O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 22 de agosto de 2010

Memória como reserva de mercado, parte II

O projeto de lei PLS 308/2009 (sobre que já escrevi aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte-i.html) prevê, no artigo 4o., VI, combinado com o artigo seguinte, a "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos" como competência exclusiva dos portadores de diploma, seja de graduação, de mestrado, ou de doutorado (mas não apenas pós-graduação lato sensu) em História.
O que, no entanto, pode ser visto como "tema histórico"? Algum fato social pode ficar de fora de tão larga categoria? Algum produto da cultura - e, nisso, a própria teoria histórica?
Em princípio, não. A amplitude do projeto é avassaladora.
Como se constituem os "temas históricos" a que alude o projeto? Por meio de um olhar diacrônico sobre os temas sociais. Trata-se de um trabalho que se constrói sobre fontes. Lembremos de Adam Schaff em História e Verdade (obra que a Martins Fontes publicou em 1995, em tradução de Maria Paula Duarte):

No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos os fatos históricos. [...] Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado.


Esse resultado parte de materiais que são estudados também por outras disciplinas - não se trata de tijolos já marcados para construção do cenotáfio da "ciência histórica"! Pergunto, portanto: terão os outros saberes que se inclinar diante dos portadores daqueles diplomas para poderem olhar diacronicamente seus objetos?
Ou melhor, já que a questão é menos epistemológica do que de oportunidades profissionais, pergunto: os laudos sobre história da arte somente deverão ser elaborados por tais portadores, não por artistas ou críticos de arte? Projetos sobre história da filosofia deverão ser monopólio daqueles portadores, e não daqueles que estudam filosofia sem tal crachá acadêmico? Um parecer de história do direito somente deverá ser escrito por um portador daquele diploma, mesmo que não saiba, por exemplo, a diferença entre direito sujetivo e direito objetivo?
Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.
E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?

2 comentários:

  1. que impressionante! embora historiadora, sempre fui contra a regulamentação da profissão, tal como sou contra a regulamentação da tradução.
    é absurdo.

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  2. Prezada Denise Bottmann,
    obrigado pelo comentário. Somos da mesma opinião. Creio que o projeto, além de pretender reservar as vagas nas escolas (e por que não para formados em História e "áreas afins"?), cria outras hipóteses insustentáveis.
    Abraços,
    Pádua

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