O subtexto era francamente francófilo: Janequin celebrou uma vitória dos franceses contra os milaneses (e seus mercenários suíços) em Marignan, e a Marselhesa é citada por Villa-Lobos em sua sinfonia inspirada pela 1a. Guerra Mundial.
Além da desorganização da Sala de São Paulo, que só abriu um de seus portões para a multidão, o que gerou uma fila enorme e fez vários entrarem depois do último sinal, o início do concerto foi marcado pelo que corresponde à concepção que um maestro ordinariamente pode ter de "diálogo": um monólogo em que ele detém o microfone e todos os outros só ficam a escutar.
Assim Karabtchevsky caracterizou sua fala: diálogo. E pensei que, se algum ocorria, era com o tempo: sim, pois não era esse o maestro que, para a Diapason na versão brasileira (revista muito boa, que lamentei desaparecer), no número de julho/agosto de 2006, disse que a OSESP não era a melhor orquestra brasileira, e sim a "melhor orquestra dos países do Leste europeu"? Não era esse o maestro que já caracterizou as sinfonias de Villa-Lobos como algo menos interessante na obra desse compositor?
Ele falava com o tempo, que o mudou para melhor. O maestro também aproveitou a oportunidade para elogiar a plateia de São Paulo com palavras análogas às que já vi usar algumas vezes no Rio de Janeiro (sobre o público carioca, claro), e já o fez em Porto Alegre.
Há algo de belo, porém, em considerar que a melhor plateia é aquela que temos diante de nós: o elogio do presente. Aí também havia um diálogo com o tempo, e não demagogia, claro.
Sua adesão às sinfonias de Villa-Lobos também não me parece, de forma alguma, oportunismo suscitado pelo convite do diretor artístico da OSESP para gravá-las, e sim fruto de uma redescoberta do autor, que vem ocorrendo mais de cinco décadas depois de sua morte. Até Willy Corrêa de Oliveira, depois de algumas décadas, conseguiu descobrir que Villa-Lobos é um grande compositor!
Não sei o que levou o diretor artístico da orquestra à aparentemente estranha decisão de escolher um maestro cujas interpretações de Villa-Lobos já foram contestadas (refiro-me à integral das Bachianas), e que nunca interpretou as sinfonias. Mistérios da arte. Talvez a integral planejada das sinfonias venha, de fato, a ocorrer e até ser boa. Vejam que a melhor gravação da Tosca , ópera de Puccini, foi realizada com uma cantora que nem gostava do papel. A arte consegue manifestar-se nos locais mais inesperados.
O que deve ser apontado como duvidoso, em toda essa empreitada, é a propaganda oficial da OSESP de que finalmente as sinfonias seriam intepretadas com as partituras corrigidas.
Sendo as instituições brasileiras tudo o que são e ainda menos, não temos, em geral, edições confiáveis da obra de Villa-Lobos, isso para as peças editadas. É claro que a pressa e a falta de organização do compositor colaboraram para o quadro, mas as décadas que se passaram desde a sua morte deveriam ter dado tempo para um cuidado muito mais efetivo. O descaso e também o ódio do Brasil à própria memória são, de fato, históricos.
Lembro de Gilberto Mendes dizendo que Villa é maior do que o Brasil. Frase muito boa, embora contraditória: ele é maior, sendo ele mesmo parte do país? Entendo a frase desta forma: ele é muito maior do que o Brasil oficial e institucional (e ele só foi em parte institucionalizado por seus defeitos) e, por isso, a primeira gravação integral das sinfonias foi realizada por um maestro estadunidense com uma orquestra alemã: Carl St. Clair regeu a Orquestra Sinfônica da Rádio SWR de Stuttgart para a gravadora CPO.
Esses discos eram relativamente fáceis de achar no Brasil, embora não tenham sido lançados aqui - as geniais gravadoras (aliás, as multinacionais do disco que operam no Brasil) provavelmente não viram relevância para o mercado brasileiro em primeiras gravações de obras do maior compositor nacional...
O diretor artístico da OSESP não ignora, evidentemente, que essa integral já foi gravada (em um exemplo que a melhor saída para a grande música brasileira continua a ser o aeroporto), mas afirma que o trabalho da OSESP será o primeiro a partir de uma edição "revisada e definitiva".
Curiosa afirmativa, cujo sentido não consigo apreender por dois motivos: em primeiro lugar, achar que teremos uma revisão "definitiva" com a OSESP parece muito ingênuo (se a probidade de Nestrovski não fosse tão conhecida, poderia se achar que se trata de puro marketing). Afinal, sempre haverá lugar para novas decisões e novas intepretações sobre como devem ser lidos os manuscritos e as partituras de Villa-Lobos.
Em segundo, pessoas ingênuas podem achar que St. Clair gravou Villa-Lobos sem ter feito o indispensável trabalho musicológico, e que só a OSESP é que tomará tal medida. Nada disso! Dou-me o trabalho de citar as declarações do maestro na edição de novembro de 2009 da revista Concerto:
Nós tínhamos um time de cinco bibliotecários e assistentes, cuja única responsabilidade era me apresentar as discrepâncias entre as grades da orquestra e as partes de cada instrumento. Em algumas sinfonias havia literalmente entre 20 e 30 páginas de contradições, a respeito das quais eu tive que decidir.
Tal é o estado em que foram deixadas as partituras. O maestro Roberto Duarte, conhecido intérprete de Villa-Lobos, tem realizado também um exaustivo trabalho de revisão das partituras desse compositor.
A OSESP conseguirá, apesar desses sinais contraditórios enviados à imprensa, realizar uma boa integral das sinfonias? Apostemos que sim, seria uma derrota para o Brasil não conseguir gravar essa música; seria manter o esquecimento em que o país deixou essas partituras. E tal esquecimento nega o diálogo com o tempo.
Lembro do breve concerto de sábado. Mas não vou me referir à interpretação da Sinfonia, e sim à peça de Janequin, que não soou de forma ideal (creio que Naomi Munakata, a regente titular do Coro, teria feito ainda melhor do que Karabtchevsky). Depois das onomatopeias (em que Janequin é mestre, mestre: ouçam o Canto dos pássaros!) retratando os ruídos da batalha, o texto termina com "Victoire au noble roy Françoys/ Escampe toute frelore bigot."
Ora, a frase "Escampe toute frelore bigot", que tem, entre outros sentidos, o de "Foge, tudo está perdido, carola" (bigot vem do normando do século XII e significa "por Deus", e logo virou insulto em francês; o verso é genialmente polissêmico, pois também alude a uma dança) ficou perdida entre as vozes: a vitória não soou como deveria.
Ouçam estes grandes músicos, realmente vitoriosos.
Excelente artigo, Antônio. Como sempre.
ResponderExcluirSeus comentários sobre música erudita vale por cursos inteiros.
Abraços