O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 14 de março de 2011

"Há mais poetas que homens" e o fascínio atropelador pela máquina

A alma encantadora das ruas continua a ser um livro encantador. João do Rio recolhe suas crônicas sobre o Rio de Janeiro do início do século XX, que era, evidentemente, uma outra cidade.
Acho que o caráter especial (tantas vezes mistificado) da cultura carioca vinha de contatos menos segregacionistas entre as diferentes classes. No Rio de Janeiro, ainda hoje, encontram-se favelas nas "áreas nobres": Vidigal, Pavãozinho, Rocinha... A segregação, em termos territoriais, ocorre de forma diferente do que acontece no Município de São Paulo.
Em outras épocas, Tom Jobim, rapaz de classe média, pôde ter contato com músicos populares; Villa-Lobos, também. Esses intercâmbios entre classes dinamizaram a cultura carioca.
Como as fronteiras internas da cidade cesceram dramaticamente, interditando ainda mais territórios de um grupo a outros grupos, creio que se pode dizer que Rio de Janeiro não há mais, naquele sentido antigo, mesmo com tudo de ilusório que aquela integração apresentava. A sociabilidade do bunker talvez esteja a conformar o novo caráter do carioca.
Escrevo isto, no entanto, não por causa da cidade, mas por causa de poetas. Em um dos momentos mais interessantes do livro (que deve ser lido, aconselho, na edição da Crisálida, com o notável trabalho de pesquisa de Oséias Silas Ferraz), João do Rio visita a prisão e começa a crônica com uma frase que, para muitos, ainda hoje, não é nada óbvia: "O criminoso é um homem como outro qualquer."
João do Rio teme os condenados cínicos, porém. O que ele vai pesquisar? A poesia feita pelos presos. Afinal, todos fariam versos no Brasil. Para mostrar a humanidade dessas pessoas, cita diversos versos dos presidiários; alguns eram repentistas.
A crônica é "Versos de presos", de 1905. Ele a conclui descrevendo um encontro com poeta (livre) no bonde. É um jovem escritor que chama os poetas velhos de "animais" e prossegue a diatribe querendo condená-los juridicamente: "Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com castigos corporais uma vez por mês!"
João do Rio termina: "Mal sabia ele que a Detenção já estava cheia."
A frase é terrível. Alguns poetas brasileiros não chegariam nem mesmo à condição humana? Estariam abaixo dela? Desconheço. Certo é que muitos não chegam à condição de leitores, nem mesmo de poesia.
Trata-se de casos em que o fascínio por si mesmo estende-se às suas próprias produções, mesmo as poéticas, mas não chega à poesia (talvez porque suas produções em versos, elas mesmas, não atinjam o estatuto de poesia).
Esse descaso pela arte não pode ser verificado nos autores que se engajaram no livro POA 2502, que reúne diversas formas: conto, poema, foto, cartum... O livro, disponível gratuitamente na internet, foi produzido em resposta ao atropelamento coletivo de ciclistas da Massa Crítica em Porto Alegre, que aconteceu em 25 de fevereiro deste ano.
A escritora Ana Rüsche, uma das editoras, convidou-me para participar com algo, mas eu nada tinha e não consegui produzir no prazo de três dias. Divulgo a iniciativa, porém, aqui.
Alguns dos escritores, como Eduardo Sterzi, enviaram textos já publicados alhures (um dos momentos mais fortes de Aleijão - a fronteira da cidade é desenhada no corpo a chutes). Outros, entre os quais se inclui Renan Nuernberger, produziram especialmente para o projeto.
O poema de Nuernberger confirma as características que pude ler na sua poesia: ele conhece a história da literatura e escreve com um olhar de crítico literário. Além de citar a expressão popular que acabou em música, "Nóis capota mais num breca" (poetas que só leem poesia podem ser humanos, mas tendem a ser chatos...) faz uma analogia entre o deslumbramento de Marinetti pela máquina e o "macho alfa" atropelador.
É possível que o horizonte do fascismo seja comum às duas figuras.
O fascínio atropelador pela máquina? João do Rio certamente não iria intitular, hoje, se vivo fizesse suas incursões pela cidade, seu livro de "A alma encantadora das ruas". Entre 1905 e 2011, surgiram na cidade os personagens motorizados de Rubem Fonseca, que desejam tirar algo essencial do direito à cidade, a circulação, dos que não podem (e há os que podem e não querem, o que irritou certa jornalista, conservadora, de periódico de São Paulo) adquirir os caros motores do transporte individual.
A segregação entre as classes manifesta-se também na mobilidade urbana. E há, mesmo ao volante, mais máquinas do que homens.

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