A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou em dois de março de 2011 o parecer do Senador Flexa Ribeiro, que lembra que a justificativa do autor do projeto, Senador Paulo Paim, era
[...] a ampliação da área de atuação dos historiadores inicialmente restrita à pedagogia, a questões culturais e ao patrimônio histórico. Hoje esses profissionais atuam, entre outras áreas, no âmbito industrial, na consultoria relativa ao histórico de produtos; no turismo, desenvolvendo roteiros turísticos para visitas a locais históricos e culturais; na comunicação, recolhendo e organizando informações para publicação e produções e nas artes, fazendo pesquisa de época para elaboração de roteiros teatrais, cinematográficos e televisivos.
Eles podem atuar nessas áreas, certamente; mas por que somente eles deveriam nelas trabalhar? Trata-se da criação da reserva de mercado, almejada pelo malfadado projeto.
Praticando a difícil arte de não conseguir tirar consequências lógicas dos fundamentos expostos, o Senador Flexa Ribeiro prossegue:
A doutrina constitucional e trabalhista defende a não ingerência excessiva do legislador no exercício das profissões. Regras excessivas e restrições insensatas acabam beneficiando pequenos grupos corporativos que acabam supervalorizando o próprio trabalho em relação ao trabalho de igual valor de outros profissionais. São consideradas exceções as atividades que envolvem a saúde, a segurança e a educação dos cidadãos. Nesses casos, a omissão do legislador pode permitir que pessoas inabilitadas, no exercício profissional, coloquem em risco valores, objetos ou pessoas.
Que relação tem isto com o turismo, o desenvolvimento de produtos e as telenovelas? Disso, o Senador conclui:
No caso dos historiadores é inegável que eles exercem um papel relevante na sociedade, com impactos culturais e educativos capazes de ensejar a presença de normas regulamentadoras do exercício profissional. Ademais, a inexistência de uma regulamentação pode permitir que o campo de atividade desses profissionais seja ocupado por pessoas de outras áreas, muitas delas, com profissões regulamentadas, mas sem as qualificações necessárias para levar a bom termo o trabalho com objetos e assuntos históricos.
Apenas este parágrafo. Um só. É claro que, se o nobre Senador fosse escrever mais e fazer realmente alguma análise da matéria que lhe coube relatar, a conclusão teria que ser contrária. É notável a ligeireza no trato da Constituição (em uma comissão, nota-se, dedicada ao direito constitucional), mas é comum que, no Poder Legislativo, os pareceres sejam sumários a esse pronto, de tão concentrado e conciso é o respeito à constitucionalidade.
Eu havia escrito sobre a atuação dos historiadores como consultores dos meios de comunicação, mas a Comissão foi favorável a retirar a expressão, nos termos da emenda do Senador Álvaro Dias, "em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de Televisão" do inciso II artigo quarto do projeto porque "excessivamente detalhista e enumeratório, o que depõe contra a generalidade, clareza e precisão da norma." Terá sido caso do lobby das tevês?
O sumário parecer do Senador Cristovam Buarque (na Comissão de Assuntos Sociais, que não deliberou ainda) também segue a emenda para, "retirar elementos que poderiam, no futuro, impedir os historiadores de exercer plenamente suas atribuições, razão pela qual deve ser acatada." Isto é, não limitar a campo algum essa reserva.
Falta ainda aprovação nas Comissões de Assuntos Sociais e de Educação. Depois, se isso ocorrer, ainda terá que seguir à Câmara dos Deputados.
Por que esse monstrengo regulatório não deve ser aprovado? Deve-se lembrar que tudo que tem natureza social possui caráter histórico. A amplitude do projeto em criar reserva de mercado para os diplomados em história é tamanha que poderá fazer com que os doutores em letras, na área de concentração de teoria e história da literatura, sejam impedidos de lecionar história da literatura por não terem feito o doutorado em história. Um doutor em artes não poderia, por exemplo, dar consultoria sozinho para uma exposição sobre o surrealismo; teria que pedir para um formado qualquer em história assinar com ele o trabalho. E assim por diante.
Outro elemento risível dos pareceres do Legislativo é apontar que haveria um dano ao país se pessoas não formadas em história atuassem nessa área. Isso é fundamental porque, sem afirmar tal enormidade, ter-se-ia que reconhecer que o projeto é inconstitucional, já que o princípio geral é o da liberdade de profissão.
Pergunto, portanto: que prejuízos nos causou Evaldo Cabral de Mello, que nunca concluiu um curso de graduação? Que historiador diplomado no Brasil é melhor do que ele? Que danos ao nosso país provocou Alberto da Costa e Silva?
Será que os historiadores que inspiraram esse projeto estão simplesmente querendo eliminar a concorrência de profissionais mais capazes? Conseguindo, com uma canetada legislativa, impedir que outros possam vasculhar o campo comum da memória? E existem ladrões maiores do que aqueles que se apossam do comum?
Os doutos legisladores que estão aprovando em comissões o projeto simplesmente ignoram que significativa parte da melhor história no país não é ou não foi feita por diplomados nessa área?
Esse projeto não está realmente preocupado nem um pouco com a qualidade da história no Brasil, e sim com a reserva de mercado, que vai se meter até com os profissionais de turismo - já que até mesmo a elaboração de guias turísticos precisarão da consultoria de diplomados em história...
A profunda ignorância na matéria, claro, é o que habilita os nobres legisladores a aprovarem projetos corporativos como esse. Com tal natureza corporativa, poderia não ser nocivo ao bem comum?
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