O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 9 de maio de 2015

"A coragem do primeiro pássaro", um outro voo de André Dahmer

Não é incomum que pessoas que fazem carreira em outras áreas artísticas tragam olhares novos quando resolvem publicar poesia. Foi o caso de Nuno Ramos, que carregou, nos primeiros livros, a original estranheza de sua obra em artes plásticas para, especialmente, Cujo e Ó (ainda não li Sermões).
Diversos poetas contemporâneos parecem estrear ou escrever atendendo a alguma das agendas presentes; parece não haver movimentos, mas há agendas. No entanto, prefiro a liberdade de encontros não previstos.
André Dahmer, que vem dos quadrinhos e das artes plásticas, tem uma personalidade inconfundível, e é um dos poucos autores de quadrinhos que eu leio, e o faço justamente porque encontro nele algo do que reconheço como poético: uma forma oblíqua de ver e estar no mundo. Ocasionalmente, a poesia serve-lhe de tema, mas não como Laerte dela se serve, citando poetas como Florbela Espanca para despertar alguma situação ou desenho, ou tornando Pessoa um personagem seu.
Dahmer, às vezes, ilustra poesia própria - vejam estes quadrinhos. Ademais, o tema da poesia nos quadrinhos de Dahmer aparece muitas vezes como um refúgio, uma guarida contra o mundo, o que poderia ser um mau presságio para um primeiro livro de poesia, em que é preciso fazer dela um mundo, e não um simples refúgio. Afinal, ela trará bastante de desamparo.
A coragem do primeiro pássaro (São Paulo: Lote 42, 2015), no entanto, é bem sucedido e apresenta essa personalidade sem pedir licença às agendas da poesia contemporânea - o que talvez lhe tenha inspirado a referência à "coragem". O livro divide-se em três partes, "Vocês não me conhecem", "Agora é guerra" e "Era ela era pra ser". O título da primeira parte possui algo de ironia, pois quem já leu o Livro negro de André Dahmer terá nela algo a reconhecer; e o fato de as páginas serem negras, com letras em branco, talvez faça com que muitos cheguem a tal associação (o projeto gráfico e a capa, no entanto, não são dele, mas de Luciana Martins).
Como é a primeira vez que ele adota a forma do verso, o título pode significar algo como um desafio para seu público habitual: quem só teve contato com os quadrinhos a a obra plástica não o conheceria realmente, é necessário ler sua poesia.
O primeiro poema, que começa justamente com o verso "vocês não me conhecem", dá o tom do eu avariado, que no livro oscila entre uma dimensão social ("limpava minha casa/ porque tinha uma casa/ e vestia roupa de dormir/ porque dormia" [p. 11]) e uma lírica, amorosa (em outro poema: "ela ainda mora no meu coração/ apenas mudou-se de quarto" [p. 13]), que é o tom que prevalece na primeira e na terceira seções, com o toque de desvario que é marca, na poesia como alhures, de André Dahmer: "também foi divertido rasgar suas fotos/ também a lua ainda goza/ dentro da nossa gaveta vazia" [p. 15].
Talvez seja o eu avariado e em desvario que dê a dimensão social desta poesia, já que o mundo parece estar em condições análogas. A segunda seção, que usa um pouco o mote da guerra (e ao mesmo desde a Renascença as imagens da guerra foram usadas pelo poetas para as situações amorosas), inicia com este poema:
um general
com chumbo na nuca
me disse

fofinho
a vida é assim
a maioria nasce e morre


gritando [p. 25]
Antes do verso final, há dois espaços vazios. Esta pausa é a fala do horror.
Essa visão do mundo, de um horror congênito, nos quadrinhos é expressa às vezes de forma cínica, por meio dos personagens que alguns compararam a girassóis. Na poesia deste livro, é sempre constituída pelo prisma das avarias desse eu lírico. Neste começo do poema, pode-se ver alguém em situação de rua:
meu ofício era
sacrificar cachorros doentes

hoje
minha casa é uma mochila [p. 28]
Trata-se de um mundo "onde a alma só aprende a fé dentro de UTIs/ e os jovens se penhoram dentro de escritórios" [p. 48]. Esse mundo deixa marcas, e a sensibilidade de Dahmer (talvez oriunda do desenho) pelos detalhes visuais do que cobre o corpo, e também do que ele excreta (as lágrimas são importantes neste livro), pode chegar a estas delicadezas:
agora

estudo como a luz
consegue vencer a escuridão do quarto

sem tocar as maçãs  do seu rosto [p. 18]

aos pés de seu pescoço
avisto um lóbulo que suporta o fardo
do ouro e da prata [p. 39]

E a poesia convoca e transforma o corpo:
tentei construir um dique
quando a poesia se tornou sagrada
poesia de acidente
uma moça toda molhada [p. 34]

na parede que você é
ainda silva meu vento
nas suas frestas [p. 45]
Esta última citação, todo um poema, inicia a terceira parte, que é menos interessante, com alguns poemas que sucumbem ao sentimentalismo (os dois últimos, em especial).
Em termos formais, este breve livro não traz novidade: é composto de versos livres e brancos que evitam quase totalmente a pontuação (exceto os travessões). O que ele traz de novo, para mim, é esta sensibilidade atenta para o horror e para o corpo, para a miséria e para a delicadeza, ou seja, para boa parte do que importa no mundo. E os pássaros.

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