Em absoluta vanguarda de um anacronismo verdadeiramente milenar, essa medida, se aprovada, não teria precedente algum em nossa história constitucional: mesmo a Constituição de 1824, a primeira do país,apesar de afirmar que a que a religião católica apostólica romana era oficial, dispunha, no artigo 12, que "Todos estes poderes do Império do Brasil são delegações da nação."
O deputado Paulo Pimenta, do PT-SP, já havia abandonado a PEC. Ontem, mais quatro deputados do PT retiraram suas assinaturas (Marcon, do RS, Helder Salomão, do ES, João Daniel, de SE, e Carlos Zarattini, de SP), o que deixaria a proposta abaixo do número mínimo necessário para poder tramitar, que é de um terço do número total de deputados federais (171):
Tramitação
Data | Andamento |
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27/03/2015 |
PLENÁRIO
(
PLEN
)
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30/03/2015 |
PLENÁRIO
(
PLEN
)
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O Regimento Interno da Câmara não permite a retirada da assinatura nesse estágio, segundo o artigo 102:
§ 4o Nos casos em que as assinaturas de uma proposição sejam necessárias ao seu trâmite, não poderão ser retiradas ou acrescentadas após a respectiva publicação ou, em se tratando de requerimento, depois de sua apresentação à Mesa.
Neste caso, metade mais um dos subscritores teria que pedir a retirada:
Art. 104. A retirada de proposição, em qualquer fase do seu andamento, será requerida pelo Autor ao Presidente da Câmara, que, tendo obtido as informações necessárias, deferirá, ou não, o pedido,com recurso para o Plenário.§ 1o Se a proposição já tiver pareceres favoráveis de todas as Comissões competentes para opinar sobre o seu mérito, ou se ainda estiver pendente do pronunciamento de qualquer delas, somente ao Plenário cumpre deliberar, observado o art. 101, II, b, 1.§ 2o No caso de iniciativa coletiva, a retirada será feita a requerimento de, pelo menos, metade mais um dos subscritores da proposição.
O curioso é que a PEC teocrática é inconstitucional e, além disso, em certo sentido, anticonstitucional, pois infensa às próprias origens do moderno constitucionalismo. Quando as primeiras Constituições modernas nasceram - dos EUA e da França - elas quiseram estabelecer a soberania popular contra os fundamentos do Antigo Regime, que invocavam o direito divino. O famoso começo "We the People of the United States" é bem significativo dessa mudança de ares. É o povo, soberano, que dá a si mesmo suas leis.
Outra questão é perguntar quem era esse povo que exercia a cidadania ativa, e denunciar que era composto de homens brancos e proprietários (e, hoje, segundo a jurisprudência plutocrática da Suprema Corte, empresas doadoras...). Mas, desde o começo, havia essa invocação, não simplesmente retórica mas fundacional, da soberania popular.
A Constituição francesa de 1791 previa que "La Souveraineté est une, indivisible, inaliénable et imprescriptible. Elle appartient à la Nation ; aucune section du peuple, ni aucun individu, ne peut s'en attribuer l'exercice." (A Soberania é una, indivisível, inalienável e imprescrítivel. Ela pertence à Nação; nenhuma parcela do povo, e nenhum indivíduo, pode atribuir a si o seu exercício). No entanto, a Nação somente poderia exercer a soberania indiretamente, por meio do Rei e do Parlamento.
A democracia direta, em alguns de seus instrumentos, está prevista na Constituição de 1988. Ela não ganharia nada com as propostas de Daciolo, que fortaleceriam facções teocráticas que desejam, em nome de projetos de poder, confundir o cidadão com o fiel, ou dar somente a este os direitos de cidadania.
Pelo contrário, a participação popular precisa aprofundar-se, creio, tendo em vista a crise do sistema representativo, de que esta PEC de Daciolo é um sinal curioso e grotesco, porém menor diante da corrupção do sistema político, que levou a esta situação histórica de termos os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, ambos, investigados a partir da chamada lista do Janot. A solução para isso não pode vir dos céus, mas do solo humano.
Já vi pessoas elogiando os mecanismos internos do Congresso de controle da constitucionalidade. O que se apresenta na qualidade de parecer nas Comissões de Constituição e Justiça não autoriza esse apreciação. A recente aprovação na Câmara dos Deputados da PEC da redução da maioridade penal bem o mostra, assim como as propostas de criação de reservas de mercado.
Um exemplo foi o parecer da CCJ da Câmara à PEC 386/2009 (a que constitucionaliza o diploma de jornalista; talvez volte à ordem do dia), à falta de qualquer fundamento cita o voto vencido do Ministro Marco Aurélio: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=700374&filename=Parecer-CCJC-08-10-2009
O Supremo Tribunal Federal havia declarado a inconstitucionalidade desse diploma. O deputado Paulo Pimenta apresentou a PEC reagindo contra o julgamento do STF. O parecer do Deputado Maurício Rands, aprovado unanimemente na CCJ nos idos de 2009, talvez seja um sinal de que a Constituição é artigo vencido no Congresso.