O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 18 de março de 2018

Marielle Franco e a memória das execuções em Cecília Meireles e Ricardo Aleixo

Notei que a execução da vereadora do Município do Rio de Janeiro, Marielle Franco, do Psol, no dia 14 de março de 2018, suscitou para vários a lembrança desta poeta que é sempre necessária, Cecília Meireles. Vi diversas pessoas que lembraram de passagens do Romanceiro da Inconfidência sobre execuções políticas (enquanto a direita mais raivosa fingia serenidade ao pretender que o assassinato da militante e membro do Legislativo nada tinha de político).
Muitos lembravam destes versos:
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta fica vivo:
quem é bom mandam matar.
Vi alguns citando-os no twitter, porém o mesmo ocorreu no facebook. Esses que homenageavam Marielle Franco entre os justos assassinados escolhiam um trecho do "Romance V ou Da Destruição de Ouro Podre", do Romanceiro da Inconfidência, de 1953. Embora no centro do livro esteja a execução política de Tiradentes, neste poema, além da destruição pelo fogo do arraial de Ouro Podre ordenada por Dom Pedro de Almeida, temos a execução, com esquartejamento, de Felipe dos Santos. Trata-se de episódio anterior à Inconfidência, que a autora, com seu senso histórico, escolheu contar no início do livro.
Cecília Meireles escrevia, em geral, a partir do prisma da memória, e muito do que fez tinha como efeito honrar os mortos: os seus e os de todos, como os Inconfidentes e Gandhi. Dessa forma, ela se aproximava da matéria social na poesia.
Muitos vezes a memória escapa, e recusa-se a entregar uma imagem definida. A musicista Cecília Meireles chegou a criar quase canções sem palavras usando apenas, paradoxalmente, palavras, empregando ritmos e formas audivelmente encantatórias que mais sugerem do que revelam, e nisso encontram sua maior eloquência. Um poema que me toca desde a infância é "Ária", do Retrato natural, livro de 1949. Ela tece vários motivos a partir de "Na noite profunda" e "Na profunda noite".
Quem nos vai recordar
na noite profunda?
Pensamento tão gasto,
amor sem milagre
na profunda noite.
Os amigos se extinguem.
Nessa noite de solidão imensa, ela finalmente pede: "Na noite profunda,/ deixa para sempre,/ deixa agonizar/ solitário meu rosto,/ na noite profunda,/ na profunda noite/ que a memória levar."
A memória se vai com seu rosto, sua identidade, nessa noite profunda em que os amigos foram perdidos; como a memória é uma construção coletiva, a extinção dos amigos equivale à agonia do rosto, que será levado. O ritmo destes versos, de cinco e de seis sílabas, e a rima deixada para o fim (o significativo duo agonizar/levar) fazem-nos de fato pensar em música (o título é muito apropriado), que termina de forma quieta.
Para tratar de uma chacina cuja memória querem apagar, Ricardo Aleixo, curiosamente encontrou uma forma bem parecida no poema "Na noite calunga do bairro Cabula" de Impossível como nunca ter tido um rosto (Belo Horizonte, 2015). Perguntei ao poeta, que me disse que não conhecia o poema de Cecília. O ouvido dele chegou a um resultado semelhante ao dela, o que é significativo.
Morri quantas vezes
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
Além das variações em torno da noite, o número de sílabas dos versos é parecido. Diferentemente de "Ária", a memória aqui nomeia um acontecimento específico: "morri quantas vezes// na noite terrível,/ na noite calunga// do bairro Cabula?"
Trata-se da chacina que vitimou 12 pessoas em 2015 naquele bairro de Salvador, e que recebeu este comentário do governador Rui Costa, do PT, nesta absurda comparação: "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol". A justiça baiana absolveu em tempo recorde os policiais militares acusados, em julho daquele mesmo ano. O Ministério Público Federal pediu a federalização do caso, alegando que a justiça baiana não apresenta condições de julgá-lo, mas até hoje o STJ não decidiu.
As vítimas eram negras, e a identidade étnica parece-me ser posta por Aleixo desde a qualificação "calunga" dada à noite. Por essa razão, o poema tenta fazer uma virada de esperança, revertendo o significado da cor da noite: "[...] e meu nome/ é aquele que não morre// sem fazer da noite/ não mais a silente// parceira da morte/ mas a mãe que pare// filhos cor da noite/ e zela por eles", o que é muito bom, e exemplifica o esforço militante de ressignificação da imagens ligadas ao preto. O livro parte da premissa de que é "impossível" "nunca ter tido um rosto", e a face negra, sua identidade, não será dissolvida, em gesto oposto ao do fim do poema de Cecília Meireles, onde vemos um eu em dissolução; ele afirma que "Sou muitos", "[...] sou tantos// que um dia eu faço/ a vida viver.
No final, há uma rima entre "ser" e "viver", o que poderia evocar de novo "Ária"; no entanto, ele se diferencia também por abandonar as variações em torno da noite.
Creio que esse gesto que aponta para insurgência, fundada na identidade negra, deveria mesmo abandonar aquele motivo inicial. Contudo, sempre achei esse final menos convincente, por não apresentar a complexidade do drama anterior, ou não resolvê-la formalmente.
No entanto... No último evento de que Marielle Franco participou, na Casa das Pretas, ela fez questão de lembrar do caráter coletivo de sua luta e do mandato ("é a gente que está morrendo, é nosso povo que está morrendo, e então a gente tem que lidar para avançar"), e por isso evocou mulheres negras como Angela Davis, Lélia Gonzalez, e aquelas que a precederam na Câmara: dez anos antes dela, Jurema Batista e, dez anos antes dessa antiga vereadora, Benedita da Silva.
Comentou, nesse ponto: "a gente não pode esperar mais dez anos, ou achar que estarei ali dez anos". Infelizmente, tinha razão não porque seria eleita para outros cargos, mas porque morreria naquela mesma noite.
Sua morte multiplicou a força daquela ação pautada pelo coletivo, e ela tornou-se tantos, como no poema de Aleixo: seu assassinato gerou mais impacto na internet do que o impeachment: "3,573 milhões de tuítes" que, "Nas 42 horas seguintes, mobilizaram 400 mil usuários do Twitter em 54 países e 34 idiomas. Mas os três nós que amarraram essa rede global têm muito em comum: são mulheres, cariocas, periféricas e negras." (leiam a matéria "Marielle bate impeachment no twitter", de José Roberto de Toledo e Kellen Moraes para a Piauí). Além da própria Marielle, as duas mulheres cujos tweets ficaram no centro da repercussão foram a jovem Milena Martins e a cantora Elza Soares.
Enquanto essas vozes de mulheres negras repercutiam mundialmente (note-se que talvez o melhor perfil da vereadora negra, bissexual e periférica tenha sido o de Fernanda Odilla para a BBC, enquanto certo jornal do Rio minimizava sem sucesso a morte), o que fazia a direita? Calava-se fugindo de seus deveres públicos, ou calava-se porque sua opinião é conhecida demais, tentava calar via Itamaraty a repercussão mundial do crime, e também perdia a gramática e a lógica, ou partia para a mais abjeta difamação, tentando assassinar a memória de Marielle.
Nem uma vaga lembrança da poesia poderia passar por essa gente.

P.S.: Contou Mariana Gomes Caetano que, no mesmo dia do crime, a vereadora havia proposto um projeto de lei instituindo a Medalha Edson Luís, estudante assassinado pela ditadura no Rio de Janeiro em março de 1968 (outra execução), cinquenta anos antes da morte de Marielle Franco. Espero que o partido leve o projeto adiante, e crie uma homenagem para ela também.

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