Não comentarei o processo do tríplex, pois não o li, não sou penalista e, portanto, não me sentiria à vontade de disparar "brevíssimas", ou mais longas, sobre caso tão complicado. Apenas gostaria, na série de notas que venho fazendo sobre direito à verdade, memória e justiça de transição, de lembrar da época das grandes greves do ABC, durante o governo do general Figueiredo, em razão do processo em que Lula e outras lideranças sindicais foram condenados pela Justiça Militar.
A bibliografia sobre aquelas greves já é grande. A questão do trabalho e o controle dos sindicatos era vital para a ditadura já na preparação para o golpe de 1964, e a propaganda contra a suposta "república sindicalista" que o presidente João Goulart estaria a preparar.
Anos depois, o movimento sindical renasceria. Em 1980, a campanha salarial começava forte no ABC; no trecho do relatório de espionagem feito para o DOPS/SP sobre ato do sindicato com Lula e dois outros sindicalistas, Juraci Batista Magalhães e Djalma de Souza Bom, diante da Mercedes Benz. A "fonte" dessa empresa informou a polícia com os resumos dos discursos, que começaram às 7 da manhã e terminaram às 7:49h. Destaquei o resumo que fizeram da fala de Lula, que cobrava dos patrões o respeito como interlocutor (Mario Garnero não queria receber os sindicalistas) e reivindicações de caráter trabalhista.
No entanto, a condenação acabou sendo anulada pelo Superior Tribunal Militar em 16 de abril de 1982, que remeteu o caso, já à beira da prescrição (que ocorreu), à Justiça Federal.
Houve mobilização popular na época, com as costumeiras detenções dos que distribuíam ou colavam panfletos em favor dos sindicalistas. Ao lado, pode-se verificar uma detenção ocorrida na Barra Funda, no Município de São Paulo. Um dos cartazes dizia "Os trabalhadores exigem: não condenação de 'Lula' e dos sindicalistas do ABC".
A lei federal n. 6620/1978, a lei de segurança nacional então vigente, previa, no art. 36, inciso V, o crime de incitar à paralisação de serviços públicos ou atividades essenciais. Essas atividades eram definidas pelo decreto-lei n. 1632/1978; incluíam farmácias e drogarias, mas não a indústria metalúrgica. O artigo 37 previa o crime de cessação de atividades por servidores públicos.
Existiam no ordenamento jurídico outras proibições de greve ao servidor público, como a da lei n. 10261/1968, mas elas não se aplicavam, evidentemente, aos metalúrgicos do ABC.
Lula, porém, foi preso por 31 dias em 1980 (ele já havia sido preso no ano anterior), com outras lideranças sindicais. Ele conta a história no depoimento que gravou para a Comissão Nacional da Verdade: https://www.youtube.com/watch?v=Cvcv3RP1qCc
No depoimento, o presidente da república narra que o delegado Romeu Tuma permitiu que ele visitasse a mãe, que estava a morrer. Com efeito, ela faleceu em maio de 1980. Lula compareceu escoltado ao enterro no cemitério de Vila Pauliceia, em São Bernardo do Campo.
Os policiais acabaram sendo hostilizados pela multidão que compareceu ao cemitério e gritava "Soltem o Lula", "Queremos o Lula", "Lula, estamos com você". O automóvel "era alvo de socos e pontapés", mas a escolta conseguiu bater em retirada.
A decisão de 19 de novembro de 1981, que condenou os sindicalistas, como não tinha fundamento, usava como subterfúgio o artigo 36, inciso II da Lei de segurança nacional: "Art. 36 - Incitar: [...] II - à desobediência coletiva às leis". Os condenados tiveram respeitado seu direito de apelar em liberdade, previsto no Código de Processo Penal Militar.
Por que, no entanto, o CPPM deveria se aplicar aos sindicalistas? Ou a LSN?
A vagueza daquela previsão legal, "desobediência coletiva às leis", feria, evidentemente, os parâmetros da tipicidade penal de um direito democrático, e ela partia de uma indeterminação, claramente autoritária, do que significava a segurança nacional.
A hipertrofia da noção indeterminada de segurança nacional, conveniente e essencial à arbitrariedade e ao regime autoritário, poderia fazer com que objetos desvinculados a questões de defesa se tornassem, graças à extravagante hermenêutica jurídica militar-policial, objeto dos órgãos de repressão política: como já escrevi, foram exemplos da sanha securitária as safras de amendoim e batatinhas e a obra de Descartes.
Exigir melhores salários e condições de trabalho poderia corresponder a uma violação da segurança nacional? A interpretação ultraextensiva do tipo penal, que levou à condenação de 3 anos e 6 meses de Lula, era heterodoxa demais mesmo para os padrões da época: a Justiça Militar não tinha competência alguma nesse caso de greve. A decisão do STM de anular a condenação correspondia a uma simples aplicação do direito positivo da ditadura militar, e um exemplo das virtudes do formalismo jurídico... Quando ele é respeitado, o arbítrio, mesmo em um regime autoritário, diminui.
Antes disso, Lula, já alvo do processo, queria viajar para a Alemanha, a França, Reino Unido, Suíça, Holanda, Itália e Espanha, para falar sobre "sindicalismo brasileiro".
Na verdade, ele queria angariar apoio internacional a sua luta política, e logrou sucesso nisso.
Em 7 de janeiro de 1981, o juiz Nelson da Silva Machado Guimarães, da auditoria militar, autorizou-o a viajar. Ao lado, está o despacho do delegado Romeu Tuma, diretor do DOPS/SP, determinando que a Divisão de Estrangeiros e Passaportes fosse cientificada daquela decisão.
A Folha de S.Paulo, em curioso editorial de 17 de fevereiro de 1981, "Dois equívocos", criticou o ato então realizado em São Bernardo do Campo contra a lei de segurança nacional e o processo contra os sindicalistas.
Lula havia angariado o apoio de "poderosas organizações sindicais europeias e norte-americanas", mas o "êxito obtido fora do País não parece ter encontrado a mesma repercussão no Brasil". O ato teria recebido o público de três mil pessoas.
Teria ocorrido, segundo o editorialista, uma ilusão da "mobilização sindical". A segunda ilusão, segundo o periódico, correspondia a "crer que a unidade obtida pela liderança de Luís Inácio da Silva [sic] em torno de reivindicações sindicais pudesse facilmente manter-se em torno de opções partidárias e ideológicas".
O jornal insinuava, dessa forma, o eventual fracasso do então recentíssimo Partido dos Trabalhadores e criticava o que chamou de "concepção simplificada do processo político", com as "dicotomias maniqueístas do tipo revolução e contra-revolução, povo e ditadura". A previsão estava errada, sabemos hoje, e o texto nos faz compreender por que, muitos anos mais tarde, o "complexo" termo ditabranda seria empregado em editorial do mesmo periódico, fugindo daquela dicotomia...
Lula foi candidato do PT ao governo do Estado de São Paulo em 1982. Franco Montoro, do PMDB, ganhou a eleição, o que levou à extinção do DOPS e à transferência de seu monumental arquivo (de onde tirei as imagens dos documentos nesta nota, hoje sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo) à polícia federal, para impedir que ele ficasse nas mãos da oposição à ditadura.
Para que Lula não ficasse inelegível para as eleições de 1982, era necessário que o STM não confirmasse a condenação, e foi o que ocorreu naquela época.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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