O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Desarquivando o Brasil CLI: Um dossiê sobre justiça de transição e ditadura em tempos de exílio político

Saiu no fim de 2018 o número da revista InSURgência com o dossiê sobre Direito, Memória e Justiça de Transição, que organizei com Diogo Justino em nome do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais [se a ligação estiver fora do ar, pode-se ler a enquete aqui:  https://t.co/LXWvwYjlfd]:


O dossiê com os artigos científicos sobre o tema contou com pesquisadores da Argentina, Brasil, Colômbia e Espanha: Aitor Bolaños de Miguel, Reyes Mate, José Antonio Zamora, Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima, Luana Rosário, Amanda Salles da Silva, Amanda Cataldo de Souza Tilio dos Santos, Walkyria Chagas da Silva Santos, Camila Gomes de Lima, Janaína de Almeida Teles, Julián Axat, Angela Navia López e Sebastian Alejandro Garcia.
As resenhas, abrigadas na seção "Caderno de retorno", trataram de obras recentes sobre justiça de transição: "Entre os restos da ditadura e da democracia, de Edson Teles", por Renan Quinalha; "Como será o passado? História, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade, de Caroline Silveira Bauer", por Lucas Pedretti.
A InSURgência compõe-se também de uma seção de documentos. Foram escolhidos alguns relativos aos crimes da ditadura, mas também aos crimes da democracia, com a manifestação do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça, da Campanha Ocupa Dops e do Grupo de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça contra a "intervenção civil-militar decretada na segurança pública do Rio de Janeiro pelo governo golpista e ilegítimo", de 20 de fevereiro de 2018. De lá para cá, a situação piorou: o governo golpista não só chegou ao fim do mandato como se prolongou em setores do governo federal e do governo estadual de São Paulo. A intervenção serviu de palco para mais violências e para o crime político do assassinato de Marielle Franco, além de ter mantido o poder das milícias do Rio, mais poderosas do que nunca depois da temporada de intervenção.
Em 2018, a Constituição de 1988 comemorou tristemente 30 anos com a eleição de uma chapa que prometeu não a cumprir em vários pontos importantes; por isso, não poderia faltar uma proposta para a Constituinte: o "Projeto contra a tortura e a repressão política para a Assembleia Nacional Constituinte" foi elaborado em 1987 pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Não foi aprovado, infelizmente. Hoje, depois de a apologia aos crimes contra a humanidades ter sido premiada com o governo federal e outros cargos políticos, ele seria considerado subversivo. Esse documento, que não estava mais disponível, foi cedido por Crimeia Schmidt de Almeida.
Também da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, temos o "Comunicado ao Grupo de Trabalho de Perus (GTP) e ao CAAF", com o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ e pesquisadores e militantes, de 17 de março de 2018, escrito por conta da identificação de um dos desaparecidos políticos que havia sido ocultado na Vala de Perus, Dimas Antônio Casemiro, e da falta de estrutura que estavam a sofrer as equipes de antropologia forense nesse trabalho de identificação. A situação possivelmente piorará, com a eleição para o governo federal de alguém que comete a indignidade de comparar familiares de desaparecidos (um problema que se mede em milhares todos os anos ainda hoje) com cachorros.
Da mesma Comissão e de diversas entidades, pesquisadores, militantes (sou um dos signatários, por sinal), do Brasil e do exterior, o "Manifesto onde estão os desaparecidos políticos? Estado de exceção ontem e hoje", lido em 31 de março de 2017 em ato realizado na faculdade de Direito da USP. O professor Gilberto Bercovici conseguiu o salão nobre para o ato, que cobrou esta dívida do Estado brasileiro. Abaixo, uma foto que fiz na ocasião: o público ergueu as fotos de mortos e desaparecidos políticos.


Também publicado pela primeira vez foi este "Ofício da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” à Comissão Nacional da Verdade sobre os desaparecidos políticos", de 2014, assinado pelo presidente da Comissão, o deputado Adriano Diogo. Ele estava, bem como Amelinha Teles, na organização do ato do Manifesto lido na USP e na preparação do Comunicado antes citado. A Comissão Nacional da Verdade ameaçava deixar de fora, no relatório final que publicaria em dezembro daquele mesmo ano, desaparecidos políticos cujo estatuto já havia sido reconhecido. Foi um momento de tensão entre a Comissão Nacional e os movimentos e militantes que atuavam no campo da justiça de transição.
A Insurgência possui uma seção para textos literários relativos ao tema do dossiê, "Poéticas políticas". Os autores que atenderam ao chamado foram Fernanda Telha Ferreira de Castro, Priscila Figueiredo, Guilherme Gontijo Flores, Armison Rodrigues Pereira, Veronica Stigger e Micheliny Verunschk.
As  seções "Em defesa da pesquisa" e "Temas geradores" publicaram artigos e relatos de temas variados, e não foram editadas por mim e por Justino.
A revista conta com uma seção de entrevistas. Quero agradecer aos pesquisadores que responderam à enquete que organizei: "Direito, memória e justiça de transição: enquete com pesquisadores das comissões da verdade brasileiras". Nomeio-os aqui, separando-os por Comissão (alguns deles trabalharam em mais de uma, indico aquela sobre que responderam):

  • Comissão Nacional da Verdade (2012-2014): James Green, Orlando Calheiros, Pedro Benetti, Rafael Pacheco Marinho.
  • Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (2012-2015): Maria Amélia de Almeida Teles, Maria Carolina Bissoto, Renan Quinalha.
  • Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (comissão estadual de Pernambuco; 2012-2016): Joelma Gusmão.
  • Comissão Camponesa da Verdade (2012-2014): Eduardo Fernandes de Araújo, Sérgio Sauer,  Leonilde Servolo Medeiros, Regina Coelly Fernandes Saraiva.
  • Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2012-2015): José Willington Germano.
  • Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba (2013-2017): Dmitri Bichara Sobreira, Yann Gomes dos Santos.
  • Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban (2013-2016): Samara Feitosa.
  • Comissão da Verdade do Rio (2013-2015): Lorena Lucas Regattieri, Lucas Pedretti Lima.
  • Comissão da Verdade em Minas Gerais (2013-2017): Fernanda Nalon Sanglard, Marina Camisasca, Thelma Yanagisawa Shimomura.
  • Comissão da Verdade da UFES (2013-2016): Ayala Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine.
  • Grupo de Trabalho Juscelino Kubitschek - GT-JK (2014): Marina Ruzzi.
  • Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (2014): Fernando Perlatto.
  • Comissão da Verdade sobre a Escravidão no Distrito Federal e no Entorno (2016-2017): Júlia Conceição Berto.

Eu mesmo trabalhei para três comissões diferentes, sempre como pesquisador. Quando me apresentam, seja em meio jornalístico ou em acadêmico, as pessoas tendem a confundir-se e acham que fui "membro" de alguma delas. Nada disso. Em regra, aconteceu nas comissões uma divisão de trabalho bem clara: havia os membros das comissões, que eram indicados politicamente e que respondiam nessa condição pelas atividades; e havia os pesquisadores e assessores, que eram aqueles que faziam funcionar administrativamente essas organizações, órgãos ou entidades, e que realizavam as pesquisas documentais, de campo, as entrevistas, tomadas de depoimento.
Essa confusão habitual, uma entre tantas deste processo de construção social da justiça de transição no Brasil, inspirou-me a ideia da enquete. Em algumas comissões, podiam-se achar membros que também eram pesquisadores. Não era a regra, no entanto; houve até comissões sem pesquisadores, bem como aquelas em que alguns ou muitos membros, de tão ausentes, nem mesmo participavam dos atos públicos.
De qualquer forma, como a opinião dos membros dessas comissões foi documentada pela imprensa, quis ouvir esse lado que ficou na sombra, que é o dos trabalhadores da pesquisa. Mandei as questões para mais de cem pessoas, responderam-me vinte e cinco, de 13 comissões diferentes.
Perguntei sobre a principal dificuldade para a elaboração do relatório final e sobre o cumprimento das recomendações. Pois, se as comissões na pesquisa tiveram um olhar para o passado, elas também, no tocante à punição dos crimes, à reparação dos danos e à não repetição das graves violações de direitos humanos, bem como às reformas institucionais necessárias, fizeram recomendações para o futuro da sociedade brasileira.
É interessante ler as respostas pensando em como o Brasil optou pelo passado em 2018. O presidente eleito é arcaico até mesmo nas referências retóricas que faz em suas modestas falas, como a referência a área destinada a crimes contra a humanidade durante a ditadura militar (a "Ponta da Praia"), que se tornam o projeto mais discernível de um governo que começa, no primeiro mês, com um exilado político. Ele é Jean Wyllys, do PSOL-RJ, deputado federal que reagiu à inédita violência de Bolsonaro ter dedicado o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff ao único torturador da ditadura que foi assim declarado pela Justiça brasileira.
Este episódio do exílio, bem como aquele de apologia à tortura envergonham o Brasil e ratificam a importância do tema da memória e da justiça de transição, tristemente atual e irresolvido, tanto para a pesquisa teórica quanto para a ação política.

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