O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O crime, os poderosos, o ridículo

O twitter de J. Bolsonaro publicou um vídeo ridículo com uma leão banguela e hienas o rodeando. Li diversos comentários sobre mais este pobre espetáculo de mau humor e catástrofe eleito em 2018 para produzir e gerir o caos, porém o elemento que me parece mais relevante é ele afirmar claramente que as grandes ameaças ao ocupante da presidência da república (digo ao ocupante, e não à própria presidência, ou ao Estado, já que ele reduz tudo o que é público ao que é pessoal e familiar), além do sistema partidário (não se trata apenas da oposição, pois ele inclui o próprio agrupamento político no balaio de inimigos, parece óbvio que seu problema continua sendo a democracia) não é o crime, mas as instituições que combatem o crime. Por isso entraram como inimigos o Supremo Tribunal Federal, que tem nominalmente a função de defender a Constituição do Estado, mas também pessoas jurídicas que têm como objetivo garantir o princípio da publicidade, que é, segundo já dizia Kant, a garantia do direito público: veículos de imprensa e também os partidos políticos.
A publicação recente de áudio do motorista Fabrício Queiroz, autor de cheques para a atual primeira dama e soi-disant negociador de cargos públicos no Senado, queixando-se de que o alegado autor da facada no então candidato Bolsonaro estava "hiperprotegido", mas ele, Queiroz, não, certamente impressionou não só em termos jurídicos e éticos como estilísticos. O país parece diminuído e ridicularizado com as pessoas e os fatos que estão a ocupar as pautas do noticiário.
A impressão continua com a revelação de mais uma suspeita de laços do ocupante da presidência da república com os assassinos de Marielle Franco (https://twitter.com/jairmearrependi/status/1189398735903772672), que certamente se tornará em escândalo mundial e outro vexame para o Brasil.
Em resposta, era previsível que a rede bolsonarista atacasse a liberdade de imprensa, ainda mais porque os aliados já sabiam de que a notícia irromperia, avisados por aquele ocupante. Por seu turno, o advogado daquele político falou de "forças ocultas" e ato terrorista "sem precedentes na história deste país", o que não me parece fazer sentido em relação à lei antiterrorismo.
Nunca entendi bem por que teriam sido justamente os perfis de apoio àquele então candidato à presidência da república que disseminaram milhares de notícias falsas sobre Marielle Franco, sem nem mesmo se importar de divulgar fotos que obviamente não eram dela.


Os apoiadores de políticos da extrema-direita precisam ter como alvo não só o que é verdadeiro, mas a própria noção de verdade; dessa forma, dinamitam a esfera pública, condição necessária para implodir a democracia.
A ação coletiva de criminalização da vítima e da esquerda incluiu a desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, que espalhou a inverdade de que a vereadora executada estava "engajada com bandidos" e teria sido eleita com apoio de um grupo do crime organizado. Por sinal, a magistrada foi chamada a explicar-se neste ano por referir-se a uma "execução profilática" de um dos exilados políticos do bolsonarismo, Jean Wyllys, e deixar um coraçãozinho em ameaças a Guilherme Boulos. Ela reclamou da falta de humor da esquerda. Essa defesa é bem humorada ou ridícula?
Em reação às novidades (para o grande público) das investigações sobre a execução de Marielle Franco, que também resultou na morte do motorista Anderson Gomes, o ocupante da presidência gravou um vídeo destemperado que, apesar da gravidade do momento do país e do empenho histriônico do político, soa ridículo. Ele voltou a acusar garantes do princípio da publicidade, por algum motivo mencionou uma possível prisão de um de seus filhos, afirmou que não tinha motivo para matar ninguém no Rio de Janeiro, mas... algo leva ao riso do espectador, não obstante a seriedade do assunto e do momento do país.
Como o ridículo pode aparecer em discussões sobre crimes, até mesmo em crimes políticos? Alguns certamente lembrarão que o bolsonarismo acentuou a crise estética por que passa o Brasil, e que o belo desta "nova era" resulta de um grotesco (às vezes, de um kitsch) que pode suscitar o riso.
Concordo com essa opinião, mas acabei por lembrar de outra relação entre o crime e o ridículo, em contexto bem diferente, não brasileiro. Hannah Arendt, em sua última entrevista, dada a Roger Herrera em 1973, comentou uma reflexão de Brecht. Para esse escritor, se as classes dominantes permitem a um pequeno golpista engrandecer-se, isso não lhe conferiria uma posição privilegiada na história, mesmo que seus atos gerassem grandes consequências, pois esses chamados grandes criminosos políticos não têm grandeza alguma, seus crimes é que são imensos. Por isso, essas figuras devem ser expostas ao ridículo; Brecht arrematava com a afirmação de que a tragédia lidava com o sofrimento humano de forma menos séria do que a comédia.
Arendt reconhecia que essa afirmação era "chocante", mas concordava inteiramente com ela: "não importa o que ele faça, que ele tenha matado dez milhões de pessoas, ele ainda é um palhaço". Reconhecendo a importância do ofício do palhaço, poderíamos modificar a formulação da filósofa e sugerir que o golpista, por mais alto que tenha ascendido, continua ridículo.

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