Não é a primeira nem a última vez que se usa a linguagem das commodities para falar de literatura. Foi-me instrutivo descobrir, no entanto, que a literatura portuguesa, marcada pelo exílio (Jorge de Sena), não era antes "internacional", o que certamente fez com que Lobo Antunes e até Saramago não sejam conhecidos alhures (nem Pessoa, que é uma geração ainda mais arcaica e comia dobradas à moda do Porto em vez de Burger Prince).
É interessante que tal geração proponha ajudar a balança de pagamentos portuguesa. No entanto, a postura do jovem ficionista luso e internacionalista pode ser considerada velha e provinciana. Lembro de quando, no Brasil, não havia mercado editorial e, sufocados por uma cultura francófila, os jovens escritores brasileiros do século XIX e início do XX sonhavam em publicar em Paris; muitos livros eram impressos lá, em razão da inexistência de uma verdadeira indústria editorial no Brasil. Mas não eram lidos na Europa.
Nesse mundo editorial onírico, os livros teriam que evitar qualquer brasileirismo ou referência ao Brasil. Isso é provinciano.
O provincianismo revela-se na rendição suplicante aos grandes centros conjugada à negação da geografia, da cultura, da língua - por exemplo, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida escreveram uma peça insignificante diretamente em francês, e Villa-Lobos fez cantar ainda na Semana de Arte Moderna umas chansons nada memoráveis que escreveu.
Villa-Lobos e Oswald de Andrade encontrariam suas formas de inventar o Brasil (mas não Guilherme de Andrade, com seu ilegível Raça).
Rui Manuel Amaral, autor que eu não havia lido antes, parece-me "internacional" por outro motivo: ele pertence a uma família espiritual de escritores cujo humor oblíquo desloca o leitor para uma zona excêntrica que simultaneamente afirma e nega o mundo. Lendo esses autores, somos sempre jogados ao estrangeiro e sem passaportes. Em vez de escreverem a partir da ambição de serem aceitos por Paris e Nova Iorque, fazem-no a partir de um desterro universal, que talvez seja a forma de cosmopolitismo mais adequada para a literatura.
Imaginem o que teria feito um escritor comum de ficção científica com isto:
Um clarão vindo de lado nenhum e - zás! - Marcus Kottkamp desapareceu. Assim sem mais.
Tudo isso se passou num brevíssimo instante, por volta das dezoito horas e quarenta minutos. Nunca se conseguiu descobrir que coisa foi aquela e, sobretudo, o que veio a ser feito de Marcus Kottkamp. Ora vemos uma pessoa, ora deixamos de a ver. (p. 99)
Logo estaríamos em contato com a antimatéria e abduções de seres pós-galácticos. Já um seguidor de Paulo Coelho descobriria a ação de espíritos oriundos de dimensões aparentemente sutis do universo. Rui Amaral prefere a literatura, que ora vê, ora deixa de ver.
Esse procedimento, paradoxalmente, deixa a escrita próxima do absurdo cotidiano. Não pude deixar de lembrar de Monterroso, que também discordava do mundo em ficções curtas.
Uma história exemplar é a de Christoph Robbé, que perdeu todos os dentes em um só dia. O escritor não perde tempo em explicar como e por quê ocorre a debandada odontológica - seria vulgar neste contexto, bem como um sinal de apego à ciência ou à providência.
Chegou, por fim, a noite, mas também não trouxe nada de bom. Sobrava um único dente. Um triste, desolado e solitário canino do lado direito. Foi quando ocorreu aquele clarão branco. E o dente voou, de alma tão leve como sombra de borboleta, para muito longe. (p. 48)
E assim se foram, para mais longe ainda, ciência e providência. Ficamos só com a literatura: "Sozinha em casa, a língua deu sete pulos de contente." (p. 82).
P.S.: Rui Manuel Amaral escreve também aqui.
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