O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

António Manuel Hespanha (1945-2019): Sobre o pluralismo das fontes e a arbitrariedade dos juristas

Morreu aos 74 anos e com um livro novo na praça, Filhos da Terra: Identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa, que espero ainda ler. Rui Tavares escreveu sobre o historiador para O PúblicoThiago Hansen escreveu sobre sua carreira para o Jota (este, para os assinantes do jornal; eu mesmo não o li, mas indico por causa do jovem autor).
Nunca fui aluno dele, tampouco o encontrei pessoalmente; mas, como milhares, li textos seus e eles me causaram muita impressão; por isso, escreverei esta pequena nota, imagino que muitos o fizeram ou estejam a fazer o mesmo.
Creio que a magnífica obra de António Manuel Hespanha servirá sempre para, entre diversos outros efeitos, lembrar: a) os juristas da centralidade da História nos estudos jurídicos: b) os historiadores do importante papel do Direito nos estudos históricos.
É provável que a primeira lembrança seja a mais difícil em locais como o Brasil, em que os meios jurídicos são locais preferenciais de tráfico de influência e exploração do prestígio em benefício dos poderosos e, portanto, mostram-se em geral não apenas infensos à pesquisa científica, como inimigos do que pode denunciá-los, como a memória e a História.
Contra as falsas linearidades, sua obra deixou claro que o próprio estudo do Direito muda de acordo com as condições históricas: "Contra o que muitas vezes se pensa, o tipo de obras que, numa certa época, se escrevem sobre um determinado saber está preso às condições objectivas em que se desenvolve a prática teórica desse saber." ("Prática dogmática dos juristas oitocentistas" em A História do Direito na História Social, de 1978).
Em relação à segunda lembrança, ele escreveu que "a história jurídico-institucional vem recuperando do ostracismo a que fora condenada pela primeira geração da 'Escola dos Annales' [...] Ainda no século passado Otto von Gierke (1841-1921) mostrou como a teoria social e política medieval se encontra, antes de mais, na doutrina dos juristas."  (Poder e instituições no Antigo Regime: Guia de estudo, de 1992); "Mais recentemente, Aron Gurevic destacou que esse tom jurídico da imaginação social ("uma sociedade construída sobre o direito") estava difundido por todos os grupos sociais." (Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um milénio, 2012).
Para ambos efeitos, ele teve de se manter alerta à pluralidade do mundo e das fontes jurídicas. O artigo do Esquerda Net, "Faleceu António Manuel Hespanha, o historiador que desfez mitos", destacou esse ponto, e que, creio, foi reforçado por Foucault. Neste podcast, Salvo Melhor Juízo, em 2016, Hespanha revela o quanto lhe foi decisiva a leitura do filósofo francês sobre o poder, sobre como era complexo e existia em toda parte.
O pluralismo, evidentemente, não ocorreu apenas nos direitos medievais; ele se manifesta em todas as épocas. Sobre Portugal, no século XIX, Hespanha pôde escrever que o "núcleo fundamental da Constituição, formado pelas normas que definem as fontes  de direito, não apenas estava fora da constituição formal como estava também fora do âmbito da regulação estadual [no Brasil, escreveríamos estatal]. Na verdade, pelo menos até ao código civil de 1966, o elenco de fontes de direito incluía um reenvio para o direito doutrinal."; "uma parte substancialíssima da ordem constitucional estava, mesmo para o direito do Estado, fora do Estado." (Guiando a mão invisível: Direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português, de 2004).
Essas fontes não estatais do Direito, identificáveis pelo historiador e pelo sociólogo, são em geral ignoradas por certas correntes filosóficas (inclusive contemporâneas) do Direito que precisam, para atender a seus pressupostos e cumprir seus programas ideológicos, identificar Direito e Estado.
Dessa forma, faz todo sentido o rápido o cruzamento que ele faz de sua própria obra, neste vídeo do lançamento de seu último livro (não se vê que ele só tinha alguns meses de vida), com a célebre tese de Boaventura de Sousa Santos sobre o pluralismo jurídico na Favela do Jacarezinho (Hespanha a confunde com o bairro carioca de Jacarepaguá; no entanto, hoje, sob os governos Bolsonaro, Witzel e Crivella, o bairro, cada vez mais dominado por milícias, bem poderia gerar estudos sobre pluralismo, se os pesquisadores ousarem e sobreviverem aos criminosos estatais e/ou paraestatais).
A esse respeito, em Pluralismo jurídico e direito democrático (2003) critica Habermas, que levaria a uma "acentuada sacralização" do "direito dos Estados democráticos-representativos, sem grandes aberturas para a validade de direitos não estatais" e, ainda maior, do "direito doutrinal".
No tocante ao colonialismo português, ele adotou a mesma posição, rompendo certas teses de historiadores, afirmando que a "expansão do direito europeu" não deve ser simplificada "como um processo unilateral de imposição de uma ordem jurídica europeia a povos de culturas jurídicas radicalmente distintas ou de aceitação passiva por estes de uma ordem jurídica mais perfeita e mais moderna", pois "tanto as sociedades colonizadoras como as sociedades coloniais são política e culturalmente complexas, portadoras de uma pluralidade complexa de direitos" (Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um milénio).
Este livro que cito veio de outro, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, que ele reescreveu dando mais peso à teoria do direito. No entanto, ele permanece uma obra de História, e ele escreveria um outro grande livro seu de síntese dedicado à teoria jurídica: O caleidoscópio do Direito: O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje, de 2007. Ambos não têm paralelo algum que tivesse sido escrito no Brasil. Serviriam, no entanto, como livros de referência para disciplinas de História do Direito e de Teoria do Direito, em graduações com alunos alfabetizados.
Nessa obra, ele também chega aos tempos de hoje. Ele já estava há alguns anos a escrever, em posição afim à de Paolo Rossi, que "enquanto emissor de normas, o Estado-Nação foi substituído por uma multiplicidade de polos reguladores, cada vez mais informais, dinâmicos e menos favoráveis a soluções que acomodassem entre si os diversos direitos" (Pluralismo jurídico e direito democrático), o que gera diversos desafios, que o direito internacional ou o que se possa chamar de direito cosmopolita não estão ainda a resolver.
No entanto, ele era otimista e sustentava que "O mundo global não é portador apenas dos valores do mercado internacional. Povoam-no também milhares de organizações não-governamentais, comprometidas noutros interesses e portadoras de outros valores, não raramente incompatíveis ou mesmo reactivos a essa globalização apenas económica" (O caleidoscópio do Direito: O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje).

Na época em que editei uma revista de teoria do direito, quis, naturalmente, entrevistar Hespanha. Nunca havia entrado em contato com ele, porém o grande historiador respondeu ao e-mail deste professor obscuro no dia seguinte; encaminhei-lhe as perguntas e, em menos de 24 horas, ele já havia enviado as respostas! Cedeu-me também a foto ao lado.
Era o ano de 2008. Escolhi uma das frases que formulou para intitular a entrevista, "Os juristas mais característicos fazem parte do problema e não da solução". Obviamente, eu só poderia concordar com essa posição. Ele também, com extrema gentileza, me ofereceu para publicar um artigo seu com André Ventura, "Cultura jurídica académica no período do 'Estado Novo'", depois recolhido em livro.
Para terminar esta breve nota de agradecimento pela obra que nos deixou, transcrevo um trecho do Guiando a mão invisível, que dedico àquele que, no momento que escrevo, ainda encabeça o ministério da justiça da gestão que ainda está em poder no governo federal, para que o ex-juiz, quem sabe, se atualize, ao menos para os padrões do século citado:
Presentes estão, também, anteriores preocupações de redução do poder corporativo dos juristas [...] Nos finais do século XVIII, a linha de orientação era simplificar o processo, aproximando-o, progressivamente, do "processo natural", e diminuir a arbitrariedade dos juízes, reduzindo os seus poderes de livre estabelecimento e valoração dos factos, cerceando o seu arbítrio interpretativo e vedando-lhe todos os comportamentos abusivos, desleais e violentos em relação às partes, nomeadamente, em relação aos réus, em processo criminal [...]
P.S..: Sobre o ainda ministro, não sei se suas competências linguísticas permitirão que entenda o texto, tendo em vista que, depois de tantos anos, ainda não aprendeu a escrever nem mesmo o nome da antiga profissão.

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