O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

"Como a atividade política voltou a se aparentar com os cemitérios"





I

Caído na calçada.
No chão, de frente, a cara.
Sangue. Mancha na máscara.

Caiu perto do bueiro,
que vê nele um espelho.
Como se pode erguê-lo?

Atravessara a rua.
Caiu. Agora sua.
Sozinho não se apruma.

Não sei quem o derruba.
Muitos, agora, a vê-lo.
Porém ninguém o encara.

Longe, tocam os sinos.
Se o derrubou o vírus,
talvez sejam do enterro.

Perto, ouvimos balas.
Agora se percebe:
a culpa foi do verme,

que vive dos caídos
(de todos nós, em suma)
quando o país não se ergue.


II

Um verme montou no país:
"ande, jumento, não reclame;
você nem sabe o que fiz,
quero estar OK em Miami".

O jumento lamenta a carga:
um verme, porém tão pesado.
Fora um país até as patas
aceitarem levar o fardo.

Pedras e grama do caminho
gemem sob o jumento e o verme,
sucumbem ao peso inaudito;
árvores caem, o chão cede

pois cada passo abre uma cova,
na cova mil valas germinam,
cada passo um dia demora
pois os mortos medem o dia.

Fundem-se ossário e calendário
quando o caminho é retrocesso
e os massacres são o pedágio.
O verme montou no jumento

para chegar a seu destino
de se transformar num país.
Já morre o jumento sem tino.
Mas num corpo o verme é feliz.


III

O vírus usa farda,
resultado de mutações
desde ao menos Canudos.
Morreram camponeses
idosos, jovens e crianças.
Só era imune o latifúndio.

O vírus usa farda.
Contamina com bombardeios.
Na ditadura de ontem
devastou mil aldeias.
Hidrelétricas e garimpos
investem vacinas na Suíça.

O vírus usa a farda
pendurada no pau de arara.
Mas não o genocídio,
que anda nu e tranquilo
como os animais, sem pudor,
um eterno recém-nascido.


IV. Arendtiana

Como a atividade política voltou a se aparentar com os cemitérios, o joelho nos pescoços negros tornou-se instituição, e o verme, um herói nacional.

O ser humano que hoje se engaja publicamente na causa do verme perde-se porque sua expressão se venaliza. Os militares e os juízes queriam continuar sendo Estados dentro do Estado e acharam tolamente que o governo dos vermes ser-lhes-ia mais útil do que a república.

O Verme ao país: "amo-o porque você desconhece minha natureza, e esse desconhecimento age na impossibilidade dos acontecimentos. Desejo servi-lo com meus intestinos e possuí-lo integralmente para depurar a terra".

As mentiras da propaganda do verme não querem só a morte, mas acabar com a distinção entre vivos e mortos, cobrindo-os todos sob a mesma putrefação.

Qualquer diálogo com o verme é completamente insensato, como discutir com o vírus se ainda existem pessoas no país, e ele matar todas para provar que estava certo.

O vírus é, na terra do verme, um fim em si mesmo porque contém inteiramente a morte, sem referência a outras armas.

Raras vezes na história um país se identificou tanto com uma doença. Indignado, o verme mandou infectar a história.

O Brasil tinha o impressionante histórico de não extraditar vermes. 


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