O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Lançamento: Cidadania da bomba, e a história da inexistência da palavra liberdade

Há poucos dias lancei um livro de contos, Cidadania da bomba, a convite de Ronald Polito, pela e-galáxia, que só publica em formato virtual, para a coleção Geleia Real, que reúne títulos de poesia, crítica, crônica e teatro.
Uma edição impressa deve ficar pronta neste semestre pela editora Patuá, de Eduardo Lacerda, com apresentação de Ricardo Rizzo, que também foi publicado na Geleia Real. A coleção inclui títulos de Marcelo Mirisola e Nilo Oliveira, Ricardo Lísias, Tarso de Melo e Victor da Rosa - sobre alguns desses autores, curiosamente, já escrevi.
Publiquei contos de maneira esparsa, porém este é o primeiro livro que publico de prosa de ficção, e para ele escrevi este release:
Um personagem vai para o interior do país pesquisar a inexistência da palavra liberdade na língua portuguesa; uma professora de matemática que pede esmolas não consegue ensinar seus alunos a calcular em quantos dias um mendigo chega à classe média; policiais que ocupam favela e recolhem pertences dos moradores treinam pontaria com a palavra “Deus”; um casal em situação de rua vive no tempo dos jornais que o cobrem. Essas e outras histórias, em que a explosão é solo em que todos pisam, compõem “Cidadania da bomba”, primeiro livro de contos de Pádua Fernandes, que já havia publicado quatro livros de poesia e um de ensaios no Brasil, em Portugal e na Argentina.
O selo Geleia Real da e-galáxia tem coordenação do poeta e tradutor Ronald Polito.

A capa, uma ideia de Fabio Weintraub, foi feita a partir de uma imagem de Gordon Matta-Clark.
Em um dos contos, a que ironicamente dei o título "República", emprego a forma de entrevista, para um programa de tevê, para contar a história do pesquisador que buscava entender a inexistência da palavra liberdade na língua portuguesa. A ex-mulher do pesquisador lançara um livro sobre ele e o apresentador de tevê não entende nada do que está sendo dito. Trata-se do elemento bem previsível do conto, reconheço. Talvez a história interesse pelo que fala da violência contra os índios, da violência no campo, da violência na falta de justiça de transição. Eis um breve trecho da entrevista:
- Muito obrigada. Você também está lindo. É verdade. Neste livro, conto a história de meu ex-marido, que buscava investigar se a palavra liberdade existia em nossa língua. Todo mundo sabia que a palavra não existia, ou julgava saber, por isso ninguém tinha estudado a questão, mas a história dessa inexistência ainda não tinha sido escrita. A própria noção de história da inexistência ainda não tinha sido criada. O estudo que ele queria fazer era duplamente pioneiro, inclusive metodologicamente, por isso ele não conseguiu financiamento. Mas vendeu tudo o que tinha e partiu para a pesquisa de campo.
- Este colar é artesanal?
- Você também está muito charmoso. Nós nos separamos nessa época. Eu não quis largar tudo para viajar com ele, que foi para o interior em busca da cidade onde foi erguido o memorial do presidente. Era a mais cara obra do país. Ele partiu pouco antes da reeleição. Bem antes de ter sido aprovada a lei da reeleição duas vezes. Ele queria entrevistar o líder dos peões que ergueram o memorial. Todo mundo conhece a história: o governo queria tudo pronto antes das eleições e a empreiteira do genro do presidente deixou de pagar as refeições dos peões, que já não podiam sair de lá por causa das dívidas de comida com o restaurante da empresa.
- E o que você acha da separação da Laura e do Roberto? Também ficou chocada?
- Ele achava que esse episódio poderia comprovar a inexistência da palavra liberdade em nossa língua. Mas precisava do depoimento do líder dos peões. Outras perguntas vinham daí: havia contradição em erguer um monumento do Estado, da Lei, com uma licitação fraudada? Contradição nas paredes, com inscrições sobre a paz, mas erguidas com trabalho forçado? Nos líderes do sindicato, todos com cargos no governo, terem chamado os trabalhadores de vagabundos? Nas pinturas com índios, depois de a Força Nacional de Segurança ter expulsado todos os que lá viviam para cumprir a medida de suspensão da existência jurídica dada pelo Supremo Tribunal? O monumento, tão contraditório, conseguiria ficar de pé? Hoje sabemos que os defeitos estruturais levaram o governo a contratar a restauração com a mesma empreiteira. Mas ele achava que o fato de o monumento ser tão precário estava relacionado com a palavra liberdade. Como ela não existia, a construção cairia, sem esteio.
Penso que a literatura é uma dessas construções que exigem a liberdade como esteio e que, por isso, ela é fundamentalmente política, mesmo quando trata de assuntos da esfera privada. Difícil construção. Imagino, no entanto, que o pouco que logrei fazer neste livro foi erguido por meio da bomba.

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