O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 23 de abril de 2019

Maria Célia Paoli sobre o que levou a Bolsonaro: autoritarismo da técnica, terror e armas contra a política

Na pós-graduação, fui aluno da socióloga Maria Célia Paoli (pronuncia-se "Páuli", pois o nome é italiano), que morreu em dia 21 de abril de 2019. O curso que fiz com ela, concentrado em Hannah Arendt, Jacques Rancière e Jürgen Habermas, foi muito importante para mim, e ela foi uma das pessoas a quem dediquei meu primeiro livro de ensaio.
A ANPOCS escreveu na segunda-feira mensagem sobre a morte da pesquisadora: https://twitter.com/ANPOCS/status/1120351857682067456
Muitas pessoas assistiram a seus cursos e/ou forma por ela orientadas. O currículo de Maria Célia Paoli, evidentemente, englobaria dezenas de vezes o do atual ministro da educação.
Vou apenas fazer uma singela nota pessoal, de ex-aluno. Poderia contar da primeira aula, quando ela fez uma indireta a certo divulgador de um dos autores do curso e só eu entendi, pois eu era o único aluno que vinha do Direito e a tal divulgação não era lida fora das fronteiras do ensino jurídico; lembrar das histórias que me contou enquanto me dava carona até o metrô; no entanto, o melhor é lembrar da obra.
Imagino que muitos sociólogos tenham-no feito ou o estejam fazendo em sua memória. Vou apenas lembrar de artigo publicado em 2007, "O mundo do indistinto: sobre gestão, violência e política", no livro A era da indeterminação, publicado pela Boitempo e organizado por Francisco de Oliveira e Cibele Saliba.
Neste artigo, a denúncia, com Rancière ao fundo, da gestão tomando o lugar da política, é vinculada por Paoli ao "horror à realidade" de que Sérgio Buarque de Holanda falava em Raízes do Brasil. Ela escreve: "Evitar a emergência da realidade política do país pela desqualificação do conflito e pela valorização da ciência como técnica eficaz e autoritária parece ser algo, portanto, mais antigo e recorrente no Brasil do que imaginamos".
Em alguma medida, temos essa mesma desqualificação do conflito e a invocação da técnica pelo governo de J. Bolsonaro. Lembremos que o slogan de estar "fora da política" elegeu não só este senhor com três décadas de carreira na política institucional, mas uma série de nomes que já estão a causar estragos por todo o país, e ainda colar-se ao papo furado de serem gestores e, portanto, politicamente neutros - o que seria "ideológico" é a esquerda, por trazer para o campo do debate político os projetos governamentais. A alegação do caráter técnico desse projetos e programas é usada para impedir o debate desses projetos e, por isso, tem um caráter autoritário.
Lembremos ainda que se trata de péssimos gestores e técnicos, mesmo se os cobramos dentro de seus próprios padrões, como Vélez, que não aguentou muito tempo no cargo, Moro, cujo pacote antidireitos chega ao ponto de homenagear organizações criminosas (afora as inconstitucionalidades, em momento de técnica legislativa abaixo do zero, Moro quer inserir no direito brasileiro os nomes de "Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos" mencionando-os na lei nº 12.850/2013, que define organizações criminosas.; as leis que tipificam crimes não dão o nome de criminosos, apenas preveem abstratamente a ação...), e Paulo Guedes, que decidiu ilegalmente esconder, contra a Lei de Acesso à Informação, os "estudos" do projeto de reforma da previdência. A boa gestão não é transparente?...
O resto da equipe, como a Ministra do agrotóxico e o Ministro condenado por improbidade administrativa por fraudar mapas ambientais, para não falar da Ministra dos direitos humanos, que, entre outras medidas, tem paralisado a Funai, não precisa ser mencionado.
Essa ideologia da gestão, com sua redução da ciência a uma "técnica eficaz e autoritária", teria mesmo que produzir esse resultados farsescos e nefastos, bem como o desmantelo da pesquisa no país, próxima da paralisação por sufocamento das agências federais. Paes de Barros, nomeado pelo governo para intervir no IBGE, nas suas alegações contra o Censo, que o governo quer reduzir quebrando as séries de dados (vejam o caso aqui), mostra bem que a questão desta administração não é só a de devastar a máquina estatal, mas também dificultar ao máximo que o país tenha informações sobre si mesmo, isto é, de novo, inviabilizar a inteligência nacional.
Outra questão desse artigo de Paoli, que segue neste ponto Hannah Arendt, era a oposição entre violência e política. A violência não se confunde com o poder na terminologia dessa filósofa, que caracterizava a violência como uma força essencialmente destrutiva; o poder é que tem a capacidade de criar um mundo comum. Cito Paoli: "por ela se expressam os meios de destruição de indivíduos e de mundo: o medo que leva à proliferação das armas, os espaços concentrados de miséria, as periferias aterrorizadas pelo crime organizado e pelo arbítrio policial a ele associado." Lembram-se de algum candidato e atual presidente que apelou para o medo, para o porte de armas, e que já (não está sozinho na família nessas questões) elogiou as milícias?
O artigo continua: "Técnicas de controle e violência operam, portanto, num mundo esvaziado de política autêntica e de espaços públicos que poderiam acolhê-la, talvez até mesmo nos atos que criam dispositivos de participação popular voltados para formas democráticas de discussão e deliberação ampliadas, que, não obstante, podem ser eles próprios constituídos previamente por desenhos técnicos que delimitam a espontaneidade do debate".
A agenda oficial está seguindo com bastante coerência teórica o que deve destruir. Este governo marca-se também pelo combate à democracia participativa, não só no seu fechamento à sociedade, evidenciado até mesmo no descumprimento da Lei de Acesso à Informação, como também no recente decreto de destruição de dezenas de conselhos com participação social, o Decreto nº. 9.757, de 11 de abril de 2019, e, da mesma data, Decreto nº 9.759, que limitou a criação de novos conselhos e revogou o Decreto da "Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS". Ainda não pude contar quantos foram extintos. Mas o governo aparentemente também não sabe...
O pobre arrazoado da exposição de motivos do decreto, assinado pelo ministro da Casa Civil, além do pretexto da economia (é claro que não são informados os eventuais gastos, muito menos os prejuízos que advirão à máquina pública com a extinção desse órgãos; decisões políticas travestidas de gestão neutra, técnica em geral escondem dados), deixa claro que o governo tomou essa decisão de mutilação da máquina pública porque não quer sofrer controle social:


Uma crítica importante a esses órgãos com participação social é o de sua pouca efetividade, em muitos casos. No entanto, sua presença, como mecanismo de democracia direta, é fundamental para tentar contrabalançar problemas da democracia representativa. Um deles consiste nos representantes eleitos acharem que receberam um cheque em branco para fazer o que bem entenderem, discricionariamente ou até arbitrariamente. Este governo é uma encarnação deste problema, não querendo que alguém venha a se "contrapor ao poder das autoridades eleitas tanto para o Executivo quanto para o Legislativo", isto é, o governo não deseja que alguém venha exercer algo que é definido nas democracias (regime em que esses conflitos e contraposições são aceitos como necessários) como cidadania política...
O baixo nível técnico e intelectual do governo escancara-se no brevíssimo último parágrafo, que se contenta com o que entende como xingamento da norma anterior. O decreto inclui o Grupo de Trabalho de Perus, que logrou, ano passado, identificar mais um desaparecido da ditadura militar, Dimas Antônio Casemiro. No entanto, o Grupo foi criado em razão de condenação judicial (vejam a  matéria da Rede Brasil Atual), o que será mais um dos imbróglios jurídicos gerados por esta medida estapafúrdia e antipolítica no sentido de Hannah Arendt.
Refiro-me agora ao artigo "Movimentos sociais, cidadania, espaço público: perspectivas brasileiras para os anos 90", publicado pela Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 33, de outubro de 1991. Paoli resolveu polemizar com parte dos sociólogos da época e apostar na atuação dos movimentos sociais na criação de uma nova cultura política (uma aposta bem "Nova República", eu diria). A partir de estudos empíricos, ela afirmou que as associações organizadas populares, onde existiam, tinha conseguido modificar "a perspectiva assistencialista" dos programas sociais. Dessa forma, "a questão da desigualdade, da justiça e dos direitos passou a ser o crivo principal por onde passam as prioridades, os limites e alcances dos programas [...] Apesar de todas as dificuldades, significou que o domínio público passou a ser efetivamente público, isto é, debatido, conflituoso, negociado, e, sobretudo, incluindo a participação plural como prática e discurso fundado sobre o significado de direitos." Nada que possa ser feito por meio de whatsapp, que é mero Ersatz de espaço público.
Se essa nova cultura política aconteceu apenas limitadamente, até porque, eu diria, o Judiciário brasileiro mostrou-se várias vezes refratário ao discurso dos direitos, os caminhos para ela estão sendo, ao que parece, frontalmente combatidos pelo atual governo federal, não apenas ao vedar o controle social e a participação de associações e organizações na administração pública, mas no combate ao debate público, o que tem incluído ataques a jornalistas, com disseminação de notícias falsas, e a veículos de imprensa, realizados até mesmo pelos perfis nas redes sociais do atual ocupante da presidência da república.
Do desfazimento das ilusões da Nova República, até ao atual desfazimento da república, percorremos na verdade poucos anos, e a obra de Maria Célia Paoli pode servir para ajudar a entender esse caminho.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

O currículo do novo ministro e o projeto da devastação

Depois do desastre do Ministro da Educação que chamou os brasileiros de "canibais", e que não tinha ainda programas, dados nem as metas de sua pasta, cuja queda foi devidamente antecipada por Eliane Cantanhede (apesar das negativas nada convincentes), a presidência da república nomeou outro, um professor de pouca experiência no ensino universitário: ele passou no concurso para a Universidade Federal de São Paulo em 2014, depois de ter concluído o mestrado no ano anterior. Sua carreira foi feita no mercado financeiro. Ele trabalhou com o atual ministro da fazenda para elaborar parte do plano de governo, mas não na área de educação (essa é uma crítica importante, ao contrário da equivocadíssima ideia de reclamar de seu último sobrenome).
O currículo é singularmente mínimo para um professor de universidade pública, com apenas quatro artigos acadêmicos, dois deles aparentemente repetidos ("Weintraub publicou 2 artigos artigos iguais em revistas de inéditas"), em revistas de baixo impacto ("Na academia, novo ministro do MEC soma baixa produção e desavenças"), uma delas editada por seu irmão. Nenhuma das publicações é do campo da educação, por sinal.
A respeito da última revista, vi pessoas estranhando a rapidez da aprovação do artigo do hoje ministro, escrito com a Professora Daniela Baumohl Weintraub (sua esposa, professora das Ciências Atuariais da Unifesp, doutora em Ciências Econômicas): recebido em 25 de janeiro de 2016, foi aprovado em 5 de fevereiro seguinte. Outro trabalho, feito a quatro mãos fraternas, foi recebido em 30 de maio daquele ano e aprovado em 5 de junho. No entanto, todos os outros artigos desse número, escritos por outros autores, foram também aprovados em questão de dias; não houve favorecimento em relação à rapidez. Economistas estranharam esse dinamismo editorial, de fato incomum em publicações acadêmicas: https://twitter.com/lmonasterio/status/1115409239474831360
O chefe de governo divulgou que o atual Ministro era doutor; diferentemente do que ocorreu com outras notícias falsas por ele transmitidas, esta foi corrigida. Li, então, dúvidas sobre como seria possível alguém sem título de doutor lecionar na Universidade Federal de São Paulo.
É, de fato, curioso, mas aconteceu. Não se trata de uma ilegalidade. No edital nº 50, de 24 de janeiro de 2014, abriu-se concurso para três disciplinas (http://concurso.unifesp.br/editais/edital050-2014.htm), e esta foi a única que não exigia doutorado, mas apenas mestrado em ciências exatas ou ciências sociais aplicadas:


O atual ministro, Abraham Weintraub, havia terminado no ano anterior o mestrado em administração pela Fundação Getúlio Vargas e havia cursado graduação em ciências econômicas, razão pela qual seus títulos estavam plenamente adequados ao cargo.
A situação não era comum. Em algumas áreas acadêmicas, academicamente mais atrasadas no Brasil, como as ciências atuariais, é difícil encontrar doutores, ou em determinadas regiões do país. A Unifesp teve certa resistência na abertura da vaga com essa característica, como vemos nesta ata da reunião do Colegiado do Campus de Osasco, onde ficam as faculdades de ciências atuariais, ciências contábeis, economia, administração, relações internacionais e, no futuro, o curso de direito (apesar da oposição do Prof. Arthur Weintraub, "que, em agosto de 2017, havia feito uma denúncia no Ministério Público Federal sobre abertura do curso de Direito no campus Osasco, pois além desse curso ainda não estar aprovado no MEC e na OAB, dez professores estariam sendo contratados em meio a diversas dificuldades enfrentadas pela Unifesp"). Cito as linhas 68 a 77 da ata (https://unifesp.br/campus/osa2/images/PDF/2013_12_13.pdf):
[...] o Prof. Murilo pediu licença para interromper a ordem do dia e voltar aos informes para divulgar as notícias do CONSU [Conselho Universitário] e informar que foram aprovados no Conselho de Administração 3 concursos: Formação Científica e Metodologia, Contabilidade Financeira e Aspectos Práticos de Operações de Mercado, porém, o último não conseguiu passar pelo CONSU, pois a titulação de mestre travou a aprovação. Explicou que o C.A já havia aprovado o perfil do candidato com titulação de mestre, mas quando isso ficou esclarecido já não havia mais tempo para o Consu.
A fala foi proferida pelo Prof. Dr. Murilo Leal Pereira Neto, Diretor Acadêmico do campus. Estava presente na reunião, naturalmente, o Prof. Dr. Arthur Bragança de Vasconcellos Weintraub, irmão do atual ministro e também colaborador de Bolsonaro, na época Coordenador do curso de Ciências Atuariais.
O atual ministro foi o único aprovado no concurso, com a nota mínima (http://dpdphp.epm.br/concurso/inscricao/docs/crf-973-2013.pdf):


Nesta mensagem, o atual Ministro explicou que os outros quatro candidatos não apareceram para fazer provas. Acredito que deve ter ocorrido exatamente desse modo.
Seu currículo lattes, atualizado pela última vez no ano retrasado, possui até erros de ortografia.
O do ex-ministro Vélez estava cheio de erros ("Estes são os 22 erros no currículo lattes do Ministro da educação"), a ministra Damares Alves, sem lattes, atribuiu a si mesma dois mestrados inexistentes, e algo parecido ocorreu com o ministro Ricardo Salles, que foi referido publicamente com um fantasioso mestrado em Yale. O recentíssimo ataque do ocupante da presidência da república às universidades federais, que fariam, segundo essa autoridade, pouca pesquisa, em contraste com as privadas, com destaque à Universidade Mackenzie de São Paulo (https://twitter.com/tesoureirosdoJB/status/1115693340559912961).
Os dados reais configuram uma situação inversa à apresentada por Bolsonaro, que mais uma vez demonstra não conhecer o suficiente da realidade brasileira para conseguir exercer com algum sucesso o mandato atual, apesar de suas décadas como parlamentar. Na verdade, "a produção científica brasileira é feita quase exclusivamente dentro das instituições públicas de ensino". A informação falsa propalada por esse político só se justificaria se todos os professores das federais tivessem um currículo tão inexpressivo quanto o do novo titular do Ministério da Educação. Felizmente, isso não ocorre.
Em comum com o anterior, temos as olavices do Ministro, tanto no conteúdo (a paranoia anticomunista alimentada por fantasias de um socialismo onipresente nas grandes empresas e grandes organizações) quanto no estilo de sua retórica; os erros de concordância, todavia, distanciam-no um tanto de seu modelo. Vejam, nesta apresentação, como o professor emprega a sutil imagem de "Dilma sair da jaula": https://youtu.be/7gLpFgp0ZXA?t=261
Vejam também o irmão literalmente cuspindo ao mencionar a maior universidade brasileira e da América Latina, a USP: https://youtu.be/7gLpFgp0ZXA?t=952
Depois, com o léxico já esgotado, ele se basta com a cuspida e não pronuncia a sigla. As referências teóricas da palestra são a família Bolsonaro e Olavo de Carvalho.
Essas "fontes teóricas", apesar de todas as citações dos irmãos Bragança de Vasconcellos Weintraub, não são, nem de longe, as responsáveis pela produção científica brasileira. Cito o artigo referido pelos "Tesoureiros do Jair", "Fábricas de conhecimento", de Herton Escobar:
[...] as universidades não são percebidas pela população como instituições de pesquisa, apesar de serem elas as responsáveis pela maior parte da produção científica nacional. Das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos, 44 são universidades (36 federais, 7 estaduais e 1 particular) e 5 são institutos de pesquisa ligados ao governo federal (Embrapa, Fiocruz, CBPF, Inpa e Inpe), também mantidos com recursos públicos, além de 1 instituto federal de ensino técnico (veja gráfico). A USP é, disparada, a maior “fábrica de ciência” brasileira, com participação em mais de 20% das pesquisas publicadas no País. Ou seja, de cada 10 trabalhos científicos produzidos no Brasil, 2 tem pelo menos um pesquisador da USP entre os autores.
Com políticos como Bolsonaro e seus assessores, a população tem menos chance ainda de entender a magnitude dessas instituições públicas e seu papel essencial para servir à população com seus serviços, produtos, descobertas, bem como de perceber caráter nefasto dos ataques à universidade e ao conhecimento para o país promovidos pela administração federal eleita em 2018. Uma gestão privatizante, que é a que alguns imaginam que virá com o novo Ministro, poderia destruir esse patrimônio.
Outras coisas podem vir: vejam  afirmação de que no Nordeste não se deveria estudar filosofia e sociologia, nesta matéria de Josias de Souza.
O deserto intelectual ora no poder talvez não seja realmente capaz de perceber a contradição curiosa de chamar Lula (que sabe perfeitamente ler, falar e pronunciar discursos) de ignorante e, simultaneamente, trabalhar em um governo de Jair Bolsonaro e, ademais, considerar o atual chefe de governo um pensador do Brasil... O atual ocupante da presidência, que ainda não conseguiu nem mesmo ler em teleprompter ("Comunicação do Planalto não sabe como fazer Bolsonaro ler um texto para uma câmara"), não pode se comparar ao ex-presidente nem mesmo em relação às habilidades linguísticas. Essa contradição, deve-se notar, faz-se presente no autor que é fonte intelectual e norte administrativo (pelo seu poder de indicar nomes ao governo) dessas pessoas. Ele escreveu isto em O Imbecil Coletivo I: "Incapaz - ou desinteressado - de elevar-se intelectualmente acima de sua classe para poder representar o que ela tem de melhor, Lula não é, assim, um verdadeiro líder operário, mas uma amostra casual, escolhida por sua inocuidade mesma para funcionar como tela em branco onde a população possa projetar aspirações e desejos os mais desencontrados [...]".
Creio que esse diagnóstico não era correto em relação ao ex-presidente. No entanto, se a elevação intelectual é, de fato, o requisito importante, por que ter feito campanha e ainda apoiar tão firmemente alguém como Bolsonaro, que não representa (assim esperemos) o melhor de sua classe?
Não sabemos se essas pessoas têm as condições intelectuais de perceber esse equívoco; entregando a educação para o país a tais sem-condições, é provável que esta pasta, que viveu noventa dias dos mais danosos de sua recente história (ela foi criada por Getúlio Vargas), continue em situação crítica. Neste começo de governo, tivemos episódios como o da suspensão da avaliação da alfabetização (da qual recuou), a proposta inconstitucional e ilegal de fazer alunos serem filmados repetindo o slogan de campanha do governo com o hino nacional (a deputada Fernanda Melchionna questionou Vélez a respeito; houve outro recuo), o edital para compra de livros inobstante erros e propagandas (também não foi mantido), o negacionismo histórico em relação à ditadura militar, a proposta de vazamento da prova do ENEM para o presidente da república, o "congelamento do FIES", a perspectiva do fim das bolsas de pesquisa do CNPq em junho deste ano, o adiamento da compra de livros didáticos, numa sucessão de trapalhadas, conflitos e ilegalidades (a revista Veja falou em "baderna"; a deputada Tabata Amaral reclamou de Vélez pela falta de metas, dados e programas; o deputado Ivan Valente acusou-o de ignorar, entre várias coisas, o Plano Nacional de Educação) que praticamente paralisaram o funcionamento do ministério.
O problema não se limita a essa pasta. A destruição da ciência e da educação são pressupostos necessários de outras pastas do governo, que tornou o negacionismo climático política oficial, consagrou o agrotóxico como ambrosia do latifúndio e busca legitimar a chacina para dar de segurança aos oitenta tiros atirados sobre cada cidadão em herança da impunidade da ditadura.
João Vitor Campos-Silva e Carlos A. Peres, em carta publicada pela Nature em março deste ano, "Brazil's policies stuck in the mud", trataram da lama tóxica em que a Vale tem submergido o país desde a destruição do Rio Doce no governo de Dilma Rousseff até o caso de Brumadinho com suas centenas de mortos (a devastação é suprapartidária), mas também da destruição dos programas de pesquisa pela nova administração federal.
Afinal, como poderiam combinar pacotes legislativos pró-chacina com a pesquisa histórica? Ou a espoliação das terras indígenas com a antropologia? Ou as políticas teocráticas contra as mulheres com a pesquisa sobre a saúde feminina?
Não basta, para a lama em vigência, apenas paralisar o ministério da educação. A situação de descalabro quase sugere que este governo, para lograr seus intentos, precisa suspender o pensamento do país.