O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Do Bolso ignaro à boca de Parmênides: Alberto Pimenta zomba



Festa para a poesia: Alberto Pimenta publicou mês passado seu livro novo, Zombo (Lisboa: Edições do Saguão, 2019). O título anuncia cantigas de escárnio, tão frequentes na obra do autor. Elas estão presentes e às vezes evocam os livros dos anos 1970, mas com a gravidade dos últimos volumes, como se Pimenta tivesse reunido diferentes tempos de sua obra em Zombo.
Neste livro, recorre com mais frequência a trocadilhos e piadas, como "cara... oh honte!" referindo-se a Caronte, as explicações para SMS (por exemplo, "Se a Merda Soubesse") em "Doces musas", todo o poema "Palhinha", uma ópera dos grandes negócios, o "Bolso ignaro" ("LOVE TONIGHT"), zombo e zambo [SETE PANFLATOS E UM PROVÉRBIO COLOMBIANO]. Trata-se do autor de al-Face book, não esqueçamos.
Um poema como "Boa vizinhança", com sua sátira às relações sociais, poderia estar em Os entes e os contraentes, livro de 1971, bem como o poema visual "muito influenciado por Boulez"; mesmo este, no entanto, termina com esta nota séria: "chegou ao fim, amigo, acabou". Em "MEMO RIA ou", há riso, memória e também trechos como este:

das minhas águas-furtadas,
furtadas à imaginada chaminé
sigo sendo fumo
e sucessor de fumo: nada

Há anos Alberto Pimenta apresenta seu livro mais recente como o último ou algo parecido. Volta a fazê-lo, em mais de uma passagem e nas duas hipógrafes, uma delas, do próprio autor. Em 1990, quando compilou sua obra, deu ao volume o título Obra quase incompleta. Atualmente, esse volume não chega nem a metade de tudo que já publicou. Na foto abaixo, alguns (não tenho todos) desses vários títulos, à esquerda as publicações até 1990.



Como nos últimos livros, as intempéries do corpo e da história conjugam-se:

sexo, nó, nós, natalidade incluída,
passa o nó para outro, o nó do tempo sai
daqui para entrar ali,
ou natalidade excluída, parece
que o tempo pára, minutos
que se lhe ganharam, mas é só
aí até a nona vez, fora nada, e
depois o tempo desforra-se,
ata, desata, torna a atar,
é todo o nexo que há, óbvio,
uma hérnia do corpo todo, inchaço [NÓS, QUE NEXO]

A passagem do tempo, em uma das passagens mais impressionantes do livro, é comparada à urina entre as pernas, que seca (em recriação impressionante do "riverrun" de Joyce). O poema sobre prólogos chama-se nada menos do que "PROLAPSO" e trata dos prólogos:

a história da torrada que cai
sempre do lado da manteiga
eu uma vez que ainda
tenho conhecimentos para isso
ponho manteiga dos dois lados
pão no meio manteiga daqui manteiga dali
assim sempre dá certo
mas não me digam que o texto o corpo do texto
tem de levar
dois prólogos um de cada lado
e depois até podem trocar
ou até que os prólogos são um bem tão valioso
que untam e dão gosto como a manteiga
e o corpo do texto serve só
para eles terem razão de existir

Nesse ponto, Pimenta volta a fazer suas zombarias com a dialética, como a história do jovem que engole o centro de gravidade de uma garrafa e fica com dois centros, que recolhi em A encomenda do silêncio. Neste livro, temos um cacto com duas cabeças ("PÊPÊPÊ"), e a dialética é explicada, como em outras passagens, com a fisiologia: "a natureza dual do homem/ comer e cagar penso eu".
Outro tema recorrente, o passado islâmico de Portugal, revisitado pelo autor de Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta:

acho que isto está sempre
a prometer o começo,
mas verdadeiramente
ainda não começou.
porém dizem que agora
ali para os altos da Ajuda
para junto da Al Medina
há de novo um Al Berg [HARPÍLOGO]

O livro mostra a imaginação de Pimenta em pleno vigor, com versos ora subversivos: "e a terra, que é redonda" ("QUE É ISTO?"), ora pungentes: 

vale também para o Minotauro,
que de humano teve a vida, [SETE PANFLATOS E UM PROVÉRBIO COLOMBIANO]

ou eu estou morto
ou muito ferido...
vamos tirar as dúvidas:
revisor! ah, perdão, Revisor,
Senhor Revisor!

nada.

morreram todos, o revisor também.
e eu? não sei, a certidão é que dirá. ["QUE É ISTO?"]

Termino com esta citação do "RETRATO", que é algo como um "What then?", de Yeats, porém melhor. O papel que o fantasma de Platão (que não é um filósofo muito apreciado por Pimenta...) desempenha para o poeta irlandês é aqui assumido por ninguém menos do que Parmênides:

ou seja, o tempo 
por dentro deixa tudo como está;
ou é por fora?
não era isto, por dentro, ou por fora?
mas é isto, é, é isto:
já Parménides dizia aquela boca:
ora bem, vou falar! e tu escuta
e guarda bem as minhas palavras;
pouco dá onde começo,
porque lá vou voltar sempre.