprudência contrária aos direitos humanos na década de 1970, que tive a oportunidade de estudar em minha tese.
Seria adequado considerar que aquele que nega a memória e a verdade sobre o período é um ex-combatente da ditadura?
Em outros textos, Ives Gandra da Silva Martins parece desconhecer que houve a Guerrilha do Araguaia, afirmando que a guerrilha, "de rigor", terminou em 1971. Claro que, se nunca existiu, ela não poderia ter deixado desaparecidos... E as Forças Armadas nada teriam a explicar.
O absurdo histórico de afirmar que o projeto de lei de anistia "foi amplamente negociado" foi referendado pelo insigne tributarista, ao elogiar o julgamento do STF, em abril de 2010, favorável à lei de anistia aprovada no governo de Figueiredo.
No último artigo publicado pela Folha pelo destacado tributarista, também se lê que a OAB lutou pela democracia, o que, no entanto, somente é verdade a partir da década de 1970. Antes disso, os juristas que advogavam em favor de presos polítcos não costumavam encontrar guarida na instituição, nem mesmo nomes como Sobral Pinto, Heleno Fragoso e Evaristo de Morais Filho - presos após a aprovação do AI 5. A OAB calou-se, na época, a respeito desse ato institucional. E ela, assim como outras instituições, não havia se oposto ao golpe militar. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que foi mais corajosa, percebeu antes o caráter autoritário do regime e protestou contra o AI 5.
De que forma explicar tais erros? Como o douto jurista, em artigo contrário à Comissão da Verdade (que investigaria os crimes da ditadura militar), recentemente chegou mesmo a atribuir a Rawls um livro que este nunca escreveu ("Direito e democracia" é o título da tradução brasileira de um original de Habermas, Faktizität und Geltung), creio que o tema lhe provoca fortes emoções (afinal, ele viveu essa época) e chega a lhe obnubilar, em certos instantes, o saber jurídico e histórico tão louvado entre os tributaristas.
Lembro agora de meu favorito entre os grandes juristas brasileiros do passado, em palestra de 1980 (o que explica o cuidado em chamar o golpe de revolução):

Naqueles primeiros anos da Revolução de 1964 não havia, em algumas áreas do Governo, a nítida compreensão - ou aceitação - de que o papel do Supremo Tribunal Federal não era interpretar as normas constitucionais, institucionais ou legais de acordo com o pensamento ou interesse revolucionário, mas interpretá-las consoante o seu próprio entendimento. Havia reservas, menos ou mais explícitas, à independência do Judiciário [...]
Mais tarde, certamente, o sistema jurídico da Revolução se foi desdobrando para cobrir a superfície até então ocupada pelo direito anterior, que era de inspiração liberal. E também se ampliaram as situações em relação às quais ficou obstada a apreciação judiciária de atos do Governo. (LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público e outros problemas. Brasília: Imprensa Nacional, 1999, vol. II, p. 267-268)

Ele não chegou a viver para descobrir que o próprio Tribunal renunciaria, em 2010, à apreciação judiciária dos atos do governo que o aposentou da Justiça e da Universidade. E que a democracia atual está ligada ao fato de que, formalmente, não se necessita mais da ditadura - a renúncia judicial é voluntária.

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