O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Casa de Rui Barbosa e o despejo intelectual

Sei que há mais poetas do que homens, como eloquentemente escreveu João do Rio; afinal, vários poetas não alcançam o estatuto da humanidade. Devo acrescentar que, mesmo entre os poetas humanos, pouquíssimos podem, como Ronald Polito, ser também intelectuais, e com a mesma relevância atingida no trabalho literário.
Não esqueço, claro, do múltiplo trabalho de Polito como tradutor: é que considero que a tradução pertence à sua atividade intelectual (uma vez que feita com o rigor e a precisão devidos), ou também à de poeta, quando traduz poesia.
A sua discrição superlativa faz com que ele ainda seja, na poesia brasileira, um segredo para muitos (a poesia, ela mesma, é o segredo dito a todos). Mas leiam Terminal. E ouçam-no.
Tenho a sorte de conhecê-lo. Não escrevo por causa dessa sorte, e sim em razão de texto que escreveu na revista Sibila sobre a Casa de Rui Barbosa, que foi atacada pelo seu possível futuro presidente, Emir Sader.
Polito escreveu um lúcido texto sobre as estranhas considerações do possível futuro presidente, que nelas deixa bem claro que não conhece a instituição, o que, obviamente, qualifica-o sobremaneira para o cargo!
Polito tratou da entrevista que o famigerado sociólogo deu ao jornal O Globo. Incansável no périplo pelos grandes veículos de comunicação, concedeu outra a Folha de S.Paulo, publicada em 27 de fevereiro deste ano, que causou também perplexidades. Em momento que revela padrões alternativos de ética, atacou a Ministra a que provavelmente estará subordinado. Isso também causou polêmica.
Gostaria apenas de escrever que a postura do possível futuro presidente da Casa de Rui Barbosa (jurista e político que ele nem mesmo cita), nesse caso, foi a antítese do que se espera de um intelectual. Ele afirma que as atividades da Casa não têm "transcendência"; reconhecendo que não tem muita ideia do que ocorre lá, afirma entretanto que elas não "chegaram" até ele.
É postura de um intelectual esperar que a informação caminhe em sua direção? Trata-se da ética de um pesquisador? Não é arrogante pretender que o conhecimento se ofereceria para nós, talvez já etiquetado com a categoria teórica pertinente? Não é desprezar o duro trabalho dos pesquisadores que investigam os arquivos da Casa? Já tive alunos que pensavam assim, mas nenhum deles foi aprovado.
Ninguém se engane: a pesquisa em Humanidades também é difícil, mesmo prescindindo de microscópios caríssimos e de aceleradores de partículas. Um documento valioso poderá passar por mero papel velho para um leigo, mas um estudioso identificará nele um original de Vivaldi; um historiador, com estudos de paleografia, será capaz de ler o que são meros garranchos para um leigo.
Polito bem ressalta: "Sobre a pesquisa mesmo, que é o que mais importa em minha opinião, ele pouco tem a dizer."
Outro problema: como opinar sobre algo (uma instituição pública) que não se conhece? Não faz parte do código de ética da academia (válido até para professores, claro...) estudar antes de dar alguma opinião? Ainda mais se as declarações tiverem circulação pública em jornais? Que padrões de seriedade intelectual são esses? Tive também alunos que julgavam poder profetizar (profetas são ventríloquos do divino, não precisam consultar livros) sobre os mais diversos temas das matérias e da eternidade - é sempre mais fácil fazer isso do que estudar. Curiosamente, esses também não passaram. Talvez porque o professor fosse um infiel.
Como é deseducativa a entrevista do provável futuro presidente da Casa de Rui! Uma prova do grau de importância que a pesquisa e a memória têm para a atual administração federal está no fato de que ele ainda possa pretender e receber o cargo.
Acabaria de escrever, mas inesperadamente cai da estante um livro que a Casa de Rui Barbosa publicou em 2007, A pastoral de Santa Rita Durão (número 52 da Coleção Papeis Avulsos), que teve estabelecimento de texto e posfácio de Ronald Polito.
Trata-se de pastoral contra os jesuítas que Santa Rita Durão (mais conhecido pelos vestibulandos como autor do poema Caramuru) escreveu e o então bispo de Leiria assinou para agradar o Marquês de Pombal. Cito o livro para que mais pessoas "cheguem" até os trabalhos da Casa. Conta Polito sobre o clérigo carreirista e ignorante:

O bispo de Leiria, que Canais considerava um "verdadeiro lobo no rebanho do Senhor!" [...] e Fortunado de Almeida avaliava como "homem de péssimo caráter e avesso a todos os escrúpulos" [...], ainda que tivesse uma biblioteca com mais de 11 mil volumes, era praticamente ignorante, mesmo tendo título de doutor em leis pela Universidade de Coimbra. (p. 35)


P.S.: O Ministério da Cultura informou há pouco que ele, já ex-futuro presidente, não será nomeado.

3 comentários:

  1. olá, pádua: ótimo texto - "padrões alternativos de ética" é da ordem do cômico horripilante.

    quanto a atacar a ministra, acho que um aspecto que tem se comentado pouco é que quem foi atacado foram, na verdade, os autistas.

    não pretendo com isso desmerecer a ministra: o que quero dizer é que me parece repugnante utilizar essa trágica disfunção para desqualificar alguém.
    se emir sader tivesse desqualificado a ministra chamando-a de "sapatão" ou "negona", imagino que o destempero seria mais rápida e devidamente contestado. o autismo e os portadores de autismo merecem maior respeito e consideração, não só por questão de princípio e em termos abstratos, mas por todo o sofrimento humano envolvido nessa triste condição.

    as declarações de emir sader me parecem deseducativas, como você bem diz, prepotentes, recheadas de preconceitos e ignorância, permeadas de uma ética duvidosa e francamente ameaçadoras pelo que dão a vislumbrar de autoritarismo repressor e persecutório.

    um abraço
    denise

    ResponderExcluir
  2. Cara Denise,
    de fato. E o que ele falou do Gil também não parece vir de algum preconceito? Parece que Sader o subestimava...
    Abraços, Pádua.

    ResponderExcluir
  3. E aqui estamos mais uma vez da falta de visão da sociedade com relação às humanidades. Boa crítica Antonio.

    ResponderExcluir