Uma das tiras de André Dahmer mostra alguém
preocupado com o povo sair às ruas por causa do desvio de verbas. Seu
interlocutor prova que a preocupação é infundada: pela janela, veem um cara
solitário com o cartaz "entre no meu blog".
A ironia
de se imaginar alguém na rua com esse tipo de apelo ao virtual, bem como sua
solidão, e a contraposição disso com a mobilização política, encontram paralelo
na tira em que um blogueiro confessa: "escrevo sobre coisas que não
entendo, para pessoas incapazes de aprender" (ambas podem ser vistas nesta
dissertação de Rodrigo Otávio dos Santos, às páginas 228 e 218).
Reconheço minhas limitações em aprender; no
entanto, gosto de ler blogues pela informação e pelo estilo: em alguns casos,
eles cumprem o papel deste gênero literário que está a ser gradativamente
expulso do jornalismo, que é a crônica.
Já organizei retrospectivas por frases da época da ditadura, apresentações musicais, graffiti e cartazes, direitos sabotados e perdidos; desta vez, decidi por textos
de outros blogues, entre os que sigo e estão indicados à direita. Não incluí
aqueles que servem de simples divulgação de artigos (como os do Murilo Duarte e
do Marcelo Ribeiro), ou que se compõem de curtas resenhas, por não atenderem
àquele requisito de gênero que mencionei, bem como aqueles em que assino textos
(o Escamandro).
Escolhi apenas um exemplo de cada blogue. A
lista, como sempre, é estritamente pessoal e não pretende dar conta do ano, do
tempo, do mundo, mas simplesmente estar de acordo com a ideia de rede que
sempre me atraiu na internet, isto é, de que de um texto se possa passar para
outro, como uma espécie de biblioteca de Borges. Correntes em aplicativos de
mensagem e o que chamam de "threads" em redes sociais, claro,
não podem, em razão de sua menor exuberância textual, cumprir esse papel,
embora reconheça sua utilidade em uma sociedade estruturalmente iletrada.
Pensei em fazer uma retrospectiva das imagens "Fora Temer" que vi em diversas ocasiões; no entanto, como a foto acima foi uma das mais esperançosas que encontrei, desisti de fazê-lo.
Janeiro:
Para ler sem olhar: de Diego Viana,
"Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada".
Viana, que já citei aqui algumas vezes, voltou a fazer um close seeing com far
reaching, desta vez a partir de uma foto de René Burri tirada em Brasília,
de uma "família humilde" com sua "roupa de domingo". A luz
estourada da foto suscita diversas reflexões, até chegar, depois de um paralelo
com Portinari ao rombo de orçamentos públicos. Quanto a mim, que sou da geração
das crianças na foto, cujo nome desconhecemos, noto que elas estão mais nítidas
do que os monumentos do poder, e que talvez fosse uma ação estética e política
emancipadora aumentar a nitidez dos corpos contra aqueles espaços.
Fevereiro:
Seminario de Teoría Constitucional y Filosofía Política: de Roberto Gargarella, "La Corte Suprema y los alcances
de las decisiones de la Corte Interamericana". Ao contrário da maioria dos
constitucionalistas brasileiros, Gargarella preocupa-se com o Direito
Internacional e não é isolacionista. Em 14 de fevereiro deste ano, a Suprema
Corte argentina, a respeito do conhecido caso "Fontevecchia e outros contra a República Argentina", decidiu que seus acórdãos não podem ser "revogados" pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Houve muita polêmica na época, mas, em dezembro, a Suprema
Corte assentiu que a decisão atacada pela Corte Interamericana fosse declarada incompatível com
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Faço notar que, no caso
brasileiro da ADPF 153, há uma questão
parecida: o Supremo Tribunal Federal decidiu com base no ordenamento da
ditadura, contra a Constituição de 1988, validar a lei de anistia do tempo do
Figueiredo. Meses depois, a Corte Interamericana decidiu o oposto com base na
Convenção Americana. Ainda não foram julgados pelo STF os embargos de
declaração interpostos na ADPF, e que se referem a essa decisão internacional.
Fux, em mais uma prática de violação do regimento do Tribunal, não leva o
recurso a plenário, impedindo que se aprecie a divergência entre as duas
cortes.
Março:
Gaveta do Ivo: de Ivo Barroso,
"Consoante de apoio - a propósito de um poema de Charles Baudelaire".
É um blogue recente, em que o poeta e tradutor publica textos antigos (por
exemplo, a "Antiga palestra sobre Drummond") e novos, como esta
análise de traduções de um dos mais célebres poemas de todos os
tempos, "Spleen LXXVII", que começa com o verso "Je suis comme le
roi d’un pays pluvieux". Analisa as soluções de Guilherme de
Almeida, Jamil Almansur Haddad e Ivan Junqueira, que ele considera os que se
saíram mais felizes no enfrentamento desse poema, preferindo a de Junqueira.
Questões de métrica, rima, cesura, aliterações e figuras de linguagem são
discutidas, o que é um alívio diante do desleixo com a forma hoje em moda em
certos círculos que se bastam com um verso sem novidade e frouxo, desde que o
poema termine com uma coroa de flores ou qualquer outro efeito lacrimejante ou
de autocomiseração. Barroso inclui a própria tradução e a critica, e faz o
mesmo com a de Wladimir Saldanha, que comentou o texto (uma oportunidade que os
blogues proporcionam) e incluiu a dele para comentários.
Abril:
Desigualdades espaciais: de Hugo Nicolau
Barbosa de Gusmão, "Não vai dar tempo… a morte chega antes que a aposentadoria para a
população negra em São Paulo". São Paulo não é a cidade mais
pobre do Brasil, tampouco a mais desigual. No entanto, nela, como a maioria das
pessoas negras morre antes dos 65 anos, elas não chegariam a aposentar-se
segundo a proposta de reforma da previdência que se discutia (o projeto foi
alterado, e a "discussão" continua a ser liberação de verbas e cargos
para os que votarão contra o povo). O trabalho do geógrafo, decifrando os
distritos da cidade, mostra que os brancos vivem mais que os negros em todos, e
que "Quando olhamos os distritos onde a média é superior a 65 anos anos a
situação se torna mais grave, em apenas 10 distritos o tempo média de vida dos
negros é superior a 65 anos". Um jornal nessa cidade depois usou esses
dados. Ao ver a quantidade de dinheiro que Temer vem gastando para promover
essa reforma, não conseguimos deixar de pensar que o neoliberalismo esconde um
projeto de extermínio.
Site personel de
Didier Eribon: de Didier Eribon, "Demain,
je voterai pour Jean-Luc Melenchon". Macron venceu as eleições de 23 de abril na França. Melenchon, o
conhecido político de esquerda, cresceu eleitoralmente. Destaco o texto não em
razão dele, mas por causa da análise política do sociólogo. Eribon explica sua
opção eleitoral, apesar de não concordar com todas as propostas do candidato,
tendo em vista o "deslizamento espetacular da vida política e intelectual
em direção à direita na Franca ao longo dos últimos trinta anos" ("glissement
spectaculaire de la vie politique et intellectuelle vers la droite en France au
cours des trente dernières années"), operada "principalmente no e
em torno do Partido Socialista". Ele dá uma tremenda indireta a certo
filósofo do consenso: "Qu’on ne se laisse pas abuser par les sermons de
tel philosophe allemand qui a oublié depuis fort longtemps l’héritage de la
théorie critique de l’Ecole de Francfort à laquelle on le rattache encore
abusivement." e afirma que, se Macron ganhar, como aconteceu, e
aplicar seu programa, o Front national, de extrema direita, terá 40% de votos no primeiro turno na
próxima eleição.
Mobilização Nacional Indígena: "O maior Acampamento Terra Livre da História!".
Trata-se de matéria sobre o último ATL. O Acampamento ocorre anualmente, e a
presença dos povos indígenas na capital é estratégica. Vi Ailton Krenak, mais
de uma vez, dizer que cada tiro disparado contra os povos indígenas tem sua
origem no Congresso Nacional. Ademais, agravou-se a conjuntura política, já
desfavorável a esses povos no governo de Rousseff; desta vez, "O ATL
também deu uma aula de democracia ao governo Temer. Na terça (25/4), na
primeira marcha da semana, os indígenas foram recebidos com gás lacrimogêneo e
balas de borracha na frente do Congresso. No dia
seguinte, foram impedidos de entrar no Senado para
assistir a uma audiência pública previamente marcada e foram intimidados pela
polícia no caminho de ida e de volta ao acampamento."
Euterpe: de Frederico Toscano, "Rinaldo em Londres". Não sei se o blogue terminou, seu
último texto é de maio. Eu escrevi mais sobre música do que o Euterpe este ano,
porém, claro, nunca cheguei ao nível do que a equipe desse blogue fazia. Para
chegar a uma das óperas mais conhecidas de Händel, Rinaldo, Toscano
parte de Cavalli e faz um percurso pela ópera barroca, o que inclui a figura
do castrato e as razões do sucesso da "opera
seria" e sua estrutura formal fundamentada na profusão de árias,
solos para os cantores brilharem. Como sempre no Euterpe, há diversos exemplos
musicais, e talvez o mais interessante seja a sequência das três encarnações
que a música de "Lascia ch'io pianga" (uma das árias operísticas mais
conhecidas, gravada até por cantoras populares como Barbra Streisand) teve na
obra de Händel. Minha ária preferida dessa obra, no entanto, é "Cara
sposa"; Toscano escolheu o grande contratenor Philippe Jaroussky, proponho
ouvir também a fenomenal Ewa Podles.
Maio:
Transe: de Moysés Pinto Neto, "Vivemos um momento extraordinário". O jurista trata do
que chama de "um grande bloco no poder — o 'condomínio pemedebista' — cuja
gestão era disputada pelos petistas e tucanos" e das configurações da
plutocracia na última década, de 2013 como catalisador da indignação contra
esses "arranjos", com esta observação ótima sobre o antigo governo:
"O compromisso com a manutenção do governo paralisa a radicalidade do
pensamento, tornando a crítica refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que
as perspectivas radicais fossem engolidas pela defesa do indefensável. A
perspectiva de futuro encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se
bem quanto a questão procedimental começa a tomar a frente dos debates
políticos, numa redução do político ao jurídico." Quanto ao governo atual,
é claro que a única perspectiva do futuro em que se interessa é a manutenção do
passado. Moysés, apesar de tudo, mostra-se otimista e julga o momento extraordinário
porque "ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se abre uma janela
histórica para formular novos projetos". Como ele é um dos poucos juristas
brasileiros capazes de pensar politicamente, espero que participe bastante dessas
formulações.
Junho:
El niño rizoma: de Julián Axat,
"Tiempo futuro pos-memoria, poesía
y justicia". O poeta, editor e
jurista publicou originalmente este texto no blogue, que trata dos rituais
judiciais da chamada pós-memória e o testemunho de pessoas como ele, filhos de
desaparecidos. A figura do filho detetive da história, em analogia aos
detetives selvagens de Bolaño, traz diversos relatos, que ele analisa,
classifica, nesta referência a Foucault: "Cierta “enciclopedia china de
la memoria” de las víctimas del terrorismo de Estado argentino, que implica -a
su vez- formas inéditas, exóticas y hasta maneras estandarizadas o normalizadas
de decir la catástrofe." Entre outras referências do artigos, está o
interessante filme “Tierra de los Padres” (Fatherland, 2011) de Nicolás
Prividera, todo filmado no Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e composto de
fragmentos da fala de mortos, numa aposta estética radicalmente benjaminiana. Note-se que a Argentina, com Macri, está num momento adverso para a justiça de transição, ou para a justiça tout court.
Julho:
Índio É Nós: "Michel Temer, a AGU e a legitimação do genocídio dos povos indígenas".
Análise da opção de Temer pelo etnocídio e pelo genocídio dos povos indígenas,
oficializando a "tese do “marco temporal”, "por meio de um
Parecer vinculante da Advocacia Geral da União (Parecer n.
001/2017/GAB/CGU/AGU), com a finalidade de paralisar processos de demarcação de
terras indígenas no Brasil, bem como de anular demarcações já realizadas." Mais um exemplo de
como o Brasil se degrada, e um prenúncio de que 2018 será um ano de ainda mais
crimes e golpes, eis que 2017 mostrou que o crime, mesmo desvelado, não só
compensa como pode governar sem maiores sustos, bastando dividir o saque com
mais instituições, veículos de imprensa e assemelhados.
Agosto:
Rio on Watch: de Lucas Smolcic
Larson, "Três razões pelas quais Charlottesville poderia acontecer no Brasil".
O autor busca fazer um paralelo entre a marcha neonazista naquela cidade dos
Estados Unidos, suscitada pela conjuntura política favorável a esse tipo de
violência, organizada contra a retirada dos monumentos aos racistas e
escravistas, com certos temas no Brasil, como o repúdio indígenas aos
monumentos pelos bandeirantes (ele inclui uma foto desta manifestação de 2013
em São Paulo, com o sangue simbólico escorrendo), bem como aos crimes de
ódio contra as religiões afro-brasileiras e a violência policial; o texto não
se aprofunda, infelizmente, nos esforços de normalização do fascismo realizados
pelos meios de comunicação.
Setembro:
Reinventando Santa Maria: de Leonardo
Bernardes, "Podemos: relato de uma experiência e de um juízo". O
autor, filiado do partido, conheceu membros do Podemos na
Espanha e analisa as virtudes e limitações desse projeto político, bem como a "tendência a trazer a política de volta a la calle", o que é importante para o Brasil também, neste momento em que parte significativa da esquerda quer que Temer fique e faça seus horrores, pois ele é um grande trunfo eleitoral para a oposição. Ele deixa de se referir às questões relativas à
unidade da Espanha como Estado, que há pouco emergiram mais fortemente, porém,
com a declaração de independência da Catalunha, que trouxe as pessoas de volta
para a rua. Seria interessante ele retomar a análise a partir disso.
Outubro:
Twilight Beasts: de Jan Freedman, "Walking on thin ice". Embora o blogue em geral se concentre em espécies extintas, o texto
dedica-se aos ursos polares e uma foto de um desses animais, bastante
emagrecido, andando sobre uma camada de gelo igualmente reduzida. Esses animais
têm sofrido desde as últimas glaciações, mas o aquecimento global, provocado
pela ação humana, tornou a situação mais dramática. Os fanáticos de Trump
(que adoram tweets como este),
presentes também no Brasil, onde se somam a outros grupos, mais ou menos
convergentes, como admiradores das linhas de Olavo de Carvalho e
aldorebelistas, negam esses outros efeitos de extermínio do neoliberalismo. A
bibliografia indicada por Freedman pode ajudar aqueles que, desses grupos,
souberem ler.
Novembro:
EJIL: Talk!: de Philip Leach, "The Continuing Utility of
International Human Rights Mechanisms?". Trata-se de outro
texto sobre as questões envolvidas na internacionalização dos direitos humanos.
O internacionalista analisa pesquisas recentes que apontam para a eficácia dos
mecanismos internacionais, trabalhos de Kathryn Sikkink, Gráinne de Búrca,
Jérémie Gilbert, Ann Skelton. Ele mesmo procura pensar a questão, no âmbito
do European Human Rights Advocacy Centre, e reflete sobre
as possibilidades de fortalecimento daqueles mecanismos, sabendo que o
"contexto local" será o elemento mais importante ("the
domestic context will remain the most significant element"). Para o
Brasil, trata-se de questão vital, especialmente levando em conta o caráter
isolacionista do Judiciário nessas questões, e que tem levado grupos
historicamente discriminados por esse Poder a buscar os mecanismos
internacionais, como os povos indígenas.
Dezembro:
Opinio Juris: de Kevin John
Heller, "The Puzzling US Submission to the
Assembly of States Parties". Os Estados Unidos, na
16a. Assembleia dos Estados Partes do Tribunal Penal Internacional, fez uma
curiosa declaração, analisada pelo internacionalista. Se, do ponto de vista do
Direito Internacional, ela é cheia de erros e absurdos, segundo o prisma do
imperialismo, ela faz todo sentido... Como se sabe, o imperialismo é
fundamentalmente isolacionista, e seu uso do Direito Internacional é sempre
limitado e altamente instrumental. No entanto, o jurista aponta uma passagem
progressista da declaração, em que há um reconhecimento formal do dever de
direito internacional de "investigar e processar crimes de guerra,
genocídio e crimes contra a humanidade". É possível que esse
reconhecimento tenha ocorrido com surpresa para boa parte do governo daquele
Estado, como faz ironicamente notar o internacionalista: "I imagine
that position will come as something of a surprise to the parts of the US
government that were not involved in drafting the submission…"
Eterna Cadencia: "Toda la poesía del 2017". Parece estranho incluir um blogue de uma loja, mas este é tão bem feito, e literário, que não pude resistir a terminar esta retrospectiva com a recolha dos textos sobre poesia que essa livraria de Buenos Aires fez. Note-se a variedade, com a presença de autores tão diferentes como Gabriela Mistral, Fernando Pessoa, Leonard Cohen e Catulo, mas nenhum poeta brasileiro, o que talvez indique uma deficiência do mercado editorial argentino em relação à literatura deste país, ou, talvez, uma relevância limitada da poesia aqui produzida. Deixo os estudiosos pesquisarem a questão, que excede minhas forças.