O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Censura e o "estado do direito" na ditadura militar: o jornal Ex e o Cardeal Arns

Citei em outra postagem trechos do jornal Ex, que não teve medo de noticiar a morte do jornalista Vladimir Herzog nas mãos da repressão, e foi fechado pela ditadura militar.
Deixei, no entanto, de indicar que, além da publicação em papel, fac-similar, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, ele pode ser lido no portal Memórias Reveladas.
Na edição especial (um arquivo pesado em vários sentidos) que o jornal publicou no fim de 1975, há uma chamada ousada e engraçada na primeira página: sobre a foto de um carrasco, a primeira linha traz "Censura/ Burrice/ Mortes". Há outras maldades, que não mencionarei.
Nesse número, encontramos, entre outras matérias, um anúncio fúnebre da morte de "H. Kissinger", entrevista com Zé Celso (que já planejava montar Os Sertões!), Nixon vestido de presidiário (o que incomodaria as autoridades brasileiras), matéria sobre tortura (um experimento científico nos EUA), matéria feita com dois censores, Álvaro Vieira e Sampaio Mitke, dos tempos de Getúlio, que dão depoimentos a Domingos Meirelles.
Uma história interessante contada por Vieira foi a de Assis Chateaubriand pedindo ao censor que liberasse a notícia, com foto, de Francisco Campos (então ministro da educação, depois ministro da justiça de Vargas) em passeata com fascistas. O censor assentiu e foi suspenso em represália. Era a censura prévia, que existia desde antes do Estado Novo.
Mitke declarou: "O Estado Novo, como todos os regimes de exceção, necessitava da Censura como o ar que seus governantes respiram. Esses regimes são frágeis, pela sua própria natureza, que sem ela eles não conseguiriam sobreviver."
Em termos arendtianos, digamos que esses regimes dispõem de muita violência, mas de pouco poder.
A censura teria uma vida longa, tanto a de costumes quanto a política (cujas fronteiras podem confundir-se, como se viu com a Tropicália, a Contracultura...). Mesmo um governo relativamente democrático como o de Juscelino Kubitscheck recorreu à censura política. A ditadura militar recrudesceu-a em sua efetivação ilegal mesmo diante da legislação do período, como já expliquei alhures.
Como o direito, em seu formalismo, delimita competências e deveres, o comum é que regimes autoritários não consigam cumprir sua própria legislação. O direito nunca é completamente cumprido, claro, pois as normas jurídicas são criadas exatamente para aquilo que pode ser violado - o que não pode sê-lo não precisa delas (inexistem normas, por exemplo, proibindo urinar em Marte). Governos democráticos também violam-no, mas neles os tribunais podem funcionar...
Nos regimes autoritários a violação sistematiza-se de forma que não podem ser caracterizados como "estados de direito". Em que o estado o direito fica nesse caso? Nos Atos Institucionais tinha-se o cuidado de limitar ou excluir a competência judicial no exame dos atos arbitrários do regime - ou de alterar competências, como foi o caso da atribuição da Justiça Militar em julgar civis em crimes contra a segurança nacional e contra as instituições militares, instituída no AI 2.
Por isso, para negar (ou diminuir) o caráter ditatorial do regime militar no Brasil, uma das estratégias é dizer que a justiça funcionava perfeitamente, como fez Ives Gandra da Silva Martins.
A edição extra de setembro de 1975 do jornal Ex publicou uma entrevista com o Cardeal Paulo Evaristo Arns - um homem corajoso, todos o sabem, e inteligente:

Nós pedimos uma vez que fosse definido - os bispos todos em reunião pediram ao então Ministro da Justiça, que era aliás, como se chamava ele? Buzaid. Pedimos que ele dissesse o que é subversão política. Nunca foi definido. É certo quem colabora para que se esclareçam as coisas, não deve ser considerado subversivo.

O problema não estava, claro, nas maiores ou menores luzes de Alfredo Buzaid, que, na época, era ex-integralista (em 1975, no velório de Plínio Salgado, fez um elogio fúnebre ao ideólogo do integralismo) e também processualista, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, ex-diretor da faculdade de direito da USP, ex-Vice-Reitor e ex-Reitor em exercício da USP etc. Mais adiante, ainda seria, por dois anos e pouco, até aposentar-se, Ministro do Supremo Tribunal Federal (a nomeação para o STF de próceres do regime próximos da aposentadoria aconteceu mais de uma vez).
O silêncio desse notável medalhão do direito e da política brasileiros tinha uma função política, como bem viu Arns. O que interessava à ditadura? Justamente não esclarecer - tal é a esfera pública permitida em regimes quejandos.

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