Morreu hoje, dia 22 de novembro de 2017, o barítono russo, siberiano, Dmitri Hovrostovsky (1962-2017), que lutava desde junho de 2015 contra um câncer no cérebro. Sua voz era tão impactante que lembro bem da primeira vez que o ouvi: era um disco da RCA de trechos de ópera que uma tia me havia dado, com árias eu já conhecia, como "Caro nome" (na voz de Anna Moffo), mas uma que eu ignorava completamente: a ária do Príncipe Yeletsky, da ópera A Dama de Espadas, uma das que Tchaikóvski escreveu a partir de Púshkin.
Trata-se de uma das mais bonitas declarações de amor que o compositor russo escreveu, delicada e apaixonada. Para fazer justiça a essa música, é necessário um grande controle do legato e um fôlego sem falha. O barítono tinha tudo isso e um excepcional veludo no timbre que não se desfazia mesmo quando o cantor usava mais força. A última frase do personagem para sua amada (Lisa, que preferiria o tenor...), ele a cantava em um fôlego só, com um belo crescendo.
Era Hvorostovsky, ainda bem jovem, e a faixa vinha da gravação da ópera completa, regida por Seiji Ozawa. O papel lhe serviu de estreia no Metropolitan Opera House em 1995. Antes disso, ele cantou a ária na competição de canto que o tornou conhecido de um dia para o outro, "Singer of the World", em Cardiff, 1989. Por sorte, o vídeo está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ywb492BL4iM (para vê-lo em 2003, com o timbre mais escuro e o mesmo legato, sugiro esta apresentação, também ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=W8zKkvGB7Rw).
Naquela competição que o revelou, ele enfrentou, entre outros candidatos, o baixo barítono galês Bryn Terfel, que também fez (continua a fazer) uma grande carreira. Li uma entrevista de Terfel, que perdeu o primeiro lugar para Hvorostovsky, em que comentou ter notado que o russo o venceria depois de ouvi-lo em "Ombra mai fu", da ópera Serse, de Händel; era uma escolha estranha para uma competição de canto (esta peça é batida demais, toca até em igrejas, e não é das mais exigentes vocalmente), mas perfeita se o cantor tem um legato como este: https://www.youtube.com/watch?v=PoAhxAlW6QY
Nessas apresentações do jovem barítono, além do timbre lindíssimo e do seguro apoio (que lhe permitia realizar todas as expressivas nuances de crescendo e decrescendo), note-se a abertura para o agudo; ele chegou, durante os estudos de canto, a julgar que era tenor, mas isso não durou muito. Era uma voz bem diferente de Terfel, que foi para papéis mais graves e canta muito do repertório germânico. Hvorostovsky concentrou-se nos papéis de barítono lírico do repertório russo, em que ele nunca teve realmente rival, na ópera italiana do século XIX e na canção russa.
Na primeira categoria, destaca-se Eugen Oneguin, outra ópera que Tchaikóvsky escreveu a partir de Púshkin. O papel título foi escrito para barítono, e ele o cantou desde jovem. Só neste século, apesar da idade do personagem (ele termina a peça com apenas 26 anos), Hvorostovsky disse sentir-se ter chegado à idade ideal para interpretá-lo. Aqui, pode-se vê-lo na ária do fim do primeiro ato, no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, cena em que o personagem desdenha da declaração de amor feita pela jovem Tatiana, interpretada por Renée Fleming, com regência de Valery Gergiev: https://www.youtube.com/watch?v=qa_13xMhjkg
Oneguin mata, em duelo, seu melhor amigo, um poeta, por questões de honra (ele o provoca dançando com a amada do poeta em um baile), viaja para longe, retorna anos depois e descobre Tatiana casada com um nobre bem mais velho. Decide que está apaixonado por ela, marca um encontro. Ela confessa que ainda o ama, mas o rechaça neste dueto final: https://www.youtube.com/watch?v=i8mJsowhByo
Em disco, ele a gravou a ópera completa na regência de Bychkov; antes disso, escolheu os dois solos para seu primeiro disco solo, de 1990, gravado pela extinta Philips, regido por Gergiev. Para seu primeiro solo, escolheu apenas árias de óperas de Tchaikóvsky e Verdi. A gravação apontava os caminhos que o barítono seguiria, e ele aprofundou as interpretações dessas árias, quando a elas retornou. Compare-se a ária da Iolanta com a gravação completa, regida por, mais um vez, Gergiev; ou a da morte de Rodrigo com o que ele fez na gravação de Don Carlo regida por Bernard Haitink, que se destaca, em termos vocais, somente pelo barítono e pelo grande meio soprano Olga Borodina, russa como Hvorostovsky, e uma de suas companheiras de palco e de geração. Com ela, além de óperas completas, gravou "Olga & Dmitri", com repertório italiano (Rossini e Donizetti), francês (Saint-Saëns) e russo (Rimsky-Korsakov).
Em relação à segunda categoria, a ópera italiana, ele se dedicou ao bel canto nos anos 1990: Rossini, Bellini, Donizetti. Nesse momento, alguns o comparavam aos grandes barítonos italianos da "época de ouro" (início do século XX). "Bel Canto Arias" (que também recebeu o título ridículo de "Songs of love and desire"), regido por Ion Marin, testemunha a agilidade vocal e o agudo fácil (a famosíssima ária do Barbeiro de Sevilha), o legato (ária de I Puritani) e o investimento dramático de que o barítono já era capaz (na cena da ópera Lucia di Lammermoor).
Aos poucos ele foi deixando esses papéis do bel canto porque, segundo suas palavras, precisava de "mais ação", e foi direcionando sua carreira para Verdi. Giorgio Germont, personagem de La Traviata, foi um dos papéis que lhe permitiu fazer essa transição; ele o gravou com Zubin Mehta, fazendo este papel de pai para um tenor que tinha quase o dobro de sua idade, o impressionante Alfredo Kraus, e com um soprano também de outra geração, Kiri Te Kanawa (registro a diferença etária porque alguns críticos julgaram-na um problema dessa gravação; não sou da mesma opinião).
Na terceira categoria, ele gravou na primeira fase da carreira, que a Philips registrou, tanto a canção clássica russa quanto a tradicional e a popular. "Olhos negros", evidentemente, no disco homônimo, o "Kalinka", com coro, que é uma maravilha, mas também canções de Rachmaninov, Tchaikóvsky, de Sviridov (que ainda estava vivo, e escreveria para Hvorostovsky e o pianista Mikhail Arkadiev "Petersburgo, um poema vocal"). Ele gravou pela primeira vez "Canções e Danças da Morte", de Mussorgsky, nessa época, porém sua gravação posterior é bem mais interessante.
Na regravação, ele já não estaria na Philips; a gravadora, que usava estratégias para explorar a beleza física dele, especialmente para o mercado dos Estados Unidos, queria que ele gravasse mais crossover, isto é, mais música popular, e não do repertório russo. Neste século, ele foi para a Delos, o que significou uma série de projetos mais pessoais, mas também elencos menos estelares (no entanto, certo vídeo em que ele canta música brega sem camisa é de 2009).
O barítono gravou a ária e outras de Verdi, inclusive os solos de Rigoletto no "Verdi Arias", de 2002, regido por Mario Bernardi. Ele ainda estava vivo quando saiu a gravação da ópera completa, realizada em 2016: https://twitter.com/Hvorostovsky/status/929017529774886912.
No dia 17 último, divulguei uma crítica publicada no Washington Post, que fazia notar que ele tinha cancelado todas suas apresentações públicas e seu prognóstico ainda era incerto. No primeiro semestre deste ano, ele ainda foi capaz de dar concertos (algumas imagens estão no twitter dele); e ainda pôde fazer uma aparição surpresa na apresentação de gala do Metropolitan com "Cortiggiani". O câncer, porém, lhe havia tirado o equilíbrio, e ele não se sentia mais seguro para andar no palco (é possível notar isso quando ele sai do palco no Met); em um dessas últimas apresentações, um dos braços está numa tipoia, pois ele havia caído em casa.
Nessa fase, seu maestro mais constante nos estúdios foi Constantine Orbelian, que o dirigiu em sua última gravação de ópera, que saiu há poucos dias, o Rigoletto, de Verdi. Hvorostovsky gravou esse difícil papel, para o qual esperou anos, em 2016, quando já sabia estar doente.
Dessa ópera, eu o vi cantar a ária "Cortiggiani, vil razza dannata" ao vivo. Ele se apresentou algumas vezes em Buenos Aires, mas acho que a única vez que se cantou no Brasil foi em um recital em 8 de setembro de 1997 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Ele já tinha gravado vários discos e era uma estrela em ascensão. Anunciou-se que faria um programa de canções russas com o pianista Mikhail Arkadiev, com quem já tinha feito algumas gravações.
No entanto, o programa apresentado foi bem diferente: era praticamente todo composto de árias (a maioria, de óperas), como se vê ao lado. Em um longo arco temporal, ele foi do barroco ao verismo, passando pelo classicismo e pelo romantismo. O programa escreve incorretamente o nome de Bellini, de quem ele cantava uma ária de I Puritani. Como faltam outras informações, lembro que as árias de Händel sem indicação de origem vieram da Brockes Passion e de Orlando; o Gounod pertence ao Faust, a de Leoncavallo, a I Pagliacci, e as de Verdi, a Un ballo in maschera e Don Carlo.
O teatro estava praticamente vazio. Comprei ingresso para a galeria, mas o pessoal do Teatro pediu para que o público presente descesse à plateia, onde não havia praticamente ninguém. Assisti a tudo bem perto, talvez na quarta fila, não lembro mais.
A primeira parte do programa, exceto Mozart, e a foto usada provinham do disco que gravou com Neville Marriner e a Academy of St Martin in the Fields, "Arie Antiche". Ele não era um cantor do barroco e ouve-se, em algumas faixas, certa incongruência entre a interpretação do cantor, praticamente romântica, e o acompanhamento sóbrio de Marriner.
No disco como no palco, sua capacidade de sustentar frases longas causava admiração, assim como espantava sua maneira de respirar, que era bem audível. Tenho uma queda pela ária "O del mio dolce ardor"; o original é cantado geralmente por mezzos, mas não desdenho ouvi-la com um barítono como este, e a facilidade da subida ao agudo em "le più liete speranze" impressionou. Na famosa ária do Orfeo de Gluck, a interpretação tão emocional e com vibrato de Hvorostovsky talvez pudesse ser chamada de antiquada, mas era sincera e vocalmente esplêndida.
Das árias de Mozart, lembro da facilidade com que cantou a conclusão do "Vedrò mentr'io sospiro", que pode pegar o cantor no contrapé. Na segunda parte do programa, ele estava completamente em seu elemento; quase pulei para trás com o sol agudo que ele, seguindo certa tradição, emitiu perto do fim do Prólogo da ópera Os Palhaços.
Nunca tinha ouvido uma voz tão impressionante. O final do programa confirmou que aquele canto estava sempre ligado a um propósito dramático, especialmente na ária da morte de Rodrigo em Don Carlo. O marquês leva um tiro, em execução extrajudicial determinada pelo rei e exigida pelo grande inquisidor, durante visita ao príncipe, encarcerado por ordem real. Pouco tempo depois do concerto, ele gravaria a ópera completa sob a regência de Haitink.
Neste século, ele manteve seu repertório principalmente em duas línguas, a italiana e a russa. Gravou canções napolitanas para a Delos, explorou os papéis mais pesados de Verdi e chegou até a Rigoletto, com uma voz que era essencialmente lírica. No campo russo, fez de tudo: ópera, canção clássica e popular, música religiosa (ele já tinha gravado para a Philips o belo "Credo"); em 2004, foi o primeiro cantor lírico a fazer um concerto na Praça Vermelha de Moscou, com músicas russas da II Guerra Mundial, que ele gravou para a Delos ("Wait for me"). Era um herói nacional. Lamento não saber russo e não poder ler as matérias de seu país. Este obituário da CBC News pareceu-me bom, mas a seção do The New York Times inclui vídeos de suas apresentações, tanto em ópera quanto em recital.
Eu o vi uma segunda vez ao vivo, em 2015, pouco tempo antes de ele descobrir ou revelar para o público que estava doente. Era a ópera Un ballo in maschera, de Verdi, no Metropolitan Opera House, com a regência do grande James Levine. Nenhum dos papéis principais era cantado por um italiano, e não se sentia falta disso. O tenor polonês Piotr Beczala estava audivelmente doente e seria substituído na matinê transmitida pelo rádio pelo tenor brasileiro Ricardo Tamura); o elenco incluía as americanas Sondra Radvanosky, Dolora Zajick (desafiando poderosamente os anos, ela é sexagenária) e Heidi Stober.
Hvorostovsky, o russo, estava muito bem, e na ária "Eri tu", ele realizava o contraste entre o início, em que ele está dominado pelo desejo de vingança, e a nostalgia de "dolcezze perdute", até a exclamação "non siede che l'odio/ E la morte nel vedovo cor!". Sua vitoriosa carreira confirmou o predomínio dos cantores eslavos no campo da ópera italiana; ele e Borodina, claro, mas também cantores que vieram depois, como Beczala, Anna Netrebko e Ildar Abdrazakov.
Não é comum cantores encontrarem êxito artístico ao mesmo tempo na ópera e na canção, tendo em vista as diferentes exigências vocais e de temperamento (a canção, em geral, exige muito mais intimismo), mas Hvorostovsky foi um desses exemplos, tanto em razão da técnica respiratória quando da excelente articulação: mesmo que não se conheça o idioma do texto que ele canta, as palavras são perfeitamente distinguíveis, algo não muito comum entre os cantores líricos, e tão necessário para a canção. Neste campo, os discos de Tchaikóvsky (algumas das canções do cd duplo de 2009 "Tchaikovsky Romances" podem ser vistas neste vídeo), Rachamaninov ("Rachmaninov Romances", gravado em 2011, incluiu esta peça) e de canções a partir de poemas de Púshkin, de 2010, gravados com o pianista Ivari Ilja para a Delos são preciosos.
Em 2011, gravou com o excelente Ivari Ilja um disco que recebeu em inglês o título"In this moonlit night" com canções de Tchaikóvsky, Taneyev e o ciclo "Canções e Danças de Morte" de Mussorgsky. Desta vez, não na versão orquestral, mas apenas com o piano, seguindo o original do compositor.
Os poemas foram escritos por Arseny Arkadyevich Golenischchev-Kutuzov. A famosa canção final descreve um campo de batalha: finda a luta, a Morte, o "Marechal de campo" (título da canção) aparece para declarar-se vitoriosa, decretar que os soldados agora estão reconciliados e contar suas tropas, formadas por todos os corpos: pede para que se levantem, mas depois ela irá enterrá-los: "Ano após ano passará/ E até a memória de vocês se extinguirá".
Trata-se de versos que Hvorostovsky cantou com toda eloquência necessária para encarnar o poderoso personagem, mas que nunca se dirigiriam a este cantor, nem mesmo hoje.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
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