O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Adília


I

É preciso ser muito idiota
ou muito poeta
para afirmar que a poesia é o amor;

(a poesia, evidentemente, é o amor
e o ódio também o é;
quando combinamos os dois
o prato ainda não resulta na poesia)

é preciso ser muito louco
ou muito poeta
para aconselhar alguém a escrever poesia;

(é óbvio que a loucura escreve
tanto quanto a poesia,
mas se juntamos as duas
não temos ainda o poeta)

mencionar estrelas no poema é o cúmulo,
nem os astrólogos o fazem,
ocupados que estão com a indústria do entretenimento
e as eleições nas grandes potências;

(sabe-se desde as cavernas
que tanto as sombras quanto os versos
vêm da nostalgia das estrelas)


II

Talvez escrever poesia seja apenas perder a gata
e ganhar as garras
o cio
o salto
sobre a presa mínima


III

A poeta morreu antes do fim do ano,
deixou a Física antes do fim do curso,
esqueceu os planos ao sair à rua,
queimou os projetos antes de pegar os fósforos,
não sabia qual era a frente
onde trocaria de lugar com o carro e os bois,
não chegou a terminar a viagem
e a troca de lugares
e porque recusou tanto o fim
podemos nela recomeçar.


IV

Ao verso final
da obra reunida
chama-se morte;

pode-se dizer
o mesmo
do inicial.

Ao verso final
da obra reunida
chama-se golpe,

aquele que acerta
o plexo solar
e dobra o corpo

em mil estrelas;
diga o mesmo
sobre as estrelas.


V

Se tivesse sido um homem
que desinteressante teria sido.

É o que se diz quando se vê um homem poeta:
quão mais interessante seria
se fosse uma mulher.


VI

os livros, ou seja, a carne,
o osso e mais algo
que abraça ou fere
como os poemas;

os livros, ou seja, terra,
ares e águas e mais outra coisa
para meios de transporte
como os poemas;

os livros, ou seja, o abraço,
a ferida e o transporte
que juntos
não compõem aquilo
que os poemas
tampouco logram.


VII

Sabemos que morreu uma poeta
porque os jornalistas não sabem o que dizer
e os influencers não dizem nada,
embora especialistas em tanto dizer
sobre o que ignoram por completo.

Sabemos que morreu uma poeta
porque pararam de lhe perguntar
suas influências, seus amores,
desistiram de saber o conceito
e a finalidade da poesia,

embora ela inteira se manifeste
na morte da poeta,
compartilhando entre nós
o ser e o não-ser.


VIII

Tenho dois gatos: o Breu e a Brilho. O preto puxa o papel higiênico e o desfaz em tiras antes de saltar para as alturas do box; a frajola observa tudo ao lado do tapete do banheiro. 
Breu nas alturas, Brilho ao rés do chão.
Aprende-se muito sobre poética quando se vive com gatos.


IX

Às vezes você escrevia como as crianças.
Quem não gosta de poesia não tem desculpa alguma.


X

A poeta morre,
editores que nunca a publicaram 
desdenham do cadáver
que jamais verão.

Lembro do orgulho de Vitor,
dizer que foi o primeiro editor da poeta.

Também foi o meu,
mas essa é a única coisa em comum
que tive com a poeta

além do fato
de que estamos sempre a terminar.


XI

Declamações nas aulas de português, ou
lições caladas sobre Portugal,
essenciais para aprender
que para os fascistas somos cães de rua
e aos habitantes da rua
eles enforcam.


XII

Quando os poetas não se internam
ou saem da internação, o que fazem?
Derrubam asilos? Arrombam
suas portas? Abrem o poema

para o leitor entrar se quiser
talvez ele não tenha outro refúgio
para pensar ou espreguiçar-se ou cantar
e para ouvir os cães do lado de fora
e poder chamá-los para dentro se quiser
e saírem juntos quando lhe apetecerem
e morderem juntos
se atacados
depois de terem entrado no poema.

Há os poetas que constroem os asilos,
mas esses não entram
em minhas categorias poéticas.


XIII

Ignoro se gostam mais da sua obra em Portugal, em Angola, em Moçambique, no Brasil ou alhures.
O lugar onde apreciam sua obra certamente torna-se alhures.


XIV

Por outro lado, nunca sabemos quando nascem poetas.


terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCVII: Flávio Dino e a Lei de Anistia

O Ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, propôs em 15 de dezembro último dar repercussão geral a um caso dos crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que chegou ao STF por meio do recurso do Ministério Público Federal em processo que considerou anistiado o tenente-coronel Licio Maciel. Esse militar é um dos listados pela Comissão Nacional da Verdade entre os 377 agentes de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar.

O portal do Supremo Tribunal Federal está desatualizado no momento em que escrevo, porém o Migalhas publicou a importante decisão.

O Ministro cita as Convenções da ONU e da OEA sobre desaparecimento forçado, bem como a 1a. Convenção de Genebra e considera que o crime em questão é permanente e não foi atingido pela Lei de Anistia (mesmo se considerarmos que ela se presta a perdoar crimes de lesa-humanidade), pois o crime de ocultação de cadáver continua a ser praticado enquanto persiste o desaparecimento; transcrevo este trecho:


[...] existe o crime enquanto não cessar a permanência, o que reforça a certeza de que a Lei da Anistia não atingiu, nem poderia atingir, os fatos posteriores à sua vigência.

A Lei da Anistia é válida para os fatos pretéritos, entretanto não alcança aqueles crimes em execução depois da sua aplicação. Não há ultratividade para a Lei da Anistia, pois isso constituiria uma espécie de “abolitio criminis” prospectiva, inexistente no Direito pátrio.


A decisão, que expressamente ocorre em obediência às normas de justiça de transição, recebeu destaque em boa parte da imprensa, com razão, tendo em vista  o atraso do STF, de quase uma década e meia, em julgar os recursos interpostos contra a lamentável decisão na ADPF 153, que o Conselho Federal da OAB propôs a respeito da Lei de Anistia de 1979, bem como a nova ADPF que o Psol propôs contra aquela lei. A decisão infausta ocorreu em abril de 2010, quando o STF considerou, contra o texto expresso da norma, contra a Constituição de 1988 (que prevê a anistia só para as vítimas dos atos de exceção) e o Direito Internacional aplicável que os crimes de lesa-humanidade da ditadura teriam sido anistiados. 

Mais tarde, no mesmo ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em denúncia feita pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (uma organização da sociedade civil), determinou que aquela lei era inaplicável para esses crimes.

Dos debates e movimentações políticas gerados por essa decisão internacional, vieram as leis de criação da Comissão Nacional da Verdade e de Acesso à Informação em 2011.

Enquanto o STF não julga em definitivo a ADPF 153, o restante do Judiciário, em regra, vem indeferindo as denúncias criminais do Ministério Público Federal que têm aqueles crimes como objeto. Neste caso, um dos réus, o tenente-coronel Sebastião Curió, também listado pela CNV como responsável por desaparecimentos na Guerrilha do Araguaia, não pode mais ser condenado porque faleceu (não sem antes ser recebido e homenageado pelo militar que ocupou a presidência da república antes de Lula e hoje é investigado por golpe de Estado).

A notável lentidão do STF anda de mãos dadas com o ciclo da vida e da morte, tendo em vista que o falecimento dos réus, nestes casos de crimes cometidos há décadas, também livra-os da responsabilidade penal.

Escrevo esta nota porque li algumas notícias que deixaram de lado que Dino está aplicando a jurisprudência da própria Suprema Corte, em posição comum  com o Ministério Público Federal. Até encontrei comentários de que o Ministro estaria inovando no tribunal com entendimentos esdrúxulos. No entanto, incorrem em erro esses que pensam assim.

Para esclarecer, cito meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, escrito em 2023, antes da decisão mencionada de Flávio Dino. O livro trata, entre outros assuntos, do imbróglio do (não) julgamento da Lei de Anistia, inclusive dos


[...] casos de crime permanente de sequestro durante a ditadura militar, em casos em que a Lei de Anistia não era aplicável. Nesse crime, o equivalente no Brasil ao desaparecimento forçado, a vítima desaparece e não é encontrada, o que impede o início da contagem da prescrição criminal, segundo decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal na extradição pedida pela Argentina do tenente-coronel uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, em razão de desaparecimentos forçados no âmbito da operação Condor.

Nessa extradição, o próprio procurador-geral da República, Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, considerou, em fevereiro de 2008, que o crime permanente de sequestro não estava prescrito: [...]


Dino não está rasgando, pois, a jurisprudência do STF. Apesar disso, alguns querem desqualificá-lo por causa de seu passado. Sabe-se que ele deixou a magistratura, na qual ingressou por concurso público, para entrar no sistema político, o que fez também com sucesso: venceu eleições para deputado federal, governador de Estado e para Senador e foi Ministro do terceiro governo de Lula; na maior parte desse tempo ele pertenceu ao PCdoB, depois migrou para o PSB.

Flávio Dino atuou politicamente no campo da esquerda, porém não sujou a toga, quando foi juiz de carreira, para trocar decisões judiciais por cargos políticos. De volta à magistratura, e agora no tribunal mais alto do país, Flávio Dino neste caso está apenas a aplicar o Direito de forma tecnicamente correta. 

Dito isso, é verdade que, em geral, é a esquerda que, no Brasil, deseja cumprir o Direito aplicável aos crimes de lesa-humanidade e reconhecê-los como insuscetíveis de anistia. 

No entanto, o que deveria ser objeto de dúvida e constrangimento não é essa postura da esquerda, mas o fato de boa parte da direita (inclusive seus porta-vozes na imprensa) não se conformar com a eficácia das normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, preferindo a elas o louvor aos crimes de lesa-humanidade, incompatível com a democracia.