O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 31 de dezembro de 2017

Retrospectiva 2017: palavras alheias e a rede comum


Uma das tiras de André Dahmer mostra alguém preocupado com o povo sair às ruas por causa do desvio de verbas. Seu interlocutor prova que a preocupação é infundada: pela janela, veem um cara solitário com o cartaz "entre no meu blog".
A ironia de se imaginar alguém na rua com esse tipo de apelo ao virtual, bem como sua solidão, e a contraposição disso com a mobilização política, encontram paralelo na tira em que um blogueiro confessa: "escrevo sobre coisas que não entendo, para pessoas incapazes de aprender" (ambas podem ser vistas nesta dissertação de Rodrigo Otávio dos Santos, às páginas 228 e 218).
Reconheço minhas limitações em aprender; no entanto, gosto de ler blogues pela informação e pelo estilo: em alguns casos, eles cumprem o papel deste gênero literário que está a ser gradativamente expulso do jornalismo, que é a crônica.
Já organizei retrospectivas por frases da época da ditaduraapresentações musicaisgraffiti e cartazesdireitos sabotados e perdidos; desta vez, decidi por textos de outros blogues, entre os que sigo e estão indicados à direita. Não incluí aqueles que servem de simples divulgação de artigos (como os do Murilo Duarte e do Marcelo Ribeiro), ou que se compõem de curtas resenhas, por não atenderem àquele requisito de gênero que mencionei, bem como aqueles em que assino textos (o Escamandro). 
Escolhi apenas um exemplo de cada blogue. A lista, como sempre, é estritamente pessoal e não pretende dar conta do ano, do tempo, do mundo, mas simplesmente estar de acordo com a ideia de rede que sempre me atraiu na internet, isto é, de que de um texto se possa passar para outro, como uma espécie de biblioteca de Borges. Correntes em aplicativos de mensagem e o que chamam de "threads" em redes sociais, claro, não podem, em razão de sua menor exuberância textual, cumprir esse papel, embora reconheça sua utilidade em uma sociedade estruturalmente iletrada.
Pensei em fazer uma retrospectiva das imagens "Fora Temer" que vi em diversas ocasiões; no entanto, como a foto acima foi uma das mais esperançosas que encontrei, desisti de fazê-lo. 


Janeiro:
Para ler sem olhar: de Diego Viana, "Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada". Viana, que já citei aqui algumas vezes, voltou a fazer um close seeing com far reaching, desta vez a partir de uma foto de René Burri tirada em Brasília, de uma "família humilde" com sua "roupa de domingo". A luz estourada da foto suscita diversas reflexões, até chegar, depois de um paralelo com Portinari ao rombo de orçamentos públicos. Quanto a mim, que sou da geração das crianças na foto, cujo nome desconhecemos, noto que elas estão mais nítidas do que os monumentos do poder, e que talvez fosse uma ação estética e política emancipadora aumentar a nitidez dos corpos contra aqueles espaços.

Fevereiro:
Seminario de Teoría Constitucional y Filosofía Política: de Roberto Gargarella, "La Corte Suprema y los alcances de las decisiones de la Corte Interamericana". Ao contrário da maioria dos constitucionalistas brasileiros, Gargarella preocupa-se com o Direito Internacional e não é isolacionista. Em 14 de fevereiro deste ano, a Suprema Corte argentina, a respeito do conhecido caso "Fontevecchia e outros contra a República Argentina", decidiu que seus acórdãos não podem ser "revogados" pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Houve muita polêmica na época, mas, em dezembro, a Suprema Corte assentiu que a decisão atacada pela Corte Interamericana fosse declarada incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Faço notar que, no caso brasileiro da ADPF 153, há uma questão parecida: o Supremo Tribunal Federal decidiu com base no ordenamento da ditadura, contra a Constituição de 1988, validar a lei de anistia do tempo do Figueiredo. Meses depois, a Corte Interamericana decidiu o oposto com base na Convenção Americana. Ainda não foram julgados pelo STF os embargos de declaração interpostos na ADPF, e que se referem a essa decisão internacional. Fux, em mais uma prática de violação do regimento do Tribunal, não leva o recurso a plenário, impedindo que se aprecie a divergência entre as duas cortes.

Março:
Gaveta do Ivo: de Ivo Barroso, "Consoante de apoio - a propósito de um poema de Charles Baudelaire". É um blogue recente, em que o poeta e tradutor publica textos antigos (por exemplo, a "Antiga palestra sobre Drummond") e novos, como esta análise de traduções de um dos mais célebres poemas de todos os tempos, "Spleen LXXVII", que começa com o verso "Je suis comme le roi d’un pays pluvieux". Analisa as soluções de Guilherme de Almeida, Jamil Almansur Haddad e Ivan Junqueira, que ele considera os que se saíram mais felizes no enfrentamento desse poema, preferindo a de Junqueira. Questões de métrica, rima, cesura, aliterações e figuras de linguagem são discutidas, o que é um alívio diante do desleixo com a forma hoje em moda em certos círculos que se bastam com um verso sem novidade e frouxo, desde que o poema termine com uma coroa de flores ou qualquer outro efeito lacrimejante ou de autocomiseração. Barroso inclui a própria tradução e a critica, e faz o mesmo com a de Wladimir Saldanha, que comentou o texto (uma oportunidade que os blogues proporcionam) e incluiu a dele para comentários.

Abril:
Desigualdades espaciais: de Hugo Nicolau Barbosa de Gusmão, "Não vai dar tempo… a morte chega antes que a aposentadoria para a população negra em São Paulo". São Paulo não é a cidade mais pobre do Brasil, tampouco a mais desigual. No entanto, nela, como a maioria das pessoas negras morre antes dos 65 anos, elas não chegariam a aposentar-se segundo a proposta de reforma da previdência que se discutia (o projeto foi alterado, e a "discussão" continua a ser liberação de verbas e cargos para os que votarão contra o povo). O trabalho do geógrafo, decifrando os distritos da cidade, mostra que os brancos vivem mais que os negros em todos, e que "Quando olhamos os distritos onde a média é superior a 65 anos anos a situação se torna mais grave, em apenas 10 distritos o tempo média de vida dos negros é superior a 65 anos". Um jornal nessa cidade depois usou esses dados. Ao ver a quantidade de dinheiro que Temer vem gastando para promover essa reforma, não conseguimos deixar de pensar que o neoliberalismo esconde um projeto de extermínio.

Site personel de Didier Eribon: de Didier Eribon, "Demain, je voterai pour Jean-Luc Melenchon". Macron venceu as eleições de 23 de abril na França. Melenchon, o conhecido político de esquerda, cresceu eleitoralmente. Destaco o texto não em razão dele, mas por causa da análise política do sociólogo. Eribon explica sua opção eleitoral, apesar de não concordar com todas as propostas do candidato, tendo em vista o "deslizamento espetacular da vida política e intelectual em direção à direita na Franca ao longo dos últimos trinta anos" ("glissement spectaculaire de la vie politique et intellectuelle vers la droite en France au cours des trente dernières années"), operada "principalmente no e em torno do Partido Socialista". Ele dá uma tremenda indireta a certo filósofo do consenso: "Qu’on ne se laisse pas abuser par les sermons de tel philosophe allemand qui a oublié depuis fort longtemps l’héritage de la théorie critique de l’Ecole de Francfort à laquelle on le rattache encore abusivement." e afirma que, se Macron ganhar, como aconteceu, e aplicar seu programa, o Front national, de extrema direita, terá 40% de votos no primeiro turno na próxima eleição.

Mobilização Nacional Indígena: "O maior Acampamento Terra Livre da História!".  Trata-se de matéria sobre o último ATL. O Acampamento ocorre anualmente, e a presença dos povos indígenas na capital é estratégica. Vi Ailton Krenak, mais de uma vez, dizer que cada tiro disparado contra os povos indígenas tem sua origem no Congresso Nacional. Ademais, agravou-se a conjuntura política, já desfavorável a esses povos no governo de Rousseff; desta vez, "O ATL também deu uma aula de democracia ao governo Temer. Na terça (25/4), na primeira marcha da semana, os indígenas foram recebidos com gás lacrimogêneo e balas de borracha na frente do Congresso. No dia seguinte, foram impedidos de entrar no Senado para assistir a uma audiência pública previamente marcada e foram intimidados pela polícia no caminho de ida e de volta ao acampamento."

Euterpe: de Frederico Toscano, "Rinaldo em Londres". Não sei se o blogue terminou, seu último texto é de maio. Eu escrevi mais sobre música do que o Euterpe este ano, porém, claro, nunca cheguei ao nível do que a equipe desse blogue fazia. Para chegar a uma das óperas mais conhecidas de Händel, Rinaldo, Toscano parte de Cavalli e faz um percurso pela ópera barroca, o que inclui a figura do castrato e as razões do sucesso da "opera seria" e sua estrutura formal fundamentada na profusão de árias, solos para os cantores brilharem. Como sempre no Euterpe, há diversos exemplos musicais, e talvez o mais interessante seja a sequência das três encarnações que a música de "Lascia ch'io pianga" (uma das árias operísticas mais conhecidas, gravada até por cantoras populares como Barbra Streisand) teve na obra de Händel. Minha ária preferida dessa obra, no entanto, é "Cara sposa"; Toscano escolheu o grande contratenor Philippe Jaroussky, proponho ouvir também a fenomenal Ewa Podles.

Maio:
Transe: de Moysés Pinto Neto, "Vivemos um momento extraordinário". O jurista trata do que chama de "um grande bloco no poder — o 'condomínio pemedebista' — cuja gestão era disputada pelos petistas e tucanos" e das configurações da plutocracia na última década, de 2013 como catalisador da indignação contra esses "arranjos", com esta observação ótima sobre o antigo governo: "O compromisso com a manutenção do governo paralisa a radicalidade do pensamento, tornando a crítica refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que as perspectivas radicais fossem engolidas pela defesa do indefensável. A perspectiva de futuro encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se bem quanto a questão procedimental começa a tomar a frente dos debates políticos, numa redução do político ao jurídico." Quanto ao governo atual, é claro que a única perspectiva do futuro em que se interessa é a manutenção do passado. Moysés, apesar de tudo, mostra-se otimista e julga o momento extraordinário porque "ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se abre uma janela histórica para formular novos projetos". Como ele é um dos poucos juristas brasileiros capazes de pensar politicamente, espero que participe bastante dessas formulações.

Junho:
El niño rizoma: de Julián Axat, "Tiempo futuro pos-memoria, poesía y justicia". O poeta, editor e jurista publicou originalmente este texto no blogue, que trata dos rituais judiciais da chamada pós-memória e o testemunho de pessoas como ele, filhos de desaparecidos. A figura do filho detetive da história, em analogia aos detetives selvagens de Bolaño, traz diversos relatos, que ele analisa, classifica, nesta referência a Foucault: "Cierta “enciclopedia china de la memoria” de las víctimas del terrorismo de Estado argentino, que implica -a su vez- formas inéditas, exóticas y hasta maneras estandarizadas o normalizadas de decir la catástrofe." Entre outras referências do artigos, está o interessante filme “Tierra de los Padres” (Fatherland, 2011) de Nicolás Prividera, todo filmado no Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e composto de fragmentos da fala de mortos, numa aposta estética radicalmente benjaminiana. Note-se que a Argentina, com Macri, está num momento adverso para a justiça de transição, ou para a justiça tout court.

Julho:
Índio É Nós: "Michel Temer, a AGU e a legitimação do genocídio dos povos indígenas". Análise da opção de Temer pelo etnocídio e pelo genocídio dos povos indígenas, oficializando a "tese do “marco temporal”,  "por meio de um Parecer vinculante da Advocacia Geral da União (Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU), com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, bem como de anular demarcações já realizadas.Mais um exemplo de como o Brasil se degrada, e um prenúncio de que 2018 será um ano de ainda mais crimes e golpes, eis que 2017 mostrou que o crime, mesmo desvelado, não só compensa como pode governar sem maiores sustos, bastando dividir o saque com mais instituições, veículos de imprensa e assemelhados.

Agosto:
Rio on Watch: de Lucas Smolcic Larson, "Três razões pelas quais Charlottesville poderia acontecer no Brasil". O autor busca fazer um paralelo entre a marcha neonazista naquela cidade dos Estados Unidos, suscitada pela conjuntura política favorável a esse tipo de violência, organizada contra a retirada dos monumentos aos racistas e escravistas, com certos temas no Brasil, como o repúdio indígenas aos monumentos pelos bandeirantes (ele inclui uma foto desta manifestação de 2013 em São Paulo, com o sangue simbólico escorrendo), bem como aos crimes de ódio contra as religiões afro-brasileiras e a violência policial; o texto não se aprofunda, infelizmente, nos esforços de normalização do fascismo realizados pelos meios de comunicação.

Setembro:
Reinventando Santa Maria: de Leonardo Bernardes, "Podemos: relato de uma experiência e de um juízo". O autor, filiado do partido, conheceu membros do Podemos na Espanha e analisa as virtudes e limitações desse projeto político, bem como a "tendência a trazer a política de volta a la calle", o que é importante para o Brasil também, neste momento em que parte significativa da esquerda quer que Temer fique e faça seus horrores, pois ele é um grande trunfo eleitoral para a oposição. Ele deixa de se referir às questões relativas à unidade da Espanha como Estado, que há pouco emergiram mais fortemente, porém, com a declaração de independência da Catalunha, que trouxe as pessoas de volta para a rua. Seria interessante ele retomar a análise a partir disso.

Outubro:
Twilight Beasts: de Jan Freedman, "Walking on thin ice". Embora o blogue em geral se concentre em espécies extintas, o texto dedica-se aos ursos polares e uma foto de um desses animais, bastante emagrecido, andando sobre uma camada de gelo igualmente reduzida. Esses animais têm sofrido desde as últimas glaciações, mas o aquecimento global, provocado pela ação humana, tornou a situação mais dramática. Os fanáticos de Trump (que adoram tweets como este), presentes também no Brasil, onde se somam a outros grupos, mais ou menos convergentes, como admiradores das linhas de Olavo de Carvalho e aldorebelistas, negam esses outros efeitos de extermínio do neoliberalismo. A bibliografia indicada por Freedman pode ajudar aqueles que, desses grupos, souberem ler. 

Novembro:
EJIL: Talk!: de Philip Leach, "The Continuing Utility of International Human Rights Mechanisms?". Trata-se de outro texto sobre as questões envolvidas na internacionalização dos direitos humanos. O internacionalista analisa pesquisas recentes que apontam para a eficácia dos mecanismos internacionais, trabalhos de Kathryn Sikkink, Gráinne de Búrca, Jérémie Gilbert, Ann Skelton. Ele mesmo procura pensar a questão, no âmbito do European Human Rights Advocacy Centre, e reflete sobre as possibilidades de fortalecimento  daqueles mecanismos, sabendo que o "contexto local" será o elemento mais importante ("the domestic context will remain the most significant element"). Para o Brasil, trata-se de questão vital, especialmente levando em conta o caráter isolacionista do Judiciário nessas questões, e que tem levado grupos historicamente discriminados por esse Poder a buscar os mecanismos internacionais, como os povos indígenas.

Dezembro:
Opinio Juris: de Kevin John Heller, "The Puzzling US Submission to the Assembly of States Parties". Os Estados Unidos, na 16a. Assembleia dos Estados Partes do Tribunal Penal Internacional, fez uma curiosa declaração, analisada pelo internacionalista. Se, do ponto de vista do Direito Internacional, ela é cheia de erros e absurdos, segundo o prisma do imperialismo, ela faz todo sentido... Como se sabe, o imperialismo é fundamentalmente isolacionista, e seu uso do Direito Internacional é sempre limitado e altamente instrumental. No entanto, o jurista aponta uma passagem progressista da declaração, em que há um reconhecimento formal do dever de direito internacional de "investigar e processar crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade". É possível que esse reconhecimento tenha ocorrido com surpresa para boa parte do governo daquele Estado, como faz ironicamente notar o internacionalista: "I imagine that position will come as something of a surprise to the parts of the US government that were not involved in drafting the submission…"

Eterna Cadencia
: "Toda la poesía del 2017". Parece estranho incluir um blogue de uma loja, mas este é tão bem feito, e literário, que não pude resistir a terminar esta retrospectiva com a recolha dos textos sobre poesia que essa livraria de Buenos Aires fez. Note-se a variedade, com a presença de autores tão diferentes como Gabriela Mistral, Fernando Pessoa, Leonard Cohen e Catulo, mas nenhum poeta brasileiro, o que talvez indique uma deficiência do mercado editorial argentino em relação à literatura deste país, ou, talvez, uma relevância limitada da poesia aqui produzida. Deixo os estudiosos pesquisarem a questão, que excede minhas forças.




terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Maria Callas e o método das iluminações

Maria Callas morreu em 1977, de um enfarte fulminante em sua casa, em Paris. Ainda não tinha completado 54 anos. Continua a ser, segundo fontes que li, a cantora lírica que mais vende discos no mundo, o que é significativo em um campo artístico que exige tanto dos intérpretes. Creio que não deva ter paralelo na música popular.
Eu a ouvi pela primeira vez em uma transmissão de La Gioconda, ópera de Ponchielli, na Rádio MEC. Eram os anos 1980.  Ouvi apenas o final da ópera e fui surpreendido pelo desespero (eu não sabia nada da história, peguei a transmissão no fim) e pelo mergulho daquela voz na região grave, pouco usual para um soprano. Era isto. E incomparável.
Ela estreou na Itália em 1947 com esse papel. Não o cantou muitas vezes ao vivo, mas, depois da gravação de 1952 para a Cetra,  regravou-o para a EMI em 1959. A hiatória se passa em Veneza. Na ária "Suicidio", a protagonista cogita matar-se diante dos problemas que enfrenta, entre os quais o assédio sexual de um denunciante da Inquisição, o desaparecimento recente de sua mãe (que é cega), e o fato de ter salvado para o homem que ela, Gioconda, ama, a mulher que ele, Enzo, ama, e que o marido tentou matar ao descobrir o adultério.  O libreto é de Arrigo Boito,  mas a história vem de Hugo.
Depois de cogitar o suicídio, pensa no que fazer com Laura, a rival que ela salvou, embora tivesse planejado matá-la; só não o fez porque descobriu que Laura salvara sua mãe quando o assediador resolveu incitar um linchamento popular contra ela, acusando-a de bruxa.
Gioconda debate-se entre sentimentos opostos, ouve os gondoleiros dizer que há cadáveres e, em meio à "tempestade" que sente, pede, a partir dos 4 minutos, "Enzo, Enzo, pietà di me!" O tenor chega e exclama "Gioconda!".
A veemência com que Callas canta essa parte, com o recurso de sua impressionante voz de peito e o agudo estável ainda em 1959, se ainda não tivesse convencido o público sobre os sentimentos de Gioconda, a vulnerabilidade com que ela indaga, depois de 4'30'', "Enzo, sei tu?" desarmaria os mais céticos. O trabalho desta intérprete é povoado desses detalhes, iluminações que dão vida e complexidade para os personagens que encarnou.
Nessa atenção para os detalhes revela-se o gênio de Callas, que faz com que achemos algumas outras cantoras chatas ou meio burras em comparação, mesmo se têm vozes esplêndidas, e que sustenta o interesse pelo trabalho dela mesmo durante o declínio vocal.
Essa é uma ópera do verismo, um estilo do realismo na música, e me referi a duas gravações em estúdio. No entanto, pode-se legitimamente afirmar que o maior legado dessa artista concentra-se nas óperas do chamado bel canto em gravações ao vivo.
Um dos papéis em que Callas foi mais revolucionária foi o de Lucia di Lammermoor na ópera homônima de Donizetti. Uma jovem que namora em segredo o remanescente da família rival é enganada pelo próprio irmão para casar com outro, seu amado aparece inesperadamente na cerimônia, ocorre um escândalo, ela enlouquece na noite de núpcias e assassina o marido. Vai para o salão onde ainda ocorre a festa de casamento e imagina estar se casando com o outro...
Trata-se de uma cena de loucura, um longo solo que outras cantoras tratavam como pretexto para vocalises na região aguda e passeios desnorteados pelo palco. Callas quase não se deslocava nesse momento, segundo os relatos (há pouquíssimos e, com uma exceção, em geral muito curtos vídeos que a mostrem em ação no palco de ópera). Ela forçava o público a concentrar-se nela pela força da unidade que atingia entre música e drama. Os dois elementos, para ela, não se dissociavam, o que explica que seja sinônimo da ópera para tantos.
Callas ressaltava a fragilidade e a perturbação de Lucia desde a entrada, tornando verossímil o surto posterior. Quero aqui destacar um só momento da interpretação, e que só a ouvi fazer na apresentação em Berlim, 1955, regida por Karajan. A personagem imagina, em seu delírio, que está a entrar na igreja para casar-se com Edgardo.  Exclama: "La gioia che si sente e non si dice" (a alegria que se sente e não se diz, a partir dos 6 minutos e 6 segundos do vídeo). Ela canta "La gioia" forte, executa a escala descendente e "si sente" é cantado como se fosse um eco, quase um fantasma, como o fantasma da fonte que a atormenta desde a ária do primeiro ato.
O canto entra no terreno do indizível, talvez preparando para a cadência mais adiante, na vogal "ah", que Callas conseguia integrar ao que veio antes, preparando no discurso a irrupção do inarticulado. Por quê? Essa alegria não se diz, canta logo depois, com um timbre diferente dos que tinha criado até então, quase como se fosse uma menina. Além da desorientação sugerida pelas mudanças de abordagem vocal em espaço tão curto, o caráter reprimido de Lucia, cujo desejo foi calado pela família, é exposto e absolve esta cena de loucura da acusação de mero clichê da ópera romântica italiana.
Uma voz muito diferente da que Callas adotava para Lucia era a que ela forjava para cantar Medea, na ópera de Cherubini, que ela cantava com os recitativos de Lachner e em tradução para o italiano. O original é na língua francesa e tem diálogos falados. A gravação de estúdio, com o maestro Serafin, um dos descobridores de Callas, apresenta cortes demais. Na última gravação ao vivo dela disponível, na regência ponderada de Schippers, que não logrou evitar alguns acidentes orquestrais, há uma passagem muito impressionante, sobre a qual fiquei curioso depois de ler uma entrevista do baixo Nicolai Ghiaurov poucos anos antes de morrer. Indagado sobre Callas, respondeu que nunca esqueceria como ela lhe dizia "un dì" na famosa cena em que Medea suplica mais um dia para Creonte antes de partir para o exílio. Sabemos que a feiticeira conseguiria executar toda sua vingança nesse prazo, mas ela consegue convencer o rei.
Em 1961, a voz de Callas, já na fase Onassis  (que não tinha piano no navio, não gostava de ouvir os exercícios vocais e, segundo Zefirelli, por isso Callas parou de praticar, o que é suicídio para  um cantor lírico), já tinha perdido extensão e estabilidade no agudo, mas continuava suprema no papel (basta comparar com quem veio depois, como Rysanek, Gencer, Caballé, Antonacci...) e ainda tinha descoberto inflexões novas; a cada vez, ela pede por "un dì" com uma inflexão diferente, como se experimentasse qual daquelas maneiras iria finalmente convencer Creonte; ouçam a partir dos 29 minutos, essa parte da súplica ocorre aos 29'40''.
No fim da cena, ela canta sem problemas o si bemol agudo.
A EMI não quis gravar muitos dos papéis que ela interpretou ao vivo, alguns dos quais ela resgatou, esquecidos em razão da falta de intérpretes capazes de encarná-los. Medea foi um deles, a Armida de Rossini também. Des,  temos uma gravação ao vivo da ópera quase completa em um som quase atroz, como parecia ser a regra nos teatros italianos nessa época, e da ária "D'amor al dolce impero", em 1954, para o rádio.
A história, parte de "Jerusalém libertada", é conhecidíssima e gerou várias obras líricas (como as de Gluck e Lully). A obra de Rossini concentra-se no encantamento que a feiticeira lançou sobre o cruzado Rinaldo e termina depois que ele consegue liberar-se do feitiço. Naquela ária, especialmente na apresentação de 1952 em Florença, na regência de Serafin, a multidão de ornamentos e a extensão de duas oitavas e meia (Callas interpola no final da ária um ré sobreagudo de dez quilômetros; antes, havia chegado ao mi, e terminaria a ópera com um mi bemol fortíssimo) não são gratuitas, e sim expressam os poderes mágicos da personagem.
É de se indagar se mesmo a Colbran, criadora do papel e célebre virtuose, conseguiu cantar nesse nível.
Se Callas podia ser tão incomparável nesses papéis de personagens tão distantes do cotidiano, ela podia ser igualmente convincente em personagens que não têm nada de incomum. Posso até mesmo lembrar aqui um papel que ela jamais cantou inteiro: gravou apenas uma ária e a cantou em concerto: a Charlotte da ópera Werther, de Massenet, e a cena em que ela está com as cartas do Werther, que a ama. Trata-se da conhecida história de Goethe. Sabemos que seu compromisso de noivado e casamento não seria rompido. Porém, nesta cena, sozinha, fica bem claro que ela o ama. E, ao vivo em Paris, em 1963, sob a regência de Prêtre, Callas empresta às lágrimas ("larmes") uma voz extremamente comovida, sem quebrar a linha de canto com soluços, que é o que faria uma cantora menos sutil. A partir de 5'05" , depois do "não me acuse, chore por mim", temos essa passagem.
Dito isso, Callas podia ser muito engraçada, como em O Turco na Itália, de Rossini, que cantou em Roma e em Milão e, felizmente, gravou. Apesar dos cortes, ela faz parecer Cecília Bartoli uma intérprete comedida e tímida em comparação.
Ela era uma artista de contrastes, que ela encontrava dentro dos personagens, onde descobria complexidades que outras cantoras ignoravam, e também na justaposição de repertório com exigências vocais muito diferentes, como cantar ao mesmo tempo Medea e Lucia, o que não é uma receita de longevidade vocal. Na estreia dela em Paris, em 1958, ano em que foi expulsa da Itália (a imprensa italiana conseguiu destruir sua carreira lá inventando que ela quis insultar o presidente quando deixou uma apresentação de Norma por estar doente) e do Metropolitan Opera House  (outra história absurda), ela teve que lutar com a péssima performance do coro e com a afinidade zero do maestro com o bel canto. A voz está fria no primeiro número, a entrada da Norma (na qual se percebe o problema de apoio que iria minar seu canto), porém ela vai ficando cada vez mais segura.
Gostaria de destacar dois momentos contrastantes, tanto em termos vocais quanto teatrais. No final da primeira parte do concerto, Callas livra-se do coro e canta a ária de Rosina da ópera "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini. Callas a cantava com os agudos da versão de soprano. Quando repete "io sono docile" (aos 4'56'') ela muda o timbre, deixa-o ainda mais ligeiro, quase como se estivesse rindo de nós; afinal, não é bem assim, é depois do "mi fo guidarrrma", ela anuncia que pode se tornar uma víbora para conseguir o que deseja.
A segunda parte é o segundo ato da Tosca, de Puccini. Imagino que seja bem incomum uma cantora interpretar a música da Tosca e a da Rosina na mesma noite. Sérgio Brito, na introdução à edição brasileira do livro de John Ardoin destaca o que Callas inventa no fim. Tosca, a cantora, acabou de assassinar e terminar o rito fúnebre improvisado do chefe de polícia romano,  que queria estuprá-lá em troca da vida do namorado dela, um revolucionário em tempos napoleônicos.  Tosca tem ainda uma frase a dizer, "Diante dele, tremia toda Roma". Na gravação em estúdio de 1953, ela canta a frase repetinfo o dó grave. Na última, que foi lançada em 1965, e que seria trilha sonora do filme que Karajan impediu, comprando os direitos de filmagem da ópera, ela declama a passagem com desprezo pelo policial corrupto, torturador e assassino.
Em Paris, ela debocha dele, aos 11'30''. É muito divertido.
Poderia citar mais mil exemplos das iluminações de Callas, que partem dessa unidade entre música e drama que é a essência da ópera. Como ela foi uma artista original que iniciou o resgate de um repertório negligenciado, os críticos e os outros intérpretes que se viam ultrapassados pela simples existência dela, foi muito combatida.  Quando foi lançada sua primeira gravação de Norma, de Belliní, a revista inglesa Opera deu uma página dando notícia do disco, mencionando todos os cantores menos a protagonista. Quando iria estrear no Metropolitan, a Time deu-lhe capa, mas a matéria a atacava tanto pessoalmente quanto como artista.
Já em 1958, ela cogitava publicamente deixar a ópera, depois das ameaças de morte que recebeu na Itália. Mas ela venceu: a ópera foi transformada pela passagem de Callas, seu gênio e seu profissionalismo (ela era uma diva que já chegava aos ensaios sabendo toda a música, e que podia chegar mais cedo para assistir ao ensaio do coro e conhecer melhor a concepção do espetáculo).
Callas era uma intérprete que nem mesmo precisava cantar. Alberto Pimenta, em texto de O terno feminino, destaca essa força de incorporar a música mesmo antes de abrir a boca. Vejam o que ela faz na introdução à "Tu che le vanità", da ópera Don Carlo, de Verdi. Depois, ela logra estabelecer o contraste entre o "mundo" e o "repouso profundo" da sepultura, que ela ressalta com a voz de peito, com o som mais etéreo que produz para "céu".
Callas começou a cantar muito cedo e estreou profissionalmente com a Tosca, que ela cantaria até o final, porém é um papel que hoje ninguém sensato daria a alguém com menos de 20 anos. Pouco depois, ainda na Grécia, cantaria Leonore da ópera Fidelio, de Beethoven, e ainda interpretaria, já na Itália, heroínas dramáticas de Wagner (mas em italiano), Isolda, Brünnhilde e Kundry, bem como Turandot... Papéis que ela deixaria para se concentrar no bel canto
Há quem a critique pela "carreira curta". Levando em conta o quão cedo começou, a carga de trabalho que acumulou (e que ela multiplicou cantando a plena voz nos ensaios), as complicações que atravessou, inclusive de saúde, Callas até cantou bastante tempo, embora tenha deixado os palcos antes dos 42 anos. Ademais, quando ela parou, suas companheiras de geração, deve-se notar, já estavam em decadência, como Victoria de los Ángeles, Renata Tebaldi e Elisabeth Schwarzkopf.
De certa forma, a carreira de Callas foi a mais longa de sua geração, pois seu impacto continua a sentir-se hoje: no repertório que estava na obscuridade e cujas possibilidades ela iluminou (hoje até o Metropolitan que, sob a triste direção de Bing, se recusou a montar Anna Bolena com Callas, produz essa ópera e outras do mesmo estilo), nas exigências artísticas que fez a si mesma, aos colegas e ao público  (uma ética da performance) e nas gravações que deixou.
Neste ano, em outra vingança póstuma, a gravadora que ficou com o espólio da EMI lançou uma caixa com algumas das interpretações ao vivo da cantora, e parte delas são de óperas que a gravadora recusou porque não foram consideradas comerciais o suficiente... Embora estejam sendo comercializadas até hoje,  primeiro como discos piratas.
Ela também foi acusada de ter uma voz "feia"; deveríamos perguntar qual das vozes de Callas não tem beleza, já que há tantas. Quanto a mim, acho que há poucos sons mais belos do que ela cantando "Soffriva nel pianto", da Lucia, em Berlim. Meneghini, o marido de quem se separou para viver com Onassis, escreveu que ninguém questionava a beleza de sua voz e que essa acusação apareceu apenas depois que começaram a compará-la com Renata Tebaldi, soprano que serviu como referência para os ataques movidos pelos reacionários contra Callas. Tebaldi, segundo estes, cantava como um anjo, e não era estridente como a rival.
Claro que o angelismo era facilitado pelo fato de ela transpor para baixo sistematicamente certas passagens (nem em estúdio ela foi capaz de enfrentar "Sempre libera", de La Traviata, na tonalidade certa) cantar uma oitava abaixo as notas difíceis, além de estar algumas vezes baixa nas notas agudas, defeitos que ouvimos nas gravações ao vivo. Enfim, a comparação entre ambas não fazia realmente sentido, até porque não costumavam cantar o mesmo repertório.
Esta nota se alonga, emora eu não tenha mencionado trechos da Norma, da Traviata e de outros papéis associados à cantora. Apontar as iluminações que ela criava nessas óperas é um trabalho para toda uma vida, e por isso ela é um caso raríssimo de cantor de quem se edita praticamente todo suspiro. É uma pena que, em vídeo, praticamente só tenhamos documentos do fim de seu auge e da decadência vocal.
Término com dois pontos. O primeiro é a justificativa de um leigo como eu escrever isto: vi coisas meio absurdas e informações erradas nestes 40 anos de morte, como o de que nunca teria cantado Mozart no palco (interpretou um deles, a Konstanze de O rapto do Serralho em italiano no Scala), em um estranho programa de rádio de São Paulo.
O segundo,  uma última iluminação, desta vez da Sonnambula, de Belliní. A pobre sonâmbula, Amina, lamenta, andando adormecida, a perda do amor que só um dia durou. O pranto poderia reviver as flores,  mas não o amor. Esses clichês poéticos ttansformam-se na mais delicada desolação na voz de Callas, especialmente ao vivo em Colônia, em 1957, com o maestro Antonino Votto. A partir de 10'50'', ouve-se a frase "il pianto mio ah non, non, non può". Em "pianto", ela realiza um diminuem do na nota prolongada e emprega o mesmo efeito em "può"; os diminuendi e o timbre absolutamente melancólico que ela encontrou para "mio" deixam uma impressão de tremenda fragilidade e de colapso iminente. Ninguém mais encontra essa profundidade de sentimento em Amina que, sem isso, é mera oportunidade de exibição vocal.
Depois, ela é acordada, seu noivo vê que a julgou mal e a aceita novamente e o personagem canta o recontro da felicidade. Entre as duas estrofes de "Ah! Non giunge uman pensiero", Callas emite (depois dos 16 minutos) um mi bemol sobreagudo, faz um diminuendo nessa nota, desce numa escala cromática, volta a subir e para, enfim respira e ataca um fá agudo forte. Na estrofe final, os ornamentos não interrompem a melodia, ao contrário do que cantoras menos musicais fazem.
Em momentos como esses, Callas dava a impressão não só de que podia cantar tudo, como o de que podia expressar todos os sentimentos, da tristeza mais profunda à alegria mais eufórica, e que poderia enriquecer o mundo com sentimentos novos, que ainda não tinham sido alcançados por voz alguma.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Filosofia política e robôs na internet: uma nota sobre democracia, notícias falsas, ilusões e políticas grosseiras

O filósofo Milton Meira do Nascimento foi homenageado na IV Jornada de Filosofia Política na Universidade de Brasília, coordenada por Cecília Almeida, professora da Faculdade de Filosofia da UnB. Sua conferência, "A opinião pública na era da pós-verdade", partiu da questão da opinião pública em Rousseau para chegar a dilemas políticos atuais. Ela foi gravada e pode ser vista através desta ligação: https://www.facebook.com/jornadafilosofiapoliticaunb/videos/1685300514875527/
Sobre a pretendida reforma da previdência no Brasil, ele afirma: "se houvesse uma democracia, o povo seria convidado a tomar uma decisão". Ele deixou bem claro que não estamos em uma democracia, e o público presente não discordou; creio que uma boa parte era da própria UnB, que é um dos alvos de sucateamento do governo de Temer. A Jornada reuniu pesquisadores de vários Estados e também estrangeiros.
Sobre a tendência de as pessoas só falarem com semelhantes em redes sociais, Milton Meira do Nascimento considerou que "o espaço público não pode ser um espaço de bolhas" e indagou: "por que não sentar-se à mesa e discutir?"; depois de falar dos efeitos nefastos da privatização e do "descaso generalizado" com o que é público, considerou que "a invasão das bolhas no espaço público impede que haja uma percepção do espaço público, pois, quando você entra como bolha, você entra defendendo seus interesses até a morte".
O filósofo estipulou pontos para a reforma política, no sentido de fortalecer a soberania popular, bem no sentido oposto do que indica o Congresso Nacional; "nós estamos caminhando a largos passos para uma ditadura", advertiu.
Boa parte da discussão que se seguiu, e não foi gravada, teve como objeto esta questão: é possível conversar com os "coxinhas"; e com os fascistas? Alguns se opuseram a essa abertura proposta por Milton Meira do Nascimento. No último dia da Jornada, houve duas mesas simultâneas à tarde, que acompanhei parcialmente, que eram basicamente opostas: de um lado, os filósofos da guerra querendo o confronto e o enfrentamento; do outro, os psicanalistas falando de escuta clínica e de atendimento de não importa quem no espaço público.
Perguntei-me, então, com quem se pode falar? Todos que estão a proferir discursos são, realmente, cidadãos? O espaço da discussão, creio, fecha-se com a presença de milhões de identidades falsas na internet, que não foram criadas para discussão, mas para fins de guerra ou de disputa (de mercados, de cargos), seja de governos, de partidos ou de empresas. Não correspondem a membros da comunidade política.
Essa questão não foi abordada naquele instante, mas, depois do evento, fiquei a observar mais detidamente essas identidades talvez falsas. Alguém que entendesse da internet poderia escrever algo interessante sobre isso; não é meu caso, apenas escreverei uma nota lembrando de Hannah Arendt sobre o descarte dos homens no mundo da produção: eles poderiam tornar-se inúteis até para serem explorados - e isso seria o pior que poderia acontecer. No artigo "Sobre a violência", de Crises da república, em que explica a diferença entre violência e poder, ela imagina outra possibilidade de descarte do humano: "Somente o desenvolvimento de soldados robôs que eliminassem [...] o fator humano por completo e permitissem a um só homem com um botão de comando destruir a quem lhe aprouvesse, poderia mudar esta supremacia fundamental do poder sobre a violência." (cito a tradução de José Volkamnn, publicada pela Perspectiva).
E os robôs no discurso, no mundo da ação, substituindo os homens? O robô sempre será, imagino, a voz de quem o produziu, seja o mercado, seja o Estado. Não teremos um contrato social com ele. Arendt não chegou a pensar nisso, mas creio que, nos termos dela, esse seria o final da política.
Na minha pequena experiência, creio, pelas centenas de spams que recebo em outro blogue, creio que a maior parte da internet é composta por robôs, entes automáticos ou semiautomáticos. Além do uso para golpes e outros tipos de negócios, eles estão na política. Matéria do El País (de Javier Salas, "Robôs e ‘trolls’, as armas que Governos usam para envenenar a política nas redes", em 24 de novembro de 2017) indica apenas trinta Estados em que os governos empregam perfis falsos para distorcer o debate público, com referências aos milhões de contas falsas russas comandadas pelo que chamam de "mais famosa fazenda de trolls do planeta: a Internet Research Agency (IRA)", tão significativas para a vitória do atual presidente dos EUA. As contas no Twitter não foram apagadas para não prejudicar "o crescimento da companhia"; em outubro deste ano, a empresa reconheceu que superestimou seu número de usuários (vejam a matéria de The New York Times). O Twitter tem verificado contas, e uma das razões para perder a verificação é a de enganar as pessoas intencionalmente ao alterar nome ou biografia, bem como promover a violência (segundo este texto, que, aparentemente, não tem sido aplicado a governantes).
Foi chamada de efeito de "comportamento de manada" a possibilidade de perfis falsos direcionarem comportamentos. Eles estão sendo "incorporados" às Forças Armadas dos Estados para "modelar comportamentos por meio de narrativas dinâmicas", "shaping behaviours through the use of dynamic narratives", como anunciou o Ministério da Defesa do Reino Unido em 2015: trata-se da guerra na era da informação. É significativo que funcionários do Facebook, que tem "Big Data" de seus usuários e sabem como direcionar anúncios por meio dos algoritmos, tenham sido consultores da campanha de Donald Trump.
Além de perfis falsos, há quem veja malefícios na própria dinâmica das redes sociais. Leio que um ex-diretor no Facebook, Chamath Palihapitiya (outra matéria de El País), pensa estar ocorrendo uma limitação nas "interações humanas", bem como um défice no "discurso civil", o que envolve as informações falsas; outros nomes que trabalharam nessa rede afastaram-se dela completamente e a criticam como "ferramenta de manipulação em massa".
Talvez a dinâmica de redes sociais como o facebook suscita seja favorável ao fascismo na medida que a polarização política permite mais venda de anúncios e mais lucros, apontam outros (The Verge, "How Facebook rewards plarizing political ads", por Casey Newton):
“Facebook’s profits depend on people coming back, clicking and sharing things,” said Alex Howard, deputy director of the Sunlight Foundation, which advocates for transparency in political advertising. “It’s not based on, ‘did we arrive at a resonated discourse on this policy proposal?’ or ‘did the best questions get asked at this town hall?’ or ‘did this politician get fact-checked on the lies that he or she was propagating?’”
Não se trata de uma situação ideal de fala... E como poderia sê-lo, se se trata de empresas, e que fazem da desinformação seu negócio? O próprio número de perfis falsos e o tráfego que geram são favoráveis ao lucro.
Há perfis automatizados, programados para disseminar certos tópicos ou mensagens de determinada contas, mas há também aqueles, humanos, pagos para determinada campanha, legenda política ou produto (tudo, enfim, é um produto). Esta sequência de tweets mostra como os "bots" conversam: https://twitter.com/RedIsDead/status/939480257073004544. Um deles foi apagado pela rede social.
Transcrevo o curioso diálogo:"Trump is Protecting America! He is our president!", "yeah he sure is", "I ordered 2 of them", "oh great i am also going to order", "That would be great" "We Love our President". Ele todo segue a lógica da mercadoria; a inusitada frase de que encomendou ou comprou 2 deles, embora aparente quebrar o contexto, revela-o plenamente, pois não estávamos diante de uma discussão política, e sim apenas de propaganda do plutocrata em questão.
Os ciborgues são comandados em parte por computadores, em parte por humanos e imitam de maneira mais eficaz o comportamento de uma pessoa real. Esta matéria de Juliana Gragnani estabelece uma taxonomia desses perfis, ("Como identificar os diferentes tipos de fakes e robôs que atuam nas redes", BBC Brasil, 16 dez. 2017) destinada a ficar obsoleta mais adiante, com os novos produtos do mercado da desinformação.
Como identificar um "bot"? Kyle Murray deu algumas dicas analisando este perfil de admiradora de Trump e Putin: https://medium.com/@TheKyleMurray/fight-on-line-the-curious-case-of-proud-trojan-jenifer-stevens-c6bf35b12f7. No Twitter, ela não tinha fotos pessoais, não identificava a empresa de que seria CEO; no Facebook, usava a mesma foto para diferentes postagens, e as fotos do perfil não eram da mesma pessoa.
Muitos simplesmente repetem a mesma mensagem: https://twitter.com/KaizerGabriel/status/943552159664230402
Esses eram da Igreja Universal, combatendo a reportagem portuguesa sobre o tráfico de crianças que seria promovido por essa Igreja. No Brasil, curiosamente, muitos desses perfis são seguidores de J. Bolsonaro, político mencionado por Milton Meira do Nascimento, naquela palestra, como alguém que deve ser enfrentado no debate público. No entanto, uma das formas de ele (e seus filhos) evitarem esse debate é justamente cercar-se desse exército virtual, pronto a realizar ações de massa contra eventuais adversários. Por algum motivo que me escapa, há uma série de perfis duvidosos nesse entorno. Imaginem uma suposta página de feministas com aquele político que não só responde como se fosse um sujeito masculino como faz piadas contra as mulheres? Vejam aqui: https://twitter.com/AnarcoFino/status/921568357681389568
Fernando Marés de Souza apontou, já em 2014, a falsidade da maior parte desses apoiadores virtuais. Ele escreveu que o "Brasil tem 140.646.446 eleitores. Destes, 140.647.451 assinaram petição a favor de Bolsonaro": https://twitter.com/roteirodecinema/status/450298497359970304.
Como ele poderia ter mais apoiadores do que o Brasil tem eleitores? Fenômenos como esse podem explicar-se como o fruto milionário do uso de robôs. A "inundação de perfis reacionários" na internet deve-se a isso.
A possibilidade de um pequeno grupo parecer uma multidão (cito Jake Laperruque: "Essentially, the software allows a small group of individuals to pose as an extremely large group of people online") tem implicações no direito eleitoral, tendo em vista a possibilidade de manipulação do debate público. Tendo em vista a propensão desses perfis de propagar notícias falsas, o desafio é grande. Gilmar Mendes, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, previu dificuldades no combate às notícias falsas.
Na verdade, o Judiciário não quer atacar a questão: "Os ministros não devem proibir definitivamente o uso de robôs em campanhas para divulgação de agenda e plataformas de governo". É necessário, no entanto, distinguir os robôs que fingem ser humanos, e não tratar a questão como qualquer outro tipo de propaganda: quem tem mais dinheiro, compra mais panfletos, por exemplos. Proibir, para efeitos eleitorais, notícias falsas e não perfis falsos parece-me um contrassenso, pois esse tipo de perfil é, em si mesmo, uma informação não verdadeira: a informação de que existe aquele eleitor e ele apóia ou combate determinado partido ou candidato.

Fenômenos curiosos ocorrem na internet. Por que um apoiador de Bolsonaro que utiliza a pobre bandeira brasileira no plano de fundo e que, ademais, nunca escreveu nada na rede social, seria tão interessante para ser seguido por um perfil em inglês em prol do Partido Republicano dos EUA, que chama, com a sutileza típica, Clinton de corrupta e exige isto: "build the wall"?

Além da barreira linguística, mais pronunciada para cidadãos daquele Estado, há o fato de o perfil nunca ter escrito nada e ter poucos seguidores (doze), todos, aparentemente, na mesma situação de militância política.
Claro que não digo que esse perfil é um bot, mas apenas que se parece com um, neste momento em que tantos humanos se assemelham a robôs e vice-versa, inclusive no nível de domínio das estruturas linguísticas.
Pode-se até pensar que aqueles dois perfis vieram da mesma origem.
Alguns desses perfis querem dados alheios e apresentam mensagens do tipo "Quer ganhar dinheiro? Cadastre-se no link". Deve funcionar, há ingênuos que têm algum dinheiro...
Pode ser um sinal de identidade falsa o nome do avatar e da arroba não coincidirem, e o da arroba parecer uma combinação aleatória de algarismos e letras.
Outro elemento a se considerar é o fato de terem poucos seguidores (alguns deles, no entanto, têm centenas de milhares, como se fossem latifúndios de robozinhos), e, desses, muitos com perfis em inglês, em geral com referências a Jesus, e/ou a Trump e o Partido Republicano, e/ou a serviços sexuais.
Acho que verificar quem são os seguidores é decisivo. Esses perfis de apoio a Bolsonaro que não se aparentam a pessoas reais são, em geral, seguidos por perfis em várias línguas, inclusive asiáticas, embora só escrevam em português, o que é estranhíssimo. Alguns não têm foto, muitos apresentam a bandeira brasileira (às vezes com um olho, talvez numa alusão a sua atividade de vigilância), afinal "Existe um povo que a bandeira empresta/ P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...". Muitos dos mais violentos apresentam-se com referências a times de futebol e/ou ao Cristianismo e pedem "intervenção militar", isto é, golpe de Estado. É possível que os criadores desses perfis esperem encontrar no futebol e nessa religião o exército de reserva do fascismo.
Muitos desses perfis apresentam fotos daquele juiz em Curitiba cuja imagem mais célebre mostra-o  rindo com o senador da frase "um que a gente mata ele". Margaret Thatcher e Ronald Reagan aparecem também. Mas, principalmente, Trump. É curioso notar que outros perfis, embora apresentem frases para atrair indecisos, como "não possuo político de estimação", expõem fotos de políticos fascistas e retransmitam suas mensagens... Muitos são perfis que prometem retribuir todos os que os seguirem, ou prometem o impacto do Twitter para os negócios.

Existem perfis militantes que tuitam centenas de vezes por dia; em geral, repassam mensagens de outrem. Mas há também perfis automatizados que o fazem. Vejam, ao lado, esse, que não identifico, que repassa mensagens de Bolsonaro e de pessoas da direita (no caso, este senhor Moura Brasil). Na parte inferior, à direita, pode-se ver o horário de cada um dos três quadros. A cada minuto, sessenta tweets novos. Um por segundo; poderia ser ação humana?
Diversos perfis militantes do monarquismo fazem campanha por Bolsonaro, o que não deve surpreender, pois eles se encontram politicamente no campo do antirrepublicanismo.
É curioso, no entanto, que políticos (em geral de partidos de direita, como o PSDB) e militares sigam perfis obscuros dessa natureza, que estão em campanha por aquele político (campanha ilegal, ademais, pois ainda não chegou a época no calendário eleitoral).

Talvez esses políticos e militares o façam em uma atividade de vigilância, em vez de adesão ao projeto político? Pode-se indagar. Veja-se este general, comandante militar da Amazônia, que segue diversas contas de pequena expressão que defendem o golpe militar e/ou Bolsonaro.
Este artigo de Robert Gowa, "Computational Propaganda in Poland: False Amplifiers and the Digital Public Sphere", realizado no âmbito do Computational Propaganda Project, da Universidade de Oxford, analisa os bots, os trolls e os perfis e notícias falsas na Polônia, e confirma que um "muito pequeno número de contas suspeitas de serem bots" é extremamente ativo nos tópicos políticos e pertence, a maioria, à direita. Suspeita-se da influência russa; jornalistas que escrevem artigos críticos sobre esse país recebem ameaças: "This seems to have become particularly common for journalists and other civil society members, with one interviewee noting that although he had gotten used to the spam and harassment that he would receive after he published articles critical to Russia, it became particularly worrisome when he began receiving private Facebook messages from anonymous accounts that threatened his wife and children by name."
Muitos dessas ameaças vêm dos trolls, os bots sendo menos comuns na Polônia; eles, no entanto, estão espalhando discursos altamente xenofóbicos e incitadores do ódio.
Há muitos desses perfis no Brasil; gostaria de ver um estudo como esse aqui. Como sou leigo na questão, imagino três questões vinculadas ao problema:
a) A quimérica autorregulação não funcionará. As redes sociais, em seu modo de produção, já mostraram que não controlarão o fenômeno, não apenas porque é uma fonte de lucro, mas porque a dignidade não faz parte daquela produção. Vejam que o pessoal que cuida de verificar o que está sendo escrito no Facebook ganha salário mínimo por jornada de oito horas diárias. Não se trata de uma atividade que a empresa valorize.
b) Um possível fim da neutralidade da internet assegurará um aumento da grande desigualdade no espaço público em prol do capital e do Estado, certamente acentuando e fortalecendo as contas e notícias falsas.
c) Parece-me, enfim, que o problema das notícias falsas talvez encontre um terreno mais fértil nos aplicativos de mensagens, mais ainda do que nas redes: com o iletramento estrutural e militante (a ruína da educação é dos projetos políticos mais tradicionais na sociedade brasileira, galhardamente acelerado por Temer), o fenômeno de pessoas se informarem antes por mensagens (com "memes" ou não) do que por periódicos se multiplicará. A impossibilidade de análise e de contextualização nesses meios infensos ao texto não impede, muito pelo contrário, insultos, conspirações e mentiras.
Levando em conta os grupos familiares, de amigos e de colegas, em que se divulgam essas coisas, trata-se de mais um fenômeno de privatização da discussão pública, cuja estupidez fundamental é diretamente proporcional às paixões de ódio e ressentimento que as mensagens suscitam. Daí ideias estúpidas como "nazismo de esquerda" se espalhem nesses meios em que a inteligência e a decência são estrangeiras (decência, pois penso na leviandade intelectual de criar ou divulgar informações sem fonte ou contrárias às fontes).
Lembrando de Milton Meira do Nascimento, especialista em Rousseau, termino esta nota com uma citação de A nova Heloísa. Na carta XXIII da segunda parte do livro, temos uma discussão sobre a Ópera de Paris e dos efeitos desse espetáculo sobre o público, que tem dificuldade em separar o ator do personagem (no teatro da internet, somos ambos, e está difícil separar o que é falso do verdadeiro), pois parece que os espíritos armam-se mais contra ilusões razoáveis do que contra as que são absurdas e grosseiras: "Il semble que les esprits se roidissent contre une illusion raisonnable, et ne s'y prêtent qu'autant qu'elle est absurde et grossière.". Que tipo de político é favorecido pelo desarmamento intelectual contra o absurdo?

sábado, 16 de dezembro de 2017

"Na mala noturna para a presidência/ comprimia-se todo um país?"

Na mala noturna para a presidência
comprimia-se todo um país?
Claro que não, reveja o vídeo,
a mala parece pesada.

Quem carregava para a presidência
a mala noturna?
Sim, vós carregastes para a noite
toda a presidência
e tornastes o dia impossível
pois não há luz no interior da mala
e já não restou nada fora dela
a que se possa chamar um país.

A mala noturna da presidência
tinha a mesma cor da bandeira do país?
Não, pois as coisas mortas
não podem emular o ligeiro colorido das vivas,
no vídeo a mala andava a grande velocidade.

De quem era o couro
da mala noturna da presidência?
O perfeito material
ainda vibrava
das tentativas inúteis dos humanos
de escapar aos golpes
que lhes arrancaram pele e convicções
sobre a noite,
maior que o país,
cobre-o inteiro
agora que seus tecidos mostram-se nus,
sem epitélio algum,
depois que a presidência por eles passou.

Aberta, ela se tornaria uma nova caixa de Pandora?
Seria inútil, veja que o infortúnio já estava livre
e a carregava e recebia.

Tampouco presidência há,
mas um oco
de que agora tudo é feito.

O pó sobre a mala noturna da presidência,
é verdade que, quando ele é varrido pelo vento,
torna-se todo o território do país?
No vídeo a pressa de carregá-la
mais do que a ciclones na atmosfera
levou a irregularidades no território,
buracos onde o passo pesou mais firme
e nos quais o próprio país caiu
e não foi mais visto.

Se você fosse despachado
na mala noturna da presidência,
alguém quereria recebê-lo,
alguém ousaria abri-la
sem temer o trabalho 
de esvaziá-la e lavá-la
de ter carregado
algo não monetário,
isto é, sem higiene, sem
o caráter de ente vivo
e móvel sobre o mundo?

Tampouco sei se é noite
fora da mala e da presidência,
depois de horas de interrogatório
perde-se a noção das horas, dos dias,
da fome, da sede, dos pingos
de sangue já indiscerníveis no chão,
dos gritos, dos choques, das varas,
dos projetos legislativos e dos lanches judiciais,
perde-se a noção,
afirma-se apenas a certeza
de que continuo em meu país.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Dmitri Hvorostovsky (1962-2017), o cantor do mundo, a voz da Rússia e da Itália

Morreu hoje, dia 22 de novembro de 2017, o barítono russo, siberiano, Dmitri Hovrostovsky (1962-2017), que lutava desde junho de 2015 contra um câncer no cérebro. Sua voz era tão impactante que lembro bem da primeira vez que o ouvi: era um disco da RCA de trechos de ópera que uma tia me havia dado, com árias eu já conhecia, como "Caro nome" (na voz de Anna Moffo), mas uma que eu ignorava completamente: a ária do Príncipe Yeletsky, da ópera A Dama de Espadas, uma das que Tchaikóvski escreveu a partir de Púshkin.
Trata-se de uma das mais bonitas declarações de amor que o compositor russo escreveu, delicada e apaixonada. Para fazer justiça a essa música, é necessário um grande controle do legato e um fôlego sem falha. O barítono tinha tudo isso e um excepcional veludo no timbre que não se desfazia mesmo quando o cantor usava mais força. A última frase do personagem para sua amada (Lisa, que preferiria o tenor...), ele a cantava em um fôlego só, com um belo crescendo.
Era Hvorostovsky, ainda bem jovem, e a faixa vinha da gravação da ópera completa, regida por Seiji Ozawa. O papel lhe serviu de estreia no Metropolitan Opera House em 1995. Antes disso, ele cantou a ária na competição de canto que o tornou conhecido de um dia para o outro, "Singer of the World", em Cardiff, 1989. Por sorte, o vídeo está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ywb492BL4iM (para vê-lo em 2003, com o timbre mais escuro e o mesmo legato, sugiro esta apresentação, também ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=W8zKkvGB7Rw).
Naquela competição que o revelou, ele enfrentou, entre outros candidatos, o baixo barítono galês Bryn Terfel, que também fez (continua a fazer) uma grande carreira. Li uma entrevista de Terfel, que perdeu o primeiro lugar para Hvorostovsky, em que comentou ter notado que o russo o venceria depois de ouvi-lo em "Ombra mai fu", da ópera Serse, de Händel; era uma escolha estranha para uma competição de canto (esta peça é batida demais, toca até em igrejas, e não é das mais exigentes vocalmente), mas perfeita se o cantor tem um legato como este: https://www.youtube.com/watch?v=PoAhxAlW6QY
Nessas apresentações do jovem barítono, além do timbre lindíssimo e do seguro apoio (que lhe permitia realizar todas as expressivas nuances de crescendo e decrescendo), note-se a abertura para o agudo; ele chegou, durante os estudos de canto, a julgar que era tenor, mas isso não durou muito. Era uma voz bem diferente de Terfel, que foi para papéis mais graves e canta muito do repertório germânico. Hvorostovsky concentrou-se nos papéis de barítono lírico do repertório russo, em que ele nunca teve realmente rival, na ópera italiana do século XIX e na canção russa.
Na primeira categoria, destaca-se Eugen Oneguin, outra ópera que Tchaikóvsky escreveu a partir de Púshkin. O papel título foi escrito para barítono, e ele o cantou desde jovem. Só neste século, apesar da idade do personagem (ele termina a peça com apenas 26 anos), Hvorostovsky disse sentir-se ter chegado à idade ideal para interpretá-lo. Aqui, pode-se vê-lo na ária do fim do primeiro ato, no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, cena em que o personagem desdenha da declaração de amor feita pela jovem Tatiana, interpretada por Renée Fleming, com regência de Valery Gergiev: https://www.youtube.com/watch?v=qa_13xMhjkg
Oneguin mata, em duelo, seu melhor amigo, um poeta, por questões de honra (ele o provoca dançando com a amada do poeta em um baile), viaja para longe, retorna anos depois e descobre Tatiana casada com um nobre bem mais velho. Decide que está apaixonado por ela, marca um encontro. Ela confessa que ainda o ama, mas o rechaça neste dueto final: https://www.youtube.com/watch?v=i8mJsowhByo
Em disco, ele a gravou a ópera completa na regência de Bychkov; antes disso, escolheu os dois solos para seu primeiro disco solo, de 1990, gravado pela extinta Philips, regido por Gergiev. Para seu primeiro solo, escolheu apenas árias de óperas de Tchaikóvsky e Verdi. A gravação apontava os caminhos que o barítono seguiria, e ele aprofundou as interpretações dessas árias, quando a elas retornou. Compare-se a ária da Iolanta com a gravação completa, regida por, mais um vez, Gergiev; ou a da morte de Rodrigo com o que ele fez na gravação de Don Carlo regida por Bernard Haitink, que se destaca, em termos vocais, somente pelo barítono e pelo grande meio soprano Olga Borodina, russa como Hvorostovsky, e uma de suas companheiras de palco e de geração. Com ela, além de óperas completas, gravou "Olga & Dmitri", com repertório italiano (Rossini e Donizetti), francês (Saint-Saëns) e russo (Rimsky-Korsakov).
Em relação à segunda categoria, a ópera italiana, ele se dedicou ao bel canto nos anos 1990: Rossini, Bellini, Donizetti. Nesse momento, alguns o comparavam aos grandes barítonos italianos da "época de ouro" (início do século XX). "Bel Canto Arias" (que também recebeu o título ridículo de "Songs of love and desire"), regido por Ion Marin, testemunha a agilidade vocal e o agudo fácil (a famosíssima ária do Barbeiro de Sevilha), o legato (ária de I Puritani) e o investimento dramático de que o barítono já era capaz (na cena da ópera Lucia di Lammermoor).
Aos poucos ele foi deixando esses papéis do bel canto porque, segundo suas palavras, precisava de "mais ação", e foi direcionando sua carreira para Verdi. Giorgio Germont, personagem de La Traviata, foi um dos papéis que lhe permitiu fazer essa transição; ele o gravou com Zubin Mehta, fazendo este papel de pai para um tenor que tinha quase o dobro de sua idade, o impressionante Alfredo Kraus, e com um soprano também de outra geração, Kiri Te Kanawa (registro a diferença etária porque alguns críticos julgaram-na um problema dessa gravação; não sou da mesma opinião).
Na terceira categoria, ele gravou na primeira fase da carreira, que a Philips registrou, tanto a canção clássica russa quanto a tradicional e a popular. "Olhos negros", evidentemente, no disco homônimo, o "Kalinka", com coro, que é uma maravilha, mas também canções de Rachmaninov, Tchaikóvsky, de Sviridov (que ainda estava vivo, e escreveria para Hvorostovsky e o pianista Mikhail Arkadiev "Petersburgo, um poema vocal"). Ele gravou pela primeira vez "Canções e Danças da Morte", de Mussorgsky, nessa época, porém sua gravação posterior é bem mais interessante.

Na regravação, ele já não estaria na Philips; a gravadora, que usava estratégias para explorar a beleza física dele, especialmente para o mercado dos Estados Unidos, queria que ele gravasse mais crossover, isto é, mais música popular, e não do repertório russo. Neste século, ele foi para a Delos, o que significou uma série de projetos mais pessoais, mas também elencos menos estelares (no entanto, certo vídeo em que ele canta música brega sem camisa é de 2009).
O barítono gravou a ária e outras de Verdi, inclusive os solos de Rigoletto no "Verdi Arias", de 2002, regido por Mario Bernardi. Ele ainda estava vivo quando saiu a gravação da ópera completa, realizada em 2016: https://twitter.com/Hvorostovsky/status/929017529774886912.
No dia 17 último, divulguei uma crítica publicada no Washington Post, que fazia notar que ele tinha cancelado todas suas apresentações públicas e seu prognóstico ainda era incerto. No primeiro semestre deste ano, ele ainda foi capaz de dar concertos (algumas imagens estão no twitter dele); e ainda pôde fazer uma aparição surpresa na apresentação de gala do Metropolitan com "Cortiggiani". O câncer, porém, lhe havia tirado o equilíbrio, e ele não se sentia mais seguro para andar no palco (é possível notar isso quando ele sai do palco no Met); em um dessas últimas apresentações, um dos braços está numa tipoia, pois ele havia caído em casa.
Nessa fase, seu maestro mais constante nos estúdios foi Constantine Orbelian, que o dirigiu em sua última gravação de ópera, que saiu há poucos dias, o Rigoletto, de Verdi. Hvorostovsky gravou esse difícil papel, para o qual esperou anos, em 2016, quando já sabia estar doente.
Dessa ópera, eu o vi cantar a ária "Cortiggiani, vil razza dannata" ao vivo. Ele se apresentou algumas vezes em Buenos Aires, mas acho que a única vez que se cantou no Brasil foi em um recital em 8 de setembro de 1997 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Ele já tinha gravado vários discos e era uma estrela em ascensão. Anunciou-se que faria um programa de canções russas com o pianista Mikhail Arkadiev, com quem já tinha feito algumas gravações.
No entanto, o programa apresentado foi bem diferente: era praticamente todo composto de árias (a maioria, de óperas), como se vê ao lado. Em um longo arco temporal, ele foi do barroco ao verismo, passando pelo classicismo e pelo romantismo. O programa escreve incorretamente o nome de Bellini, de quem ele cantava uma ária de I Puritani. Como faltam outras informações, lembro que as árias de Händel sem indicação de origem vieram da Brockes Passion e de Orlando; o Gounod pertence ao Faust, a de Leoncavallo, a I Pagliacci, e as de Verdi, a Un ballo in maschera e Don Carlo.

O teatro estava praticamente vazio. Comprei ingresso para a galeria, mas o pessoal do Teatro pediu para que o público presente descesse à plateia, onde não havia praticamente ninguém. Assisti a tudo bem perto, talvez na quarta fila, não lembro mais.
A primeira parte do programa, exceto Mozart, e a foto usada provinham do disco que gravou com Neville Marriner e a Academy of St Martin in the Fields, "Arie Antiche". Ele não era um cantor do barroco e ouve-se, em algumas faixas, certa incongruência entre a interpretação do cantor, praticamente romântica, e o acompanhamento sóbrio de Marriner.
No disco como no palco, sua capacidade de sustentar frases longas causava admiração, assim como espantava sua maneira de respirar, que era bem audível. Tenho uma queda pela ária "O del mio dolce ardor"; o original é cantado geralmente por mezzos, mas não desdenho ouvi-la com um barítono como este, e a facilidade da subida ao agudo em "le più liete speranze" impressionou. Na famosa ária do Orfeo de Gluck, a interpretação tão emocional e com vibrato de Hvorostovsky talvez pudesse ser chamada de antiquada, mas era sincera e vocalmente esplêndida.
Das árias de Mozart, lembro da facilidade com que cantou a conclusão do "Vedrò mentr'io sospiro", que pode pegar o cantor no contrapé. Na segunda parte do programa, ele estava completamente em seu elemento; quase pulei para trás com o sol agudo que ele, seguindo certa tradição, emitiu perto do fim do Prólogo da ópera Os Palhaços.
Nunca tinha ouvido uma voz tão impressionante. O final do programa confirmou que aquele canto estava sempre ligado a um propósito dramático, especialmente na ária da morte de Rodrigo em Don Carlo. O marquês leva um tiro, em execução extrajudicial determinada pelo rei e exigida pelo grande inquisidor, durante visita ao príncipe, encarcerado por ordem real. Pouco tempo depois do concerto, ele gravaria a ópera completa sob a regência de Haitink.
Neste século, ele manteve seu repertório principalmente em duas línguas, a italiana e a russa. Gravou canções napolitanas para a Delos, explorou os papéis mais pesados de Verdi e chegou até a Rigoletto, com uma voz que era essencialmente lírica. No campo russo, fez de tudo: ópera, canção clássica e popular, música religiosa (ele já tinha gravado para a Philips o belo "Credo"); em 2004, foi o primeiro cantor lírico a fazer um concerto na Praça Vermelha de Moscou, com músicas russas da II Guerra Mundial, que ele gravou para a Delos ("Wait for me"). Era um herói nacional. Lamento não saber russo e não poder ler as matérias de seu país. Este obituário da CBC News pareceu-me bom, mas a seção do The New York Times inclui vídeos de suas apresentações, tanto em ópera quanto em recital.
Eu o vi uma segunda vez ao vivo, em 2015, pouco tempo antes de ele descobrir ou revelar para o público que estava doente. Era a ópera Un ballo in maschera, de Verdi, no Metropolitan Opera House, com a regência do grande James Levine. Nenhum dos papéis principais era cantado por um italiano, e não se sentia falta disso. O tenor polonês Piotr Beczala estava audivelmente doente e seria substituído na matinê transmitida pelo rádio pelo tenor brasileiro Ricardo Tamura); o elenco incluía as americanas Sondra Radvanosky, Dolora Zajick (desafiando poderosamente os anos, ela é sexagenária) e Heidi Stober.
Hvorostovsky, o russo, estava muito bem, e na ária "Eri tu", ele realizava o contraste entre o início, em que ele está dominado pelo desejo de vingança, e a nostalgia de "dolcezze perdute", até a exclamação "non siede che l'odio/ E la morte nel vedovo cor!". Sua vitoriosa carreira confirmou o predomínio dos cantores eslavos no campo da ópera italiana; ele e Borodina, claro, mas também cantores que vieram depois, como Beczala, Anna Netrebko e Ildar Abdrazakov.
Não é comum cantores encontrarem êxito artístico ao mesmo tempo na ópera e na canção, tendo em vista as diferentes exigências vocais e de temperamento (a canção, em geral, exige muito mais intimismo), mas Hvorostovsky foi um desses exemplos, tanto em razão da técnica respiratória quando da excelente articulação: mesmo que não se conheça o idioma do texto que ele canta, as palavras são perfeitamente distinguíveis, algo não muito comum entre os cantores líricos, e tão necessário para a canção. Neste campo, os discos de Tchaikóvsky (algumas das canções do cd duplo de 2009 "Tchaikovsky Romances" podem ser vistas neste vídeo), Rachamaninov ("Rachmaninov Romances", gravado em 2011, incluiu esta peça) e de canções a partir de poemas de Púshkin, de 2010, gravados com o pianista Ivari Ilja para a Delos são preciosos.
Em 2011, gravou com o excelente Ivari Ilja um disco que recebeu em inglês o título"In this moonlit night" com canções de Tchaikóvsky, Taneyev e o ciclo "Canções e Danças de Morte" de Mussorgsky. Desta vez, não na versão orquestral, mas apenas com o piano, seguindo o original do compositor.
Os poemas foram escritos por Arseny Arkadyevich Golenischchev-Kutuzov. A famosa canção final descreve um campo de batalha: finda a luta, a Morte, o "Marechal de campo" (título da canção) aparece para declarar-se vitoriosa, decretar que os soldados agora estão reconciliados e contar suas tropas, formadas por todos os corpos: pede para que se levantem, mas depois ela irá enterrá-los: "Ano após ano passará/ E até a memória de vocês se extinguirá".
Trata-se de versos que Hvorostovsky cantou com toda eloquência necessária para encarnar o poderoso personagem, mas que nunca se dirigiriam a este cantor, nem mesmo hoje.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXIX: O combate policial às publicações anarquistas, ontem e hoje

Livros anarquistas voltaram a ser objeto de apreensão policial e de prova criminal. Em 2013, eles já tinham sido enquadrados na categoria de "material perigoso". Naquele ano, tal literatura foi apreendida na Federação Anarquista Gaúcha, em razão dos protestos e manifestações que ocorriam no país, durante a gestão do governador petista Tarso Genro.
Lembremos que a Polícia Civil fluminense chegou a considerar, em 2014, Bakunin suspeito de participar de atos violentos em protestos.
Agora, que a polícia gaúcha chega a resultados semelhantes por meio de livros e de "coquetéis molotov" pacifistas feitos de garrafas pet, faço mais uma nota sobre apreensão de publicações durante a ditadura militar. Como há milhares de documentos com esse objeto, escolho este por estar mais próximo de nosso tempo, por vir do último governo daquela época.

O documento, uma informação confidencial do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP), integra o acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Três pessoas haviam sido presas em 19 de julho de 1980 perto do Parque do Anhembi, no Município de São Paulo, com "publicações suspeitas".
Uma delas era o célebre O direito à preguiça, de Paul Lafargue, que, diferentemente da informação dada pela inteligência policial, era genro de Marx, e não de Lênin... Trata-se de publicação marxista.
Na mesma informação, a prisão, em Jundiaí pela posse de periódico anarquista, O inimigo do rei. O exemplar era o número 11 (ano 4), com referência geográfica a "Salvador, Rio, São Paulo e Porto Alegre".
Por sinal, nesse número, de maio a agosto de 1980, foi publicada uma matéria com Zé Celso.
O jornal era publicado pela Editora e Livraria A, de Salvador, que também havia lançado A Plebe, apreendida em Mogi das Cruzes.
No início do século passado, foi fundado por Fábio Lopes dos Santos Luz e Edgard Leuenroth em 1917 o conhecido periódico anarquista com esse título. Foi publicado até 1951.

Não tenho cópia da publicação apreendida, porém o auto de exibição e apreensão feito pelo DEOPS/SP informa que se trata do número 15 da "nova fase" de A Plebe, que havia voltado por meio da editora de Salvador.
Estavam os agentes da repressão política preocupados com as explosões ideológicas que esse material poderia provocar? Ou seja, no léxico autoritário da doutrina de segurança nacional, reprimiam a "guerra psicológica adversa"? O irônico é que, nessa mesma época, bombas explodiam por todo o país. Não eram, no entanto, os anarquistas que as jogavam. Tampouco eram reprimidas.
O governo de Figueiredo veria o Riocentro, o atentado à OAB-RJ, ataques a defensores de direitos humanos (como Dalmo Dallari, que felizmente sobreviveu) e, entre outros atos terroristas, os inúmeros ataques a bancas de jornais que vendiam veículos da imprensa de esquerda.

Por algum motivo que me escapa, nenhum desses diversos casos foi solucionado pela polícia. A supressão das liberdades de imprensa e de expressão, que não encontrava mais o instrumento normativo dos atos institucionais, continuava a ser realizada por meio do terror.
Como no Riocentro, via-se que não se podia fazer diferença, ao menos durante a ditadura, entre grupos paramilitares e as Forças Armadas, entre ordem e terror, entre Estado e organização criminosa.
Os anarquistas, evidentemente, dirão que tais diferenças não existem, e que o Estado é sempre criminoso.
Ao lado, em outro documento de 1980 do DEOPS/SP que pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, temos o nome de alguns dos jornais que eram vítimas dessa ação: Versus, O Repórter, Movimento, Hora do Povo, O Trabalho, Voz da Unidade. Jornais foram bombardeados não só nos seus pontos de compra, mas também em suas sedes durante o governo Figueiredo, como A Hora do Povo.
Esses jornais não eram anarquistas, porém os mecanismos contra estes serviam contra toda a esquerda, que deveria relembrar sempre tais acontecimentos.
Neste momento, em 2017, que juristas defendem sub-repticiamente em rede nacional o afastamento do princípio da tipicidade penal para que associações anarquistas possam ser enquadradas na lei antiterrorismo (o anarquismo, bem ao contrário do nazismo e do fascismo, não é movido "razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião", previstas no artigo 2o. da Lei), em afronta direta às garantias fundamentais internacionais e constitucionais, temos que continuar a estar atentos às liberdades políticas, ameaçadas especialmente em regimes não democráticos, como voltou a ser o nosso.