Jessye Norman morreu, aos 74 anos, no último dia 30 de setembro. Eu me lembro quando ouvi a voz dela pela primeira vez na adolescência, nos anos 1980, em um programa dedicado a vozes na Rádio MEC. Sérgio Britto, que, como se sabe, também foi uma grande diretor de ópera, explicava que não fazia sentido compará-la a Callas e que ela não iria bem se cantasse certos papéis da cantora grega.
A comparação não fazia sentido, claro, era coisa de jornalistas tentando achar alguma etiqueta na artista que eles passavam a conhecer. Jessye Norman tinha um repertório bem mais diverso, não só em termos de gênero (Callas cantou quase somente ópera, e sua única incursão em oratório foi gravada, mas apagada pela rádio), de estilos de época (cantou barroco e música contemporânea), mas também no campo dos idiomas, pois boa parte de suas melhores interpretações foram cantadas em alemão, francês e inglês.
Naquela década, as possibilidades vocais de Jessye Norman continuavam no auge. Eu nunca a vi ao vivo, embora tenha vindo ao Brasil, pois os ingressos eram caros. O primeiro elepê que tive dela foi o das 4 últimas canções de Richard Strauss, com Kurt Masur regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Eles as gravaram, com outros Lieder (canções) em 1983. Comprei-o usado e fui depois à casa de um colega da faculdade por causa de um trabalho acadêmico, ele quis ouvir e ficou pasmo com a beleza do timbre. Essa era uma das primeiras impressões que Jessye Norman deixava, bem como a força da voz. O timbre permanecia profundo mesmo no pianíssimo.
Quando ela começa este poema de Hermann Hesse, "Frühling" (Primavera), com o verso "In dämmrigen Grüften", o grave impressiona; comparem esta frase inicial com a de Kiri te Kanawa, outra grande intérprete de Richard Strauss.
Kanawa, sem dúvida, tinha uma voz de soprano. Não era o caso de Jessye Norman que, embora tenha estreado como Elisabeth na ópera Tannhäuser de Wagner, um papel de soprano, e haja cantado outros papéis desse tipo vocal (nunca os mais agudos), sempre interpretou repertório de meio-soprano e de contralto. Quando Norman podia escolher uma tonalidade para interpretar determinada peça (o que, em regra, não é possível fazer em ópera, mas sim no gênero da canção), ela costumava escolher tonalidades, por assim dizer, medianas.
Uma coisa é extensão, outra é a tessitura. Um meio-soprano pode perfeitamente atingir os agudos de soprano; o problema é que não lhe será confortável ficar muito tempo na região mais aguda, ou suas notas não serão tão boas quanto as outras de sua extensão. Com o passar do tempo, a extensão no agudo de Norman diminuiu, o que é comum, e ela teve de deixar papéis como o de Sieglinde ou o de Ariadne na ópera de Richard Strauss, em que ela foi particularmente sublime. Felizmente, ela os pôde cantar por bastante tempo (assim como Waltraud Meier, uma mezzo, conservou por muitos anos Isolda no seu repertório - personagem que Norman não chegou a cantar no palco). Não porém, os do repertório italiano do século XIX e do início do século XX, que são, em geral, mais agudos. Provavelmente por isso, ela não seguiu o caminho de Leontyne Price (que foi Tosca, Aida, as duas Leonoras de Verdi...) e escolheu um caminho próprio, original, que incluiu a Alceste de Gluck, a Hélène de Offenbach, a Euryanthe de Weber e a Joana d'Arc de Tchaikovsky, em francês.
Algumas das notícias que saíram com sua morte, com a ignorância que predomina na imprensa diária, chegaram a declarar que Norman foi grande intérprete de... Aida, de Verdi, e Carmen, de Bizet. Absurdo, isso significa ignorar os tesouros que a cantora deixou, que estão em outros repertórios. Ela cantou Aida, mas logo deixou essa ópera, que nunca gravou, por sinal; nos registros ao vivo, via-se que ela alcançava o dó agudo de "O patria mia", mas a tessitura do papel era alta para ela (aqui, ela parece mais mezzo do que Fiorenza Cossotto, que canta Amneris; no dueto com o tenor, que não indico aqui, ela está realmente pisando em ovos; mas sua voz já tinha quebrado no início de "Ritorna vincitor"...). É sinal de surdez ou de ignorância sobre a carreira da cantora que parte da imprensa dos EUA também tenha destacado essa ópera. Ou de clichê racial: por ser uma cantora negra, logo ela teria que ser uma Aida, assim como Martina Arroyo e Leontyne Price...
Ela mesma declarou que recebeu diversas ofertas para cantar Aida, como Leontyne Price, mas que preferia as músicas francesa, alemã e austríaca, de Poulenc, Schubert, Mahler, Strauss e Wagner (por exemplo, nesta entrevista dada ao Finantial Times depois que ela publicou sua autobiografia, Now stand up straight and sing!, que ainda não tenho).
Em relação a Carmen, cuja tessitura é confortável para um meio-soprano, ela deixou um disco bem dispensável.
Sua voz, fundamentalmente, era de um meio-soprano com uma extensão excepcional, que lhe permitiu interpretar papéis de soprano durante bastante tempo e lhe franqueou incursões no registro de contralto. Ela pôde cantar sem problemas tanto a parte de contralto da Canção da Terra de Mahler (ouçam o final de "Da beleza") quanto o solo de soprano do Réquiem Alemão de Brahms. Tanto a parte de soprano quanto a de mezzo em Gurre-Lieder de Schönberg. Ou papéis, em ópera, cantados por essas duas vozes, como a Dido na ópera de Purcell (por exemplo, dublando a si mesma neste especial). Vejam como ela audivelmente está em casa cantando a "Chanson perpétuelle", de Chausson, em registro de meio-soprano. Essa interpretação e outras de música francesa (Ravel, Debussy, Offenbach, Poulenc...) bastariam para que os franceses escolhessem esta cantora estadunidense, com justiça, para vestir a bandeira francesa e cantar a Marselhesa no bicentenário da Revolução.
Alec Ross escreveu que o auge de Norman foi relativamente curto e que, nos anos 1990, ela já apresentava dificuldades vocais, especialmente no agudo. Discordo; para um meio-soprano que cantava papéis de soprano, suas notas mais altas resistiram bastante tempo, e só temos a agradecer que ela tenha se aventurado nesse repertório a que ela chegou mediante sua técnica vocal, e melhor do que outras intérpretes que, naturalmente, tinham vozes agudas.
Um exemplo disso: este crescendo quilométrico em "Beim schlafengehen", outra das 4 últimas canções de Richard Strauss (repertório que praticamente apenas os sopranos cantam), no trecho "Und die Seele". Aqui, ela conta uma história ótima sobre esse trecho, que é precedido por um solo de violino, cuja melodia é retomada pela voz. Jessye Norman faz outras cantoras, não tão providas de possibilidades de dinâmica, parecerem afônicas. Logo depois, quando ela canta "schweben", a voz parece realmente flutuar; em "tief", o grave faz-nos ouvir a profundidade dessa voz; e o agudo é seguro e radiante. O curioso é que a cantora faz tudo isso muito lentamente (seu controle respiratório era excepcional), os tempos adotados por Masur são bem mais largos do que os de outras gravações. Provavelmente Richard Strauss não imaginava ouvir tais canções assim, tampouco as outras que estão nesse disco (que inclui uma interpretação grandiosa de "Ruhe, meine Seele"), mas o que os intérpretes fazem nele me parece completamente convincente, e a voz de Jessye Norman soa incomparável.
No entanto, como sempre com os grandes intérpretes, a graça de Jessye Norman não estava tanto no quanto ela podia atingir, mas em como ela o fazia. A outra impressão que ela causava, confirmada quando a víamos cantar, era a de nobreza. Ela era uma rainha no palco, mesmo sem montagem cênica. Vejam-na neste concerto, cantando a Balada da Senta em O Holandês Errante (ou O Navio Fantasma), de Wagner: https://www.youtube.com/watch?v=2VBa3jj2Lwc
Nesse "como", estava sua dicção; ela tinha que ir para a canção de câmara. Certamente a abertura da boca contava para isso.Tiveram a boa ideia de destacar este trecho de uma masterclass de Thomas Quasthoff com o soprano Yana Eminova, e ele pede para a estudante imitar Norman na consciência de que o corpo é um instrumento. Vejam-na, em outro trecho daquele especial, dublar a si mesma na célebre canção de Schubert "Erlkönig", em que ela tem que encarnar três personagens, além do narrador. Ela interpreta com todo o corpo, mesmo com a economia de movimentos.
Nos papéis em que essa nobreza ficava deslocada, a cantora não costumava se destacar. Ela mesma dizia que não cantava o personagem principal da Carmen no palco por não ter o físico do papel; no entanto, decidiu gravá-lo com a regência de Ozawa, e a gravação é completamente dispensável, em boa parte por causa dela, que canta a Habanera como se fosse uma oração (houve quem selecionasse este momento como exemplo de canto entendiante)... Mesmo em recital, ela podia destruir esse ritmo de dança e interpretá-la lentissimamente.
No final da Balada, vê-se que o agudo está presente e estável, mas não é o de um soprano dramático como Birgit Nilsson. Norman destacou-se nos papéis que os alemães chamam de jovem soprano dramático, como Elsa (de Lohengrin, de Wagner) ou a Elisabeth. Os papéis mais pesados estavam fora de seu alcance; ela tentou gravar Isolda, tendo cantando algumas vezes a cena final (aqui, Karajan cria, antes do clímax, que é realmente fortíssimo, um som quase camerístico para a cantora), mas desistiu, e não aconselho a ver a tentativa de cantar a Imolação de Brünnhilde com Masur regendo, pois ela transpôs para baixo todos os agudos. Nem em estúdio ela fazia muito bem, como notou Paul Corfield Godfrey nesta resenha ao disco Wagner que ela gravou com Klaus Tennstedt.
Jessye Norman estreou em Berlim em 1968 no papel de Elisabeth; ela conta como foi a curiosa história dessa audição nesta palestra no Instituto Aspen. Com isso, ela repetiu o destino de tantos grandes cantores líricos nascidos nos EUA, o de terem que ir para a Europa para poder fazer, depois, carreira no país natal. Aconteceu com Maria Callas, mas também, nos dias de hoje, com Joyce DiDonato. Uma vergonha para o Metropolitan Opera House que Norman só tenha estreado lá em 1983, como Cassandra na ópera Os Troianos, de Berlioz (papel muitas vezes cantado por meio-sopranos). Somente hoje, quando decidi escrever esta lembrança, descobri que existia este vídeo da queda de Cartago!
Assim como é interessante notar que tantos dos maiores intérpretes de Wagner foram judeus, a começar, na vida do compositor, por Lili Lehmann e Hermann Levi, era divertido ver como Norman, uma cantora negra, destacava-se em um repertório germânico que os racistas e/ou neonazistas acreditariam reservado para as intérpretes brancas. Ela não foi, porém, a primeira a triunfar no mundo da ópera. Em 1961, Grace Bumbry foi a primeira cantora negra a cantar no templo de Wagner, o teatro de Bayreuth, no papel de Vênus em Tannhäuser. Leontyne Price, na mesma época, cantou com Karajan em Salzburgo e em outras cidades. Shirley Verrett, Reri Grist e Martina Arroyo também, nos anos 1960, destacavam-se no repertório lírico. Entre os homens, lembro agora de Jess Thomas, que estreou em Bayreuth como Parsifal em 1961, e Simon Estes.
De qualquer forma, Jessye Norman também teve de superar as barreiras do racismo e o fez não só interpretando essa música europeia, mas também a música negra estadunidense, o jazz (este gênero, com mais ênfase nos últimos anos, quando praticamente não cantava mais ópera) e especialmente o spiritual, que ela transportou a alturas transcendentes. Ela costumava interpretar spirituals nos seus concertos com piano, e um de seus êxitos mais populares foi o concerto que fez com outra cantora lírica estadunidense, Kathleen Battle, dedicado apenas a esse repertório, com regência de James Levine. É muito bonito ouvir o contraste entre o soprano de Battle e o meio-soprano de Norman.
À diferença de outras divas, Norman não recuava diante da música do século XX e cantou tanto Stravinsky (que ela apreciava tanto quanto Mozart) quanto Schönberg (incluindo o monograma atonal Erwartung; é interessante o que ela diz sobre a peça nesta conferência em 2007 a partir dos 22 minutos), bem como nomes posteriores.
Entre várias apresentações públicas, Jessye Norman cantou, na comemoração pública dos 70 anos de um dos maiores líderes políticos do século XX, Nelson Mandela, "Amazing grace" (ela não escolheu, evidentemente, uma tonalidade para soprano). Como ela gostava de terminar seus recitais com um spiritual ou com algum hino cristão, em homenagem à grande artista, escolho o mesmo hino do século XVIII, mas numa interpretação mais íntima: https://www.youtube.com/watch?v=dneH1XPT4z8
P.S.: Como ela não dava apenas um bis, deixo ainda uma passagem de contralto que Jessye Norman iluminava imensamente tanto acompanhada por piano quanto por orquestra, no contexto da Terceira Sinfonia de Mahler, "Urlicht". É lindíssima e diz, com toda simplicidade, "eu vim de Deus, eu voltarei para Deus".
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
Amazing Jessye
Marcadores:
Berlioz,
Chausson,
Grace Bumbry,
Jessye Norman,
Kathleen Battle,
Leontyne Price,
Lied,
Maria Callas,
Martina Arroyo,
Ópera,
Reri Grist,
Richard Strauss,
Schönberg,
Schubert,
Spiritual,
Wagner
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário