O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: Do incêndio nas ruas ao choro marginal, música que ouvi

No fim de 2013, fiz uma retrospectiva com frases de décadas anteriores que foram ouvidas novamente naquele ano, frases da ordem que tinham voltado à ordem do dia (se é que algum dia saíram de todo) em razão do anacronismo político que tomou conta dos poderes instituídos após as manifestações populares.
Resolvi, desta vez, fazer uma de caráter bem pessoal,  a música que vi, e que foi um consolo e um estímulo. Vi outras apresentações, mas foram estas que mais me marcaram. Curiosamente, a maior parte ocorreu no segundo semestre, que foi a época mais difícil e mais gratificante do ano para mim.
Todas as apresentações se deram em São Paulo, com exceção da Butterfly no fim do ano.

16 de janeiro: Ney Matogrosso e banda no SESC. Queria ver "Atento aos sinais"; fui à bilheteria no dia em que começariam a vender os ingressos quatro horas e meia antes da abertura das vendas. Dessa forma, consegui comprar dos últimos lugares... Esse show era abertamente político no início, com imagens da cidade, de revolta (especialmente da Primavera Árabe) e canções sobre o "incêndio nas ruas" ("Incêndio", de Pedro Luís). Ele o iniciou no começo de 2013, antes da ocupação dos Congresso Nacional pelos índios e as manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre. Ney estava, de fato, atento. Como antes. Desde os Secos e Molhados, ele mostrou, em plena ditadura militar, inquietação política, e pela via das políticas de gênero, o que era muito ousado nos anos 1970. E ainda pode ser ousado, tendo em vista o encaretamento do Brasil neste século. Pela quarta música, o show perdia a abordagem política e as músicas abordavam, em geral, relacionamentos amorosos (entrevista que deu a este ano à televisão portuguesa, com bobagens sobre o bolsa-família, mostrou certa distração). Apesar disso, também nas canções de amor, embora algumas não tivessem muita qualidade musical, via-se a inquietação do cantor: além dos compositores que ele gravou mais de uma vez, como o falecido Itamar Assumpção ("Noite torta", "Isso não vai ficar assim"), Vitor Ramil ("A ilusão da casa"; no bis, "O astronauta lírico"), Cazuza (no bis, "Poema"), ele cantava pela primeira vez Paulinho da Viola (vejam a dança em "Roendo as unhas") e compositores novos como Criolo (o interessante retrato erótico urbano de "Freguês da meia-noite"). Com outro compositor jovem, Vitor Pirralho, que participou de Índio é Nós, e sua "Tupi fusão", o dado político voltava explícito, e era o momento mais interessante de dança da apresentação. A movimentação cênica de Ney Matogrosso continua surpreendente, e tanto ela quanto a condição de sua voz parecem desmentir o fato de que ele é septuagenário. Ele está incomparavelmente melhor do que os seus companheiros de geração (apesar de não ter levado uma vida exatamente saudável até os cinquenta anos), que ou perderam a maior parte dos recursos vocais, ou simplesmente se resumem a cantar o já cantado, enquanto ele continua procurando novo repertório. Lembro de uma meio soprano falando, nos idos de 1992, aproximadamente, que Ney Matogrosso logo iria perder a voz, pois não se poderia cantar agudo assim por mais de dez anos. Ora, ela há muito não se apresenta mais e ele, dez anos mais velho, continua na ativa... O último bis (deu quatro) foi o samba "Ex-amor", de Martinho da Vila.

19 de abril: Caminhada Índio é Nós. Copio o "Índio é Nós": "A Caminhada partiu do MASP, sempre com música capitaneada pelos integrantes do Oficina (especialmente pela voz de Letícia Coura; ao lado, a única foto que consegui mais ou menos tirar dela, de óculos escuros) para o  Cemitério da Consolação, onde se fez um ritual para Mário de Andrade e Oswald de Andrade; seguiu pelo Parque Augusta, que foi abraçado pelos participantes; terminou no Teatro Oficina". Eu estava lá. Letícia Coura puxou, durante horas, os cantos antropofágicos e a "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, que recebeu estrofe extra de Fabio Weintraub e concluía a peça Walmor y Cacilda 64 - O RoboGolpe, de José Celso Martinez Corrêa. Esse uso político da música prosseguiu no Teatro Oficina, onde, no 19 de abril, se fez uma performance a partir do Choros 10 de Villa-lobos (o final pode ser visto neste vídeo) e de cantos indígenas. Não foi uma "execução" de Villa-Lobos, o que seria careta nesse contexto, e sim uma celebração, uma revolução onde se dança.

3 de agosto: O maestro Rinaldo Alessandrini no Teatro Municipal de São Paulo. Ele é o maior maestro para certo repertório do barroco italiano, mas veio reger o coro e a orquestra do teatro em um repertório completamente diferente: Mendelssohn (a abertura Mar calmo e viagem próspera, a ária "Infelice! Già dal mio sguardo" - a solista foi Monica Bacelli - e o Salmo 42) e um autor contemporâneo, Lauridsen, cuja peça, de linguagem conformista, ele interpretava pela primeira vez, "Lux Aeterna". O coral do Teatro cantou bem. Valeu pelo Mendelssohn.

4 de agosto: A soprano Natalie Dessay e o barítono Laurent Naouri, com o pianista Maciej Pikulski. Era um belo programa de canção francesa (Poulenc, Fauré, Duparc...) com duos e solos. Dessay não tem a mesma voz dos anos 1990, mas isso não importa nada para esse repertório, em que ela pôde ser mais expressiva do que em muitos papéis da ópera romântica francesa. Acho que ela está muito certa em buscar um repertório novo, agora que suas possibilidades vocais mudaram, em vez de simplesmente encerrar a carreira, como fez Callas. E é de fato, muito careta e um tanto sádico este público de ópera que exige que as sopranos aos 50 cantem os mesmos papéis de jovens que faziam aos 20. Não sei se a celebridade dela atraiu um público que queria mais aparecer do que ouvir (coisa comum na Sala São Paulo), mas a plateia causou problemas. No pior momento, um desvairado na quarta fila da plateia gritou "maravilhosa" quando uma das canções terminava. Ela se assustou, provavelmente sem compreender o que havia sido dito. Na peça seguinte, errou e teve que recomeçar, pedindo pardon. Sabe-se que houve tempos em que os compositores gostavam de aplausos até no meio da música, e é o que, por exemplo, Mozart esperava e contou em uma de suas cartas. Em boa parte do repertório, no entanto, esse procedimento pode tirar a concentração do artista, especialmente se os acordes não são nada óbvios. Mas que poesia a da cantora - como em "L'invitation au voyage", que Duparc compôs a partir do poema de Baudelaire. A batida "Après un rêve", de Fauré, ficou muito interessante nos gestos dela. Com Naouri, tão bom no repertório barroco francês, eu já tinha as canções de Ravel, e ele reafirmou sua adequação completa ao estilo. Pikulski não estava nada abaixo dos famosos recitalistas. Naouri, no seu disco de jazz "Round about Bill", havia gravado "Minha", de Francis Hime, e, desde então, segundo ele mesmo, melhorou seu português, língua em que ele falou com a plateia. Um bis foi a ária das Bachianas Brasileiras n. 5 (sem o Martelo). Naouri cantou a parte central, com letra, e Dessay fez o vocalize, que ela havia gravado recentemente no infeliz disco de música brasileira, "Rio-Paris", cometido por Liat Cohen, que acompanhou Dessay (que está muito bem; ela, apenas, justifica a gravação) e duas cantoras sem voz e sem um bom português. No final da ária, que acabou sendo o último número da noite, o agudo quebrou, como podem ver no vídeo, mas nada grave. Depois do concerto, uma fila quilométrica para pegar autógrafos. Na minha frente, um casal em que o marido disse não apreciar muito a soprano, e sim o barítono. Gosto de ambos, mas disse que achava que ela era melhor intérprete. Nessa noite, ela mostrou que, de fato, chegou a um nível em que tornou até o silêncio expressivo, o que é raríssimo em um cantor. E o uso do silêncio é talvez o que a música tenha de mais alto e necessário a ensinar à literatura, segundo Beckett, para a dissolução da "verdadeiramente arbitrária materialidade da palavra", dando o curiosíssimo exemplo da Sétima Sinfonia de Beethoven, obra que significava, para Beckett, sons conectando abismos de silêncio.

6 de agosto: Hamilton de Holanda Trio na Praça das Artes. O genial bandolinista e compositor tocou várias peças, inclusive alguns de seus Caprichos (o disco foi lançado neste ano; eles também podem ser baixados com a partitura nesta ligação). No contrabaixo, André Vasconcelos e, na percussão, Thiago da Serrinha, que tiveram seus momentos de solista. A apresentação trouxe uma execução notável de "Sinhá", de João Bosco e Chico Buarque. Hamilton de Holanda disse já essa canção considerar um clássico da música brasileira. Surpreendeu-me "Trocando em miúdos", de Francis Hime Chico Buarque, que eu nunca tinha ouvido com ele. "O que será (à flor da pele)", de Chico Buarque, também ficou impressionante; vejam aqui o que ele faz no registro agudo do bandolim a partir de 5'36''; é certo que, sem a letra enigmática,a música pode ser e se torna outra coisa, mais afirmativa do que na gravação célebre com a voz do compositor e a de Milton Nascimento. Não acho isso um problema, porém. O intérprete, especialmente em gêneros em que ele tem mais liberdade, e é a esmagadora maioria dos casos na música popular, pode mudar o caráter da música, se o resultado for convincente em termos musicais e dramáticos. E isso ocorre também na "música clássica" (na Vida de Rossini, Stendhal escreve "Quando Madame Pasta canta Rossini, ela empresta ao compositor as qualidades que a ele faltam"). Além disso, pensando em comparações entre versões cantadas e instrumentais, dificilmente um cantor poderia emular a variedade de ataque e de dinâmica (o recente disco com Diogo Nogueira - o cantor é bem menos criativo musicalmente e variado em termos interpretativos do que o instrumentista - ressente-se disso) que Hamilton de Holanda logrou nessa música e no "Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius; o solo do percussionista, por sinal, é mesmo de fazer a plateia aplaudir no meio da música, o que aconteceu e é bem-vindo neste caso. No final, aparece o tema de "Berimbau", outro grande afrossamba dos mesmos autores.  

25 de agosto: A meio soprano Joyce DiDonato acompanhada pelo pianista David Zobel na Sala São Paulo. A apresentação começou com uma nota de tensão: a meio soprano estava resfriada e contou que, de manhã, não conseguia vocalizar; ela nunca havia cancelado por motivo de saúde, mas chegou a pensar nisso. No entanto, disse que foi muito bem tratada (simpática, disse que se tivesse que ficar doente de novo, teria que ser no Brasil) e conseguiu sentir-se apta para cantar. Por causa da doença, trocou a última peça, que seria o acrobático final da Cenerentola, de Rossini, pela ária "Riedi al soglio", do mesmo compositor, também muito difícil, que está em seu último disco, o fantástico "Stella di Napoli". Um crítico de certo jornal de São Paulo duvidou que ela estivesse doente, pois não ouviu nenhum sinal do resfriado. Ele não prestou atenção. No final da primeira parte do recital, no entanto, DiDonato fungou entre as pausas da virtuosística ária "Dopo notte", do Ariodante de Händel (que ela gravou com Alan Curtis na regência) e, no começo da segunda parte, sua voz ficou instável em um agudo sustentado na cadência da ária de Bellini, "Dopo l'oscuro nembo", de Adelson e Salvini. Tudo muito discreto, porém, e, tão bem sucedida quanto no recital que deu na mesma sala no ano passado, ela confirmou que é uma das maiores cantoras vivas, e está em seu auge vocal. Especialmente interessantes foram as canções de Santoliquido, compositor italiano do século XX que eu - na minha ignorância do repertório da música de câmara italiana - nem sabia que existia; ouçam esta "Tristezza creposcolare". Além disso, ela, muito simpática, detém uma grande capacidade de comunicação com o público, não só ao cantar, mas também ao falar e explicar as peças em inglês. Depois do concerto, outra fila quilométrica para pegar autógrafos.

31 de agosto: A soprano Mariella Devia e o regente Giuseppe Sabbatini no Teatro São Pedro, com a orquestra do Teatro. Eu não sabia que Sabbatini, que era um tenor, havia se tornado regente. E não tinha ideia de como Devia estava cantando depois de décadas de carreira. O repertório era muito exigente: a ária de Julieta em Os Capuletos e os Montéquios, de Bellini, a "Casta diva" da Norma, do mesmo autor, a primeira ária do papel título de Lucia di Lammermoor, de Donizetti; de Puccini, a ária de La rondine, a ária do suicídio de Liù, em Turandot; de Manon, de Massenet, "Adieu notre petite table" (com o si bemol agudo do recitativo) e a valsa da Julieta no Romeu e Julieta de Gounod. Ela tem 41 anos de carreira, mas a voz dá poucos sinais da idade (algumas notas altas ficaram um pouco mais estridentes); fiquei impressionado especialmente com a cadência da "Casta diva", ela simplesmente emenda as frases num só fôlego, de 6'01 a 6'16". Nessa respiração, nesse apoio, está um dos fatores de sua longevidade, além da escolha de repertório. Mais adiante, vejam como ela cantou o segundo verso da cabaletta, ornamentando-o; a partir de 8'20'', quase levantei da cadeira. Seu impacto é vocal, antes de tudo - ela nunca foi uma grande atriz. É basicamente o contrário de Dessay, que ousou cantar coisas não muito apropriadas para sua voz (especialmente La Traviata, que acho que foi a ópera que acelerou seu declínio vocal) e teve que abandonar (ao menos provisoriamente) os palcos de ópera. São duas éticas artísticas diferentes, e respeito os dois tipos de cantores: os que se queimam para atravessar possibilidades novas (como Callas, que cantou profissionalmente em ópera por 22 anos), e os cautelosos, prudentes (para ficar entre as sopranos, um exemplo é Mirella Freni, que aos 70 ainda se apresentava em ópera). No bis, Devia cantou "Addio del passato", da Traviata de Verdi (só uma estrofe, o que aprovo) e a Valsa da Musetta, de La Bohème, de Puccini.

20 de setembro: Salomé, de Richard Strauss, no Teatro Municipal de São Paulo. Já tinha visto John Neschling reger essa ópera em concerto com a Osesp. Não foi uma ocasião feliz, pois o maestro só parecia conhecer as dinâmicas forte e fortíssimo, o que me fez temer pela saúde da soprano. Desta vez não foi o mesmo, e a regência tendeu a soar desvitalizada como das outras vezes que o vi no Municipal (especialmente na Aida, que foi muito bem cantada, inclusive por Gregory Kunde, que se metamorfoseou vocalmente de Arturo para Radamés). Annemarie Kremer cantou bem o exigente papel - ela até emitiu audivelmente as notas graves do "mistério da morte" ("Geheimnis des Todes", a partir de 12'30'' neste vídeo), numa região difícil para qualquer soprano. O tenor de caráter que cantou Herodes, Peter Bronder, é um veterano e, muito inteligente, mostrou habilidade em evitar as notas mais altas do papel sem dar na vista. Na récita do dia 16, ele tentou cantar a frase "Es wird Schreckliches geschehn",  "algo terrível vai acontecer" e, de fato, ocorreu. Kremer, no dia em que vi, estava com o agudo mais seguro do que nesse aúdio. Mark Steven Doss foi vocalmente soberbo como João Batista. Eu queria muito ver Iris Vermillion, que cantou Herodíade, meio soprano de repertório muito interessante. Ela teve seu auge nos anos 1990, e continua com presença cênica - e as notas para cantar esse papel.

21 de setembro: Quarteto de Cordas de Leipzig no SESC. Outro concerto baratíssimo no SESC, e com meu quarteto de cordas preferido. Na primeira vez que o vi, no século passado, foi numa apresentação gratuita na Sala dos Arcos no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Era um programa só de expressionismo alemão. Ficou lotadíssimo, claro, e acabei sentando no chão, perto do violoncelista, Matthias Moosdorf. O Quarteto veio a São Paulo há poucos anos para um brilhante concerto infeliz na Hebraica, em que o público reduzido fazia tanto barulho que parecia maior (o concerto começou com um soco que um homem sentado na primeira fila deu na cadeira; não fazia parte da execução, a peça inicial era de Haydn, se bem me lembro, não de John Cage). Desta vez, o repertório foi russo: Lourié, Stravinsky, Chostakovich e Borodin. Uma lembrança de como o Quarteto de Leipzig é eclético e não se limita ao repertório germânico. Nunca gravaram, porém, Villa-Lobos. Eu não gosto, normalmente, do famoso Oitavo Quarteto de Chostakovich: em geral, os intérpretes perfumam a flor, tornam mais melancólico aquilo que já é depressivo, e ele soa simplesmente exagerado. O Quarteto de Leipzig me surpreendeu completamente, pois interpretaram-no de maneira mais seca, sem ceder ao sentimentalismo fronteiriço dessa partitura. Para mim, foi uma revelação completa de possibilidades de uma peça que já conhecia. A outra revelação foi o o Segundo do Borodin, um grande momento do romantismo russo, que eu desconhecia e o Quarteto já havia gravado. Acabei comprando o disco. Depois do concerto, deram autógrafos (são muito simpáticos, além de tudo) e mencionei o que achei do Chostakovich - a melhor interpretação que já tinha visto dessa peça (não que eu conheça muitas...), superando o Emerson Quartet, que vi nesta cidade.

15 de outubro: Les Arts Florissants no MASP. O grupo, de formação flexível, veio bem reduzido: além do maestro William Christie, o maior intérprete de tantas páginas do barroco francês, que regeu e tocou cravo, vieram a soprano Élodie Fonnard, o barítono Marc Mauillon, as violinistas Florence Malgoire e Catherine Girard, Myriam Rignol na viola da gamba e Thomas Dunford no alaúde. Era um repertório de câmara, com árias e trechos de cantatas, de Campra, Couperin, Bernier, Campra... Com alguns números instrumentais. As violinistas começaram mal, mas depois da primeira peça concordaram em tocar na mesma tonalidade. Embora fosse um recital de câmara, havia movimentação cênica dos cantores, e muito bem lograda. Destacou-se, porém, Mauillon, que eu já tinha visto ao vivo num dia infeliz para ele (era inverno, ele estava resfriado, praticamente se refugiou atrás dos outros cantores na Selva Moral e Espiritual de Monteverdi). Ele é um artista até a ponta dos pés; quando cantou, reclinado perto da plateia, o trecho de Les femmes de Campra, "Fils de la nuit et du silence", a noite e o silêncio fizeram-se ouvir. Sua voz é pequena, mas, neste repertório, isso é uma vantagem. No entanto, quem mais me impressionou foi Thomas Dunford, jovem estrela do alaúde que eu nunca tinha ouvido, e que gerou tantas sonoridades diferentes em "Les voix humaines", de Marin Marais, que, de seus dedos, uma comunidade parecia nascer. Até William Christie pareceu comovido.

13 de novembro: O contratenor Phillipe Jaroussky e o Ensemble Artaserse na Sala São Paulo. A voz de Jaroussky é uma das maiores fontes de beleza vocal de hoje, especialmente no piano e no pianíssimo. O repertório foi todo dedicado a Vivaldi, o que ocorre também no seu último disco, "Pietá", o terceiro de seus discos solo em que somente interpretou esse "grande compositor", como lembrou o músico. Marcou-me o moteto "Longe, mala, umbrae terrores"; essa peça exige a agilidade que esse contratenor possui, e um tipo de veemência que ele encontra mais nos acentos do que na força. Vejam como ele interpretou de forma inteligente esta ária de Vivaldi; ele impressiona porque não precisa de muita potência para expressar afetos mais intensos. Seria interessante fazer um estudo de retórica da interpretação desse cantor, que é do raro tipo que faz da delicadeza seu argumento mais irrefutável. Ele sabe espanhol (ouçam esta entrevista que concedeu pouco antes na Argentina) e ousou dizer algumas frases em português. Depois do concerto, mais uma fila quilométrica para pegar autógrafos.

21 de novembro: André Mehmari e Gabriel Mirabassi no SESC. Mehmari no piano e Mirabassi no clarinete, tocaram principalmente músicas do brasileiro. Os dois haviam se conhecido por meio de Guinga e já haviam gravado juntos o disco Miramari. Lançavam nessa ocasião o DVD. Neste ano, vi Mehmari tanto sozinho quanto com  Hamilton de Holanda, mas quero escrever um pouco aqui somente sobre esta apresentação, um tanto atípica. Além da excelência dos dois, havia a nota curiosa de Mirabassi, um dos maiores clarinetistas do mundo, volta e meia sublinhar que Mehmari não era normal, de tão prodigioso. Ele está certo, claro. Vejo esse prodígio na beleza de certas canções (o lirismo de "Quando em Gubbio", por exemplo) e no pensamento musical (o uso da citação e da memória no cruzamento de linguagens musicais). Mehmari, de fato, é genial, e a forma como ele faz o que chama de mestiçagem, uma fusão de diferentes linguagens musicais, vai muito além do crossover e deixa bem longe tentativas semelhantes de certos músicos do jazz. Eu o vi, neste ano, acho que no Itaú, falar que foi desafiado em 2013, na plateia, a improvisar como se fosse Chiquinha Gonzaga a tocar uma ária de Mozart. Ele fez algo fenomenal com "Voi che sapete", uma das árias do personagem Cherubino, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart. Pois bem: essa criação entrou no recente disco "Ouro sobre azul", dedicado a Ernesto Nazareth, logo na primeira faixa. Nesse disco, apenas a tentativa de enxertar Tristão e Isolda não me parece funcionar - Wagner soa como um invasor na casa musical de Nazareth, que não era exatamente Bayreuth. No entanto, exceto isso, o disco é esplêndido, e vê-se que é um compositor revisitando outro - a execução é uma conversa entre criadores. Entendo que essa facilidade de atravessar fronteiras gere ressentimentos, especialmente dos "compositores clássicos" contemporâneos brasileiros (uma espécie humana que, em geral, adora fronteiras e fiscais de imigração entre gêneros). Vi que alguns o veem como um invasor que vem de outra área (a música popular), por mais que seu estúdio se chame Monteverdi, e, pior ainda, um invasor que recebe encomendas da Osesp e de músicos estrangeiros, como Andrea Lucchesini, que trabalhou com Berio e agora interpreta com Mirabassi as Scarlattianas de Mehmari. Ele se incomoda com as críticas dos fiscais de imigração, mas acho que elas são um sinal de sucesso. Callas dizia que, quando parassem de assobiar para ela (assobio, em ópera, equivale a vaia), saberia que estava acabada.

30 de novembro: Madame Butterfly, de Puccini, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu somente tinha visto essa ópera nos anos 1990, nesse mesmo palco, com Leila Guimarães no papel título. A atual montagem era de Carla Camurati (que deixa em 2015 este Teatro para se ocupar das atrações culturais das Olimpíadas) e havia sido originalmente encenada em 1999 no Alfa Real. Era muito delicada na ênfase de elementos de papel, como borboletas de origami, até o final, quando o pressuposto político tornava-se evidente: era uma ópera de denúncia contra o imperialismo dos EUA: a esposa de Pinkerton simplesmente rouba a criança. No final, Camurati foi vaiada por uma pequena claque e aplaudida por quase todo o público. Talvez a claque fosse composta por pessoas simpáticas a outro(s) encenador(es) que queira(m) dirigir o Teatro. O maestro Isaac Karabtchevsky não estava exatamente na praia dele; as oportunidades de lirismo dessa ópera passaram meio em branco na orquestra. Mahler, certamente, o inspira mais. Os cantores, felizmente, estavam mais afinados com esse repertório, como Hiromi Omura, que dominava cada gesto, vocal e cênico, do exigente papel, que mantém a cantora em cena praticamente todo o tempo, desde sua entrada. É uma ópera tão sopranocêntrica quanto a Traviata. Os tenores estavam muito bem: o Pinkerton era Fernando Portari. Assisti à estreia desse tenor no Teatro Municipal em um papel comprimário da ópera Manon Lescaut, também de Puccini. Ao longo desses anos de carreira, ele ganhou em volume vocal sem perder o agudo e a mezza di voce. Sua segurança musical continua inatacável. Sérgio Weintraub confirmou sua desenvoltura cênica nesses papéis cínicos; vocalmente, ele foi um Goro que poderia, sem problema algum, ter cantado o Pinkerton. Seu filho, David Weintraub, interpretou o filho de Butterfly (e poderia ter confirmado as suspeitas de Sharpless - bem cantado por Rodolfo Giugliani - sobre a infidelidade da japonesa...) Quando as borboletas de origami desceram e oscilaram sobre o palco, ele brincou com elas com naturalidade.

Em dezembro, vi no cinema uma apresentação do Metropolitan Opera House da ópera Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, regida por James Levine. Acho que chorei meia hora, no fim do segundo ato, e do quinteto até Sachs abrir o prêmio no terceiro ato. É muito comovente como Wagner, que ficaria tão reacionário, inclui o povo na história, e como é o povo que acaba por decidir o prêmio, função que era reservada aos Mestres. Creio, porém, que não devo incluir mais nenhuma consideração aqui sobre os Meistersinger, já que assisti à apresentação via cinema...


Agora, quatro entradas para um evento excepcional, que teve sua primeira edição em 2014. Queria ter visto várias coisas do primeiro (espero que continue!) Festival SESC de Música de Câmara. Uma iniciativa do SESC-SP, cuja programação cultural é a melhor do país - e a preços muito acessíveis (doze reais). Queria ter visto vários músicos (inclusive o Brasil Guitar Duo), mas o trabalho e os ensaios não me permitiram. Consegui, porém, ver estes:

27 de novembro: Anonymous 4 no Festival SESC de Música de Câmara. Esse conjunto vocal feminino é simplesmente o melhor do mundo no seu repertório. No concerto, as cantoras privilegiaram o repertório medieval, com obras de autores anônimos, Hildegard von Bingen ("O quam mirabilis est" e "O rubor sanguinis", talvez o ponto mais alto do concerto), com algumas contemporâneas. Cada uma das cantoras teve um solo, exceto a contralto, e se ouvia o porquê: ela cantou com pouquíssima voz; às vezes, parecia ausentar-se completamente e, quando tinha que cantar mais forte, o vibrato soava sem controle. Contudo, o grupo continuava excepcional em termos de homogeneidade de som e de prática de conjunto. Provavelmente foi a última chance de ouvi-las no Brasil, pois encerrarão a carreira em 2015.

28 de novembro: Quarteto Lutoslawski no Festival SESC de Música de Câmara. Esse quarteto de cordas é um grupo novo, fundado em 2007, que eu não conhecia. No entanto, logo me chamou a atenção, quando vi a programação do Festival, em razão do repertório: além do compositor que lhe dá nome, interpretariam Schulhoff! E Penderecki (o primeiro quarteto, ainda da fase interessante desse compositor) e Marcin Markowicz, que é o segundo violino do grupo. O programa foi alterado, deixaram as Cinco Peças para Quarteto de Cordas de Schulhoff, que tem tanta vivacidade rítmica, para o fim. Antes dele, a peça de Markowicz, seu terceiro quarteto, que começava com uma frase - uma oitava descendente - que sofria diversas variações. Uma revelação. Achei que esse jovem compositor tinha pleno direito de ser tocado com os outros nomes do programa; no bis, tocaram uma breve peça que ele escreveu em homenagem a Chostakovich. O mais difícil, em termos de conjunto, era o Lutoslawski, que eles tocaram em primeiro lugar. Um desafio em termos de entrada e de variedades de ataques que a peça exige dos músicos. Mas o grupo, que estreava no Brasil, estava à altura das dificuldades. A lamentar apenas o público que não veio (o teatro estava meio vazio) e o apresentador do SESC que achou que o Quarteto era um grupo de Direito em inglês.

5 de dezembro: Kronos Quartet no Festival SESC de Música de Câmara. Trata-se de um quarteto de cordas que se distingue por seu repertório exclusivamente contemporâneo; mas, ao contrário de um grupo como o Arditti, tem um queda para o pop - talvez por isso o concerto estivesse mais cheio do que os outros que vi do Festival. Ao contrário do Arditti, ele não tem uma técnica lá muito espetacular - já a primeira peça, de Terry Rilley, "G Song", revelou dificuldades do segundo violino. No concerto, que incluiu peças que soavam como má música de filme (apenas ilustrativas ou revoltantemente açucaradas), a que talvez me tenha convencido mais foi a mais nova, de Mary Kouyoumdjian, escrita para o Kronos: "Bombas de Beirute", com música pré-gravada que evocava sons de guerra.

7 de dezembro: Os Músicos de Capella e Luis Otávio Santos no Festival SESC de Música de Câmara. O programa era integralmente dedicado a Bach - lembro que a gravação das sonatas para violino na integral Bach da Brilliant Classics são justamente a desse importante violinista (e maestro) brasileiro. As Ouvertures BWV 1067 e 1068, tão famosas, ganham muito em serem ouvidas em formações de câmara - pena que nem tudo estava perfeito em termos instrumentais (o oboé não estava em um bom dia). Foi linda a ornamentação da famosa Ária; pena que não achei nenhum vídeo com ele interpretando essa peça para indicar aqui. Na Cantata de Casamento a solista foi a soprano brasileira (também com carreira internacional) Marília Vargas, e provavelmente o Brasil não tem nenhuma outra cantora que possa fazer tão bem esse repertório. O público ficou aplaudindo entre os movimentos, mas isso não parece ter atrapalhado muito os músicos. Vejam um trecho de outra cantata, Ich habe genug, com ela, Luís Otávio Santos, e outros músicos (há um errinho a 5'54'', mas benigno).

Estou lendo agora a coletânea de ensaios de Virginia Woolf, O valor do riso, organizada e traduzida por Leonardo Fróes, que a CosacNaify lançou há pouco. O primeiro deles, "Músicos de rua", traz um elogio do ritmo e dos músicos que, nas ruas, não obstante imperfeições artísticas, revelam verdadeira devoção à música: "não é disparatado supor que os homens e mulheres que arranham harmonias que jamais vêm, enquanto o trânsito vai estrondando ao lado, sejam tão fortemente possuídos, embora fadados a nunca transmitir isso, quanto os mestres cuja eloquência fácil encanta milhares a ouvi-los." Pode haver beleza em uma execução imperfeita, quando a intenção é forte o suficiente.
Contudo, é sempre possível ouvir boas interpretações nas ruas, e uma das que pude presenciar (em outubro, mais de uma vez) foi diante de uma estação de metrô, Santa Cecília, com a flauta de Ivan Melillo e o cavaquinho de Jefferson Dias Rocha. Vendiam seu disco independente (em que tocam também Bruno Vinci, Tigará Macedo, Bruno Bertolino e o próprio Melillo), "Choro marginal", composto na maioria de clássicos, como "Atraente", de Chiquinha Gonzaga, e "Tico-tico no fubá", de Zequinha de Abreu.
De um lado, é terrível que esse repertório possa hoje ser chamado de "choro marginal". Por outro, é político que ele se faça a partir das margens. Ouvir as margens é uma função política, além de estética.

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