O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Uma casa comum para o Estado, os Índios, os Extrativistas e os Sem-Terra? O III Colóquio Habitat e Cidadania

Fui convidado a participar de grupo de trabalho sobre direito ao território e legislação fundiária no III Colóquio Habitat e Cidadania: Habitação no campo, nas águas e nas florestas, que ocorreu entre 12 e 15 de maio deste ano, na Universidade de Brasília. Esse GT contou com os professores Karla Hora (que o presidiu) e Ariovaldo Umbelino de Oliveira.
A comissão organizadora do evento era formada por integrantes do Grupo de Pesquisa em Habitação e Sustentabilidade do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP (HABIS/IAU/USP), do Centro de Ação Social em Arquitetura Sustentável da Faculdade de arquitetura e Urbanismo da UnB (CASAS/FAU/UnB) e do Grupo de Estudos em Reforma Agrária e Habitat do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN (GERAH/PPGAU/UFRN).
O colóquio anterior havia ocorrido na USP São Carlos em maio de 2011 e produziu um interessante documento com o resumo das discussões e uma série de propostas para o Estado, atacando a falta de isonomia entre os programas para a cidade e para o campo: 
A discriminação da população rural dentro das políticas públicas habitacionais do governo federal acentua-se na medida em que não há recursos previstos, dentro do Minha Casa, Minha Vida, para a provisão habitacional em assentamentos de reforma agrária. Para solucionar a falta de habitação, a população assentada passou a contar exclusivamente com recursos do INCRA, por meio do programa Crédito Instalação, que prevê 15 mil reais para a construção de novas moradias e 8 mil reais para reforma. No entanto, este órgão do governo federal não possui técnicos em número e qualificação adequada suficiente para implementar uma política habitacional justa e eficiente para os assentamentos rurais. Também não disponibiliza assessoria técnica especializada e gratuita para um acompanhamento satisfatório dos empreendimentos.
Diante deste cenário, o II Colóquio Habitat e Cidadania: Habitação Social  no Campo configurou-se como uma iniciativa que pretende retomar e qualificar este debate em âmbito nacional, propondo a articulação e a formulação de estratégias e ações que possam orientar   mudanças significativas na política de habitação social no Brasil, cujo horizonte seria a isonomia de recursos, de atendimento, de tratamento, de consideração, enfim,de direitos entre o urbano e o rural.
O direito à moradia foi constitucionalizado por meio da emenda n. 26, de 14 de fevereiro de 2000. Se a sua efetividade nas cidades é problemática, no campo, onde historicamente o acesso aos direitos e à justiça é menor, o quadro se mostra mais difícil.
O programa federal Minha Casa, Minha Vida, acabou sendo estendido para o meio rural entre o II e o III Colóquios, como era a demanda dos movimentos no campo. No entanto, com que limites isso se deu? No evento, os problemas se mostraram bem claramente.
A organização do colóquio, além de trazer pessoas da academia, chamou representantes dos movimentos sociais, das populações indígenas e do governo. Ademais, pensou na habitação não apenas nos campos, mas incluiu a perspectiva dos moradores das florestas e das águas, incluindo os pescadores.
As divergências entre os grupos presentes foram muito significativas: a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF) e o Movimento dos Sem-Terra (MST), apesar de relatarem experiências que demonstram que o programa mal funciona e, de fato, não é adequado para a diversidade de culturas e de climas no Brasil, muito menos para as dificuldades de logística fora do ambiente urbano, defenderam o Minha Casa, Minha Vida e o governo federal. Não foi à toa que Kátia Abreu pode ser ministra... Os índios e os extrativistas, pelo contrário, foram bastante críticos, bem como a maior parte dos representantes da academia.
Era uma boa ideia, ou estratégia consequente, defender o programa? Interessante análise de Mariana Fix e Pedro Arantes, "Minha casa, Minha Vida, o pacote habitacional de Lula", de 2009 (quando o programa ainda se circunscrevia à moradia urbana), argumenta que ele ressuscitava a ideologia da casa própria da ditadura militar "num contexto de apaziguamento das lutas sociais e de conformismo em relação às estruturas do sistema". Ademais,
[...] não se encontra no pacote qualquer preocupação com a qualidade do produto e seu impacto ambiental, a não ser a que é posta pelo próprio capital da construção e suas pífias certificações de qualidade, que garantem na verdade sua viabilidade como mercadoria, ou seja, a ratificação da prevalência do valor de troca sobre o valor de uso.
O amplo repertório nacional e internacional de soluções para a habitação social é sumariamente ignorado na formulação do pacote e nas moradias padrão apresentadas pela Caixa Econômica. As duas tipologias propostas pela Caixa foram divulgadas pela instituição como solução padrão para todo o território nacional, desconsiderando condições climáticas, culturais, geográficas diferenciadas do Brasil. Elas já estão pré-aprovadas (o que agiliza prazos e diminui o tempo de análise de projetos) e se tornaram referência para incorporadores imobiliários como parâmetro para os estudos de viabilidade e rentabilidade dos empreendimentos – evidentemente que os empresários não pretendem fazer nada melhor ou maior para a faixa de 0 a 3 salários, sob pena de reduzirem seus lucros, e até já estudam a supressão de paredes internas das unidades habitacionais.
Os defeitos estruturais desse Programa, concebido para as construtoras e não para a população, em sua financeirização e sua recusa à diversidade cultural e ambiental, confirmaram-se no meio rural. Mesmo adotando um discurso de defesa do governo, o MST e a FETRAF não puderam negar os problemas, embora acreditem que eles possam ser solucionados simplesmente com maiores investimentos. Tendo a pensar que se trata de um engano, como Ailton Krenak denunciou no Colóquio: a política está errada desde sua concepção.
A maior parte do evento foi transmitida ao vivo e gravada pela PósTV. Indico abaixo os vídeos, sem me preocupar em resumi-los, pois ainda não vi todos.


1. Conferência de abertura, do geógrafo, professor da USP, Ariovaldo Umbelino de Oliveira. É impressionante vê-lo falando da reforma agrária no Brasil, atualizando os dados de seu livro Modo de produção capitalista, agricultura e reforma agrária, explicando a não-reforma agrária do governo Lula até a reforma mínima do governo Rousseff. Antes de chegar à atualidade, ele dá uma grande aula sobre a história da legislação fundiária no Brasil desde os tempos coloniais.
É impressionante o que ele diz, a partir dos dados oficiais, sobre a grilagem que ocorreu no Brasil entre 2003 e 2014 - sem paralelo até mesmo durante a ditadura militar, segundo o geógrafo.
A maior parte das terras improdutivas está no "paraíso do agronegócio".
Ele trata dos diversos episódios de corrupção no INCRA e das operações da Polícia Federal. E destacou que o "calcanhar de aquiles do agronegócio" é a propriedade fundiária: os ruralistas "sabem que suas terras estão sobre ilícito".

2. Mesa de 13 de maio, manhã: Representantes do governo se apresentaram, do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica, bem como militantes camponeses e quilombolas.
Fátima Vieira, do MST/MS, mostrou quadros que pareciam vir de um representante da Caixa Econômica, de tão governistas que eram. Uma doutoranda da USP questionou a falta de problematização do programa, o que gerou discussão.
Girlene dos Santos falou do Projeto Brasil Quilombola, que seria bonito, porém, "para chegar à política, é preciso passar por uma série de entraves": problemas com o INCRA, o financiamento, e a  logística. E revelou que já havia recebido dez ligações de pedreiros que queriam deixar as obras porque não haviam recebido pagamento.
Agmar Lima, que, além de representante quilombola em Minas Gerais, é vereador pelo PT, também falou dos problemas de execução na ponta: não haver estradas, fornecedores não quererem atender... Porém, no debate, afirmou que "era fácil problematizar" e que "nós aceitamos o que o governo brasileiro e suas instituições nos dá". E reclamou que a academia não ia para as comunidades quilombolas: "nós não temos ninguém nosso na academia".
Muito interessante foi a fala de Célia das Neves, da Reserva extrativista Marinha Mãe Grande (PA), sobre a inadequação do programa e da legislação existente para as comunidades de pescadores. Ela denunciou que o maior estuário do mundo, do Amapá ao Maranhão, estava ameaçado pela construção de um porto para a Vale (eleita, como sempre deve-se lembrar, a pior empresa do mundo em 2012). Vejam-na empregar o neologismo "maritório", junção de mar e território, que, em sua imaginação conceitual, surpreendeu o professor Ariovaldo.

3. Mesas de 13 de maio, tarde: Falas de representantes do Ministério das Cidades, do MST, da FETRAF e da ONG Núcleo de Cultura Indígena.
Cedenir Oliveira, do MST/RS, em alusão ao debate anterior, defendeu o modelo do Minha Casa, Minha Vida: "nós temos que olhar os interesses coletivos dos sujeitos, senão você pode cair no individualismo"; "você pode fazer quatro ou cinco projetos e a família se adapta".
Ailton Krenak (vejam-no em 1988, defendendo o capítulo dos povos indígenas na Constituinte, em trecho do filme "Índio Cidadão?" de Rodrigo Arajeju) se apresentou, fez uma homenagem a Osmarino Amâncio (a partir de 1 hora e 37 minutos do vídeo), com quem criou a União dos Povos da Floresta em 1987, e criticou severamente o Minha Casa, Minha Vida: "estamos cada vez mais introjetando em nossas políticas públicas os modelos de urbanização"; "meu povo teve que lutar por muito tempo para continuar a viver em beira de rio".
Elvio Motta, coordenador nacional da FETRAF, falou dos problemas com os fornecedores, com a mão de obra, mas elogiou o governo, e afirmou que "as melhores casas são dos movimentos sociais organizados". Ressaltou, porém, a existência de máfias no programa, com entidades organizadoras falsas: o Ministério precisaria "separar o joio do trigo".
Em resposta a pergunta, Cedenir Oliveira defendeu a autoconstrução assistida, que seria uma forma de evitar o assistencialismo. Ailton Krenak fez uma declaração veemente e elegante, explicando que estava no encontro errado, não com os movimentos sociais que queriam mudar o país, mas com aqueles que simplesmente aceitavam "bugigangas" do governo. Ele não teria vindo para "homologar políticas" que a longo prazo seriam danosas e cujos efeitos teriam que ser desfeitos depois. E deixou a mesa!
Foi o momento mais dramático do Colóquio, em que a oposição entre estes movimentos de sem-terra e as populações tradicionais, fortemente discriminadas pelo governo federal, apareceu de forma inegavelmente flagrante.
Não pude ver a mesa seguinte, com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (vejam, a partir de 3'30'', a explicação de como o direito à moradia está sendo "sistematicamente violado" na construção de barragens) e do Movimento Camponês Popular, pois aproveitei para assistir a algumas aulas no Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais, em que falaram Ailton Krenak e Manuela Carneiro da Cunha.

4. Mesa de 14 de maio, manhã: Osmarino Amâncio, previsto para o dia anterior, acabou falando nesse dia, e denunciou que estava sendo alvo de criminalização pelo ICMBio (vejam a história no Índio é Nós: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2015/05/26/carta-dos-servidores-do-icmbio-e-a-criminalizacao-dos-povos-da-floresta/). O governo federal está criminalizando as práticas tradicionais das comunidades extrativistas; para a atual administração, o seringueiro construir uma casa com a madeira caída na floresta é um crime ambiental, mas a construção da Usina de Belo Monte é perfeitamente lícita!
Vejam o que Osmarino espirituosamente diz dos três candidatos mais votados na última eleição presidencial.
Foi muito impressionante a fala de Smri'a'u Xavante, José Tserenhomo Xavante e Tseredzu Xavante, da Comunidade Xavante de Ripá (MT) falaram com Alexandre Lemos (que fez a tradução; dos Xavantes, somente o cacique, José, falava em português). Eles rejeitaram as casas do govenrno e preferiram ficar com suas tradições - como mostra este filme, "Uma casa, uma vida", um dos curtas exibidos no Colóquio à noite.
Houve também falas dos representantes da COOPERHAF (SC) e do CREHNOR (RS), que evidenciaram as dificuldades de financiamento e de construção para a habitação no campo. A professora Amadja Borges, da UFRN, fez uma interessante fala crítica, nos comentários, às políticas do governo federal.

5. Mesa de 14 de maio, tarde: Perdi a maior parte desta mesa, que tratou das experiências do Peru e do Uruguai, com falas de Miguel Angel Hadzich, Sandra Graciela Vegara Davila, Martin Batalla e Gonzalo Balarini.

6. Plenária final: As discussões dos grupos de trabalho foram expostas. O professor João Marcos Lopes fez um histórico dos colóquios e dos programas governamentais. Nos debates, pode-se ver a representante do Ministério das Cidades afirmar que não haverá mais recursos neste ano nem no ano que vem.
Por causa da viagem de volta, não fiquei até o final. Eu não tinha visto Rodolfo Sertori, a partir de 2 horas e 11 minutos, criticar com toda razão que "a gente deixa de lutar por terra por lutar por verba do Minha Casa Minha Vida [...] um programa que só surgiu por demanda de construtora. Todo mundo sabe disso. Isso não é segredo."; "O Ministério das Cidades não é nosso parceiro. Ministério das Cidades é parceiro de construtora". Deve-se lembrar que ele administra o programa também para a área rural...
Sertori conta as dificuldades do próprio Colóquio: tiraram "dinheiro do bolso". O INCRA nunca respondeu aos telefonemas da organização, e a Funai teria apenas perguntado quando foi contactada por causa deste evento, "o que a gente tem a ver com isso?". Os índios presentes compreenderam a questão muito melhor do que a Funai...
A partir de 2 horas e 26 minutos, Célia das Neves retoma a palavra e critica a medida provisória 665, que prejudicou, entre tantas outras categorias, os pescadores, por conta do seguro defeso, e o decreto 8425, de 31 de março de 2015, que "não reconhece a cadeia produtiva familiar dos pescadores", com discriminação de gênero (o que é impressionante, lembrando que foi uma mulher, presidenta da república, que assinou esta norma): as mulheres deixariam de ser consideradas pescadoras, ela explica.

Ainda será elaborado o documento final do III Colóquio. Achará uma casa comum para todas essas posições divergentes, que revelam os limites e as concessões da esquerda que está agora no poder?

P.S.: Em agosto de 2015, tive conhecimento da tese de doutorado de Alexander Hilsenbeck, "O MST no fio da navalha: dilemas, desafios e potencialidades da luta de classes", defendida em 2013 no programa de pós-graduação em ciência política da Unicamp. Faço notar que  banca era composta por intelectuais simpáticos ao Movimento, incluindo Bernardo Mançano Fernandes, que publicou com Stedile.
No trabalho, que levanta parcerias de empresas transnacionais com o MST, ainda anterior ao impacto do "Minha casa, minha vida" nesse movimento, a guinada à direita é explicada desta forma:
Vemos, assim, um reordenamento da lógica de gestão do Estado e a integração da ação política dos movimentos sociais à nova lógica gerencial de governo. Numa manifestação de perda de referência social, busca-se fantasiosamente superar as barreiras de classe em favor de uma cidadania limitada, que se atrela e se fundamenta no mercado.
Na conclusão, temos perguntas incômodas como estas:
Ao trilhar o caminho da prioridade às questões relativas às técnicas, financiamentos e ao mercado, com parcerias com empresas capitalistas transnacionais por políticas governistas, não estaria o MST convertendo-se, também ele, numa unidade (ainda que marginal) do sistema?
Seria este o caminho a ser seguido pelo MST? De permitir que sua agenda de lutas seja preenchida exogenamente pelos temas impostos pelo governo? Em mais de uma década de governos do PT qual foi o balanço do acúmulo de forças e qual foi o ascenso dos movimentos de massas? Não teria essa falta de acúmulo contribuído para uma guinada à direita nas recentes mobilizações de massa de junho de 2013? 


sábado, 9 de maio de 2015

"A coragem do primeiro pássaro", um outro voo de André Dahmer

Não é incomum que pessoas que fazem carreira em outras áreas artísticas tragam olhares novos quando resolvem publicar poesia. Foi o caso de Nuno Ramos, que carregou, nos primeiros livros, a original estranheza de sua obra em artes plásticas para, especialmente, Cujo e Ó (ainda não li Sermões).
Diversos poetas contemporâneos parecem estrear ou escrever atendendo a alguma das agendas presentes; parece não haver movimentos, mas há agendas. No entanto, prefiro a liberdade de encontros não previstos.
André Dahmer, que vem dos quadrinhos e das artes plásticas, tem uma personalidade inconfundível, e é um dos poucos autores de quadrinhos que eu leio, e o faço justamente porque encontro nele algo do que reconheço como poético: uma forma oblíqua de ver e estar no mundo. Ocasionalmente, a poesia serve-lhe de tema, mas não como Laerte dela se serve, citando poetas como Florbela Espanca para despertar alguma situação ou desenho, ou tornando Pessoa um personagem seu.
Dahmer, às vezes, ilustra poesia própria - vejam estes quadrinhos. Ademais, o tema da poesia nos quadrinhos de Dahmer aparece muitas vezes como um refúgio, uma guarida contra o mundo, o que poderia ser um mau presságio para um primeiro livro de poesia, em que é preciso fazer dela um mundo, e não um simples refúgio. Afinal, ela trará bastante de desamparo.
A coragem do primeiro pássaro (São Paulo: Lote 42, 2015), no entanto, é bem sucedido e apresenta essa personalidade sem pedir licença às agendas da poesia contemporânea - o que talvez lhe tenha inspirado a referência à "coragem". O livro divide-se em três partes, "Vocês não me conhecem", "Agora é guerra" e "Era ela era pra ser". O título da primeira parte possui algo de ironia, pois quem já leu o Livro negro de André Dahmer terá nela algo a reconhecer; e o fato de as páginas serem negras, com letras em branco, talvez faça com que muitos cheguem a tal associação (o projeto gráfico e a capa, no entanto, não são dele, mas de Luciana Martins).
Como é a primeira vez que ele adota a forma do verso, o título pode significar algo como um desafio para seu público habitual: quem só teve contato com os quadrinhos a a obra plástica não o conheceria realmente, é necessário ler sua poesia.
O primeiro poema, que começa justamente com o verso "vocês não me conhecem", dá o tom do eu avariado, que no livro oscila entre uma dimensão social ("limpava minha casa/ porque tinha uma casa/ e vestia roupa de dormir/ porque dormia" [p. 11]) e uma lírica, amorosa (em outro poema: "ela ainda mora no meu coração/ apenas mudou-se de quarto" [p. 13]), que é o tom que prevalece na primeira e na terceira seções, com o toque de desvario que é marca, na poesia como alhures, de André Dahmer: "também foi divertido rasgar suas fotos/ também a lua ainda goza/ dentro da nossa gaveta vazia" [p. 15].
Talvez seja o eu avariado e em desvario que dê a dimensão social desta poesia, já que o mundo parece estar em condições análogas. A segunda seção, que usa um pouco o mote da guerra (e ao mesmo desde a Renascença as imagens da guerra foram usadas pelo poetas para as situações amorosas), inicia com este poema:
um general
com chumbo na nuca
me disse

fofinho
a vida é assim
a maioria nasce e morre


gritando [p. 25]
Antes do verso final, há dois espaços vazios. Esta pausa é a fala do horror.
Essa visão do mundo, de um horror congênito, nos quadrinhos é expressa às vezes de forma cínica, por meio dos personagens que alguns compararam a girassóis. Na poesia deste livro, é sempre constituída pelo prisma das avarias desse eu lírico. Neste começo do poema, pode-se ver alguém em situação de rua:
meu ofício era
sacrificar cachorros doentes

hoje
minha casa é uma mochila [p. 28]
Trata-se de um mundo "onde a alma só aprende a fé dentro de UTIs/ e os jovens se penhoram dentro de escritórios" [p. 48]. Esse mundo deixa marcas, e a sensibilidade de Dahmer (talvez oriunda do desenho) pelos detalhes visuais do que cobre o corpo, e também do que ele excreta (as lágrimas são importantes neste livro), pode chegar a estas delicadezas:
agora

estudo como a luz
consegue vencer a escuridão do quarto

sem tocar as maçãs  do seu rosto [p. 18]

aos pés de seu pescoço
avisto um lóbulo que suporta o fardo
do ouro e da prata [p. 39]

E a poesia convoca e transforma o corpo:
tentei construir um dique
quando a poesia se tornou sagrada
poesia de acidente
uma moça toda molhada [p. 34]

na parede que você é
ainda silva meu vento
nas suas frestas [p. 45]
Esta última citação, todo um poema, inicia a terceira parte, que é menos interessante, com alguns poemas que sucumbem ao sentimentalismo (os dois últimos, em especial).
Em termos formais, este breve livro não traz novidade: é composto de versos livres e brancos que evitam quase totalmente a pontuação (exceto os travessões). O que ele traz de novo, para mim, é esta sensibilidade atenta para o horror e para o corpo, para a miséria e para a delicadeza, ou seja, para boa parte do que importa no mundo. E os pássaros.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Desarquivando o Brasil CIV: Sarney: ditadura e democracia, ontem e hoje

Desde há muito, o Senado Federal contava com a presença de José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, vulgo José Sarney, e até José Sarney Costa. Como não tentou reeleger-se nas eleições de 2014, este é o primeiro ano em que ele não exerce nenhum mandato político. Está a terminar sua autobiografia, avisou-nos recentemente um jornal de São Paulo de que foi colunista, em matéria em que foram coletadas opiniões de que a obra literária desse senhor é injustiçada em razão de sua atividade política. Sarney chegou a dizer que nenhum crítico literário avaliou negativamente sua obra, afirmando que Millôr Fernandes era apenas um "humorista".
Não acho de forma alguma o humorismo um gênero menor, e a polifacetada obra de Millôr não pode ser reduzida a esse prisma. Creio ver na declaração de Sarney um indício de ressentimento contra o crítico de Brejal dos Guajas, que afirmou, certa vez, que "O Sarney só tem uma grande qualidade; é biodegradável." (Millôr Fernandes, talvez em 1986, Millôr definitivo: a Bíblia do Caos,  p. 514).
Se Millôr não conta, imaginem eu: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/jose-sarney-ou-o-esquecimento-como.html
Sarney não está afastado da política, no entanto; vejam como sua verve de imortal da Academia Brasileira de Letras ferve na defesa de sua filha, Roseana Sarney, incluída na "lista Janot" de políticos a serem investigados (deveria, talvez, orgulhar-se de ela estar em lista que inclui nada menos do que os presidentes da Câmara, Cunha, e do Senado, Renan Calheiros), em artigo publicado em O Estado do Maranhão: "Derrubam-se em Mossul as estátuas do passado sem adotar nenhuma proporção, mas aqui destrói-se a Fundação da Memória Republicana Brasileira. Agora, na pior de todas, inclui-se Roseana na investigação de um escândalo que envergonha o Brasil."
Creio que a destruição de sítios e obras milenares pelo Estado Islâmico é, de fato, apesar de algum exagero retórico, a melhor medida de comparação que Sarney poderia encontrar para os alegados ataques que sua família estaria a sofrer no Maranhão. Afinal, também na antiga Assíria o poder era hereditário. Pode-se lembrar que, entre os 544 atos secretos daquela Casa antirrepublicana, o Senado Federal, anulados em 13 de julho de 2009, estavam alguns de nomeação de membros da família Sarney, inclusive (vasto coração) do namorado de uma neta, como lembrou este telegrama da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil ao tratar de outros escândalos, como a investigação de lavagem de dinheiro por Fernando Sarney (investigação sobre este senhor, por sinal, levou a um caso de censura judicial sobre o jornal Estado de S. Paulo):
A Federal Police (DPF) investigation into his son, Fernando, for money laundering has also embarrassed the Senate President, as photos of his son's and daughter-in-law's arrests made front-page news. To make matters worse, in the course of the investigation the DPF intercepted communications that revealed the Senate President's efforts to place the boyfriend of one of his granddaughters into a Senate staff slot that had previous been occupied by another Sarney family member through a secret act approved, Senate director Agaciel Maia, appointed by Sarney in a previous term as Senate President and recently forced to resign as a result of the broader corruption scandal.

O documento, mais um sobre o Congresso Nacional brasileiro em que aparecem as palavras lavagem de dinheiro, ato secreto e escândalo de corrupção, está no Wikileaks.
Tocou-me profundamente o discurso de despedida em 18 de dezembro de 2014. Sarney foi, provavelmente, o parlamentar mais longevo da história da vida política (afirma-o a partir de 9'50'': https://www.youtube.com/watch?v=VXyMrDQlhSw), o que revela muito sobre a peculiar qualidade do Poder Legislativo no Brasil. Sua migração para fins eleitorais ao Amapá (onde conquistou três mandatos de senador) foi um tanto desconcertante; vejam que, nesta planilha da empreiteira Camargo Corrêa de doação a políticos, os generosos financiadores do sistema político brasileiro lhe atribuíram o Estado de Pernambuco e, depois, riscaram a sigla PE e escreveram à mão AP.
Sarney foi presidente da Arena, partido de sustentação parlamentar da ditadura militar. apesar do arranjo eleitoreiro que o fez ingressar no PMDB na época do colégio eleitoral (ou seja, das eleições indiretas) que elegeram Tancredo neves, que jamais tomaria posse, ele, na verdade, nunca negou suas origens. Vejam que, a partir de 22'50'', ao falar a uma sessão plenária vazia em sua despedida do Senado, Sarney chama a ditadura militar de "revolução": https://www.youtube.com/watch?v=VXyMrDQlhSw
A, no mínimo, falsificação política de chamar o golpe de 1964 de revolução é acompanhada, nesse discurso, de outras impropriedades jurídicas e históricas. Enquanto pede mais penas, Sarney revela que acha que se pode votar aos 15 anos (29'40''). A partir de 39'30'', Sarney passa uma borracha nas lutas dos movimentos negros (e em Abdias do Nascimento) e diz que foi ele quem iniciou o debate público das cotas para negros.
O mais interessante vem o final: na estranha oposição entre Max Weber ("a política é inimiga da felicidade") e Deus, cita um folguedo o Bumba-meu-Boi: "Assim como o dia se despede da noite, eu me despeço de ti. Deixo no Senado uma palavra: gratidão. Saio feliz, sem nenhum ressentimento. Ai, meu Senado, tenho saudades do futuro".
Alcione cantou muito bem esta música: https://www.youtube.com/watch?v=YyuPQzo_g7k. No entanto, na voz de Sarney, tais palavras ganham uma outra dimensão, que a bela voz da cantora nunca poderia sugerir: o Senado é a noite, Sarney é o dia. Nada mais ancien régime do que isto: Sarney despede-se na posição do Rei-Sol. Nessa posição, entendo que ele não possa se misturar com o "Terceiro Estado", ao contrário do que está a fazer o atual governador do Maranhão, Flavio Dino, postura criticada por nosso (São) Luís XIV.
Significativamente, é um senador do PT, muito grato ao apoio à presidência de Lula, Anibal Diniz, o primeiro a falar depois de Sarney "pra mim [sic] poder manifestar a gratidão", "Vossa Excelência conduziu o país para a democracia", fulanizando anistoricamente o processo de transição, o que, se é falso em termos políticos, é vergonhoso no campo da história.

Sarney, antes dos 55 minutos de seu discurso de despedida, revela que publicou 142 títulos, contando as publicações em línguas estrangeiras.

De fato, não se pode desprezar este lado do Sarney: o beletrismo da elite brasileira era realmente um dos seus traços característicos (hoje, não mais; tais pessoas não reconhecem a literatura nem mesmo por essa via espúria que é a dos quadros de prestígio). Para entendê-lo politicamente, é necessário também perceber como lhe foi importante buscar o reconhecimento literário, e levar a sério essa aspiração, sociologicamente tão reveladora.
A partir dos 9 minutos do discurso de adeus, ele afirma, como já o fez outras vezes, que "Deus me poupou do sentimento do ódio e do ressentimento, da inveja e do desejo de vingança. Nunca tive inimigos."
Por isso, gostaria de lembrar aqui de uma de suas obras, que não só abordou temas políticos, mas como foi fruto de um tipo de intervenção na arena pública: a longa coletânea, dividida em volumes, de suas crônicas semanais publicadas no jornal Folha de S. Paulo: Crônicas do Brasil contemporâneo, VII: sobre isso e aquilo, pela Ediouro.
Escolho o volume VII, que vai do fim de 2005 ao de 2007, época em que o escândalo do mensalão acaba chegando ao processo criminal (o que é nele mencionado). Nesse livro cita, muito inesperadamente, Veronica Stigger, que poderia ser considerada uma antítese de Sarney.
O autor faz um uso em geral ornamental das notícias do dia: cada crônica começa três chamadas de notícias do momento. Em seguida, vem o texto de Sarney, que, muitas vezes, não tem relação com as notícias (é o caso da referência a Veronica Stigger, que só está na chamada). Mais uma vez temos aí a identidade entre o Sarney escritor e o político: em ambos, a incoerência e a falta de conexão de gestos e argumentos.
Mais de uma vez, as notícias são de escândalos de políticos de outras famílias, que Sarney indica mas, em geral, não comenta (ele defende, porém, Palocci, que chama de "uma das maiores revelações políticas do Brasil" [p. 49]). Ademais, algumas vezes suas crônicas apresentam relações inquietantes, conflituosas, com o passado político desse autor durante a ditadura militar ou sob o governo de tutela militar que foi a sua presidência da república.


a) A crônica de 17 de novembro de 2006 aborda a questão da anistia: ele diz que foi no governo Figueiredo que "o assunto amadureceu", mas a anistia dele não era completa, pois excluía os condenados pelo que se chamava de "crimes de sangue"; no governo dele é que a anistia teria se tornado completa, "atingindo os dois lados da luta" [p. 123].
Esta crônica é praticamente uma negação da história: fiel, também aí, à dominação das elites, ele omite os movimentos sociais pela anistia, apresenta-a como uma dádiva dos presidentes, adota a equivocada teoria dos dois demônios (sem a nomear) e esquece de si mesmo:Sarney, pouco mais de um ano antes da lei brasileira de anistia, e logo depois da anistia no Chile, afirmou que "a anistia ampla, irrestrita e recíproca é realmente uma posição radical, inaceitável, porque não é do interesse da nação." (Jornal da Tarde, 21 de abril de 1978, "A Anistia: Passarinho: Aqui, ainda não dá").


b) Na crônica de 10 de fevereiro de 2006 , temos outro dos diversos textos em que Sarney ataca a Constituição de 1988, sempre em termos simplistas: "longa, detalhista, imprecisa, híbrida (presidencialista e parlamentarista); "A Constituinte foi pressionada e populista" [p. 27].
Quem, porém, pressionou os constituintes? Os militares.

"Nunca um vice foi tão versa", escreveu Millôr Fernandes (em 10/04/1988), após os militares sitiarem o Congresso Nacional e imporem o mandato de 5 anos para Sarney (vejam no Diário da Nova República, vol. 3, p. 159).
Em 1989, a embaixada dos Estados Unidos no Brasil enviou um telegrama de análise da recém terminada Constituição de 1988, afirmando, no ponto 2, que "muitos, talvez a maioria dos brasileiros não esperavam que ela tivesse uma longa duração, ao menos não sem significativas emendas". A análise estava correta.

"O conceito de 'segurança nacional' foi retirado da constituição. Contudo, o governo Sarney - como foi notado anteriormente - já colocou o secretariado do Conselho de Defesa Nacional nas mãos do chefe da Casa Militar, levando assim alguns observadores a especular que o secretariado tentará manter algumas das operações funcionais e da política do velho CSN [Conselho de Segurança Nacional]."
Em seguida, comenta como os militares continuavam na política e lançavam mão de medidas agressivas na presidência de Sarney. 

c) Na crônica de 1º de junho de 2007, ele abordou uma das notícias destacadas, a não renovação (que é chamada de "cassação") da concessão da emissora de tevê RCTV, na Venezuela, que havia conspirado para o golpe que retirou temporariamente o presidente Hugo Chávez do poder. Sarney, que tanto contou com a Globo, achou o fato "inconcebível" e resolveu vestir a túnica de um defensor da democracia: "a democracia tem como essência a liberdade sem medo. Sem polícia política, sem o arbítrio, sem ninguém sentir-se obrigado à pior das censuras, que é a autocensura" [p. 178-179].
A túnica não ficou bem, no entanto, e deixou que partes indesejadas do corpo político aparecessem. Sarney não foi um adversário da censura, muito pelo contrário. Lembremos desta mensagem de um dos artistas apreciados pela ditadura militar:
Cumprimento Vossa Excelência por impedir a exibição do filme Je Vous Salue Marie, que não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da humanidade.

Trata-se de telegrama do músico Roberto Carlos ao então presidente da república José Sarney, cumprimentando-o por ter censurado o filme Je vous salue, Marie, de Godard, em 1986.
Deve-se lembrar que esse profissional da música que, nos tempos da ditadura militar, acumulava as funções de colaborador com o autoritarismo (vejam seu histórico elogio a Pinochet e este documento sigiloso do Exército, disponível no portal de Aluízio Palmar, Documentos Revelados), continua sendo um entusiasta da censura, tendo impedido uma biografia a seu respeito sair, com apoio de outros nomes da música popular, entre eles (negando sua própria história) Chico Buarque.
A justificativa de Roberto Carlos no telegrama é intelectualmente pueril, mas não se esperaria mais dele. De alguém que se considera intelectual, sim, esperamos bem mais, porém Sarney, muitos anos depois, não foi capaz de achar uma justificativa mais consistente, e insistiu, em 2013, que continuaria fazendo o mesmo: "Eu acho que naquele momento, hoje, eu faria a mesma coisa. Porque pelo seguinte, a nossa constituição ela diz que nós não podemos fazer de nenhuma maneira crítica nem fazer um julgamento sobre a questão da religião de ninguém nem denegrir ninguém nem ridicularizar ninguém." (vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PXyVr5JFyZ4).


d) Com isso, podemos compreender outra das estranhas afirmações que Sarney fez em seu discurso de despedida: "Minha causa que sempre busquei aqui foi a cultura" (aos 10'50'' de https://www.youtube.com/watch?v=VXyMrDQlhSw), pensando como ele serviu a uma cultura autoritária. Alguém, desavisadamente, poderia entender que ele é um homem "culto", no sentido de ter muito lido, ou quem sabe, de conhecer a literatura, o que manifestamente não é o caso. O livro de crônicas mostra-o. Naquela rede social de veiculação de citações literárias falsas, ainda pode-se ver um textinho insignificante de autoajuda, "Instantes", como se Jorge Luis Borges o tivesse escrito. Na verdade, trata-se de um texto em prosa de uma autora dos EUA: http://elpais.com/diario/1999/05/09/ultima/926200813_850215.html
Acreditar nessa falsa autoria exige desconhecer completamente a obra de Borges, o que seria imperdoável para um imortal da ABL, ou não ter sensibilidade nenhuma para a literatura, achando-a sinônima de autoajuda, além de sinal de desinformação, pois o problema está esclarecido desde o fim do milênio passado. Sarney, naturalmente, incorre nesse erro na página 165.

Há muito mais a dizer - Sarney e as terras indígenas, o patrimônio público etc., em razão da diversidade de questões pinceladas no livro e da larga trajetória do político. Paro aqui, no entanto, pois a nota se estendeu, e os outros temas podem ser objeto de outros textos.