O novo Ministro de Direitos Humanos, o advogado Sílvio Almeida, em seu discurso de posse, tratou de suas competências no campo da justiça de transição: "minha primeira mensagem é a reverência à luta por memória, verdade e justiça". Mencionou com respeito os anistiados e ainda se referiu à tentativa de extinção (ilegal) da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos pelo governo de Jair Bolsonaro, prometendo reformulá-la. Parecem-me boas indicações para o futuro.
A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos foi descaracterizada pelo governo Bolsonaro e acabou não cumprindo as atribuições determinadas pela Lei 9.140, que a instituiu. Imagino que o não cumprimento desses deveres será objeto de investigação da nova administração. Criada no governo de Fernando Henrique Cardoso diante das exigências dos movimentos de familiares de mortos e desaparecidos políticos, ela deveria cumprir estas competências determinadas pela Lei:
Art. 4º Fica criada Comissão Especial que, face às circunstâncias descritas no art. 1º desta Lei, assim como diante da situação política nacional compreendida no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, tem as seguintes atribuições:I - proceder ao reconhecimento de pessoas:a) desaparecidas, não relacionadas no Anexo I desta Lei;b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas;c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público;d) que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou em decorrência de sequelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público;II - envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados;III - emitir parecer sobre os requerimentos relativos a indenização que venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei.
O governo Bolsonaro havia, já em 31 de julho de 2019, indicado membros que haviam manifestado posições simpáticas à ditadura militar, segundo o Ministério Público Federal, o que incluía o deputado federal (reeleito em 2022) Filipe Barros e o próprio novo presidente, o advogado e procurador do Município de Taió, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, que era assessor da então Ministra Damares Alves.
Filmei no Seminário 40 anos da Lei de Anistia, que ajudei a organizar em São Paulo em agosto daquele mesmo ano, trechos da fala da Procuradora da República Eugênia Gonzaga, a antecessora de Pereira de Carvalho. Entre outras coisas, ela revelou que o seu sucessor tentou impedi-la de entregar as certidões da Comissão às famílias de mortos, tendo-lhe enviado uma esdrúxula notificação "com prazo com início retroativo". Gonzaga não se deixou intimidar, porém, e as famílias receberam o que lhes pertencia.
Ela ainda lembrou que, quando Bolsonaro disse, também em 2019, inverdades sobre o desaparecido político Fernando Santa Cruz, "parecia que eu estava ouvindo o Curió falando, era realmente a tal da contrainformação [...] a tentativa de desqualificar a vítima". O Major Curió, um dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade no Araguaia segundo o Ministério Público Federal, que propôs contra ele várias denúncias criminais, foi um dos autores de graves violações de direitos humanos elencados pela Comissão Nacional da Verdade. Foi recebido pessoalmente por Bolsonaro em 2020: afinal, desde as declarações de seu líder, o governo passado anunciava-se, sem pudor ou medo de sanções jurídicas, fora da lei no campo da justiça de transição.
Ao arrepio da Lei, desqualificando novamente as vítimas e a memória social do país, esse governo, já em decomposição desde pelo menos o fim do segundo turno das eleições de 2022, decidiu extinguir a Comissão em 15 de dezembro de 2022, apesar da recomendação do Ministério Público Federal de que não o fizesse, assinada em primeiro de julho de 2022 pelas Procuradoras da República Luciana Loureiro Oliveira e Marcia Brandão Zollinger. Cito o trecho com as recomendações:
a) ao Presidente da CEMDP, ora vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que, enquanto não esgotadas as competências previstas no art. 4º da Lei 9.140/1995; enquanto não cumpridas as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro perante a CIDH nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog; e enquanto não efetivadas as recomendações expedidas pela Comissão Nacional da Verdade, em seu Relatório Final (mencionadas neste documento), se abstenha de propor e/ou aprovar a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos;b) à Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos que adote providências para impedir a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, bem assim para assegurar, física e financeiramente, o seu adequado funcionamento, enquanto não esgotadas as competências previstas no art. 4º da Lei 9.140/1995; enquanto não cumpridas as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro perante a CIDH nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog; e enquanto não efetivadas as recomendações expedidas pela Comissão Nacional da Verdade, em seu Relatório Final (mencionadas neste documento);
Requisita, ainda, no prazo de 10 (dez) dias contados do recebimento do presente documento, resposta dos órgãos destinatários acerca do acatamento desta Recomendação.
A recomendação, elaborada depois de representação encaminhada em junho pela Comissão Arns, foi reiterada pelo Ministério Público Federal em 8 de dezembro de 2022, novamente depois de representação daquela Comissão. Ressalte-se nela a importância determinante para a justiça de transição no Brasil da ação movida por outro movimento da sociedade civil, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. A condenação do Estado brasileiro em 2010 no caso Gomes Lund e Outros (o chamado caso da Guerrilha do Araguaia) abriu o caminho para a Lei de Acesso à Informações, às comissões da verdade e a novos processos, nacionais e internacionais, entre eles o Caso Herzog na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que gerou nova condenação ao Brasil.
Felizmente, a gestão que fazia questão de desprezar a observância dessas normas jurídicas foi derrotada. Com o novo governo Lula, na estrutura do Ministério de Direitos Humanos foi criada para uma assessoria de "democracia, memória e verdade"; note-se que não coube no cargo a palavra justiça. Ela já não cabia no último Plano Nacional de Direitos Humanos, o terceiro, de 2009. O sexto eixo orientador do Plano, fruto da luta da sociedade civil contra interesses de corporações do Estado brasileiro (Amelinha Teles sempre conta que ele só conseguiu ser aprovado, apesar da oposição dos representantes das Forças Armadas e do Itamaraty, por causa do apoio do movimento negro, que deseja uma comissão da verdade para apurar os crimes da escravidão), só conseguiu ser aprovado sem a palavra "justiça". Relembro o Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009:
Art. 2o O PNDH-3 será implementado de acordo com os seguintes eixos orientadores e suas respectivas diretrizes:[...]VI - Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade:a) Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado;b) Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade; ec) Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.
Trata-se de impasses que vieram do passado. Até que ponto a justiça será adiada? Por que tanta resistência do Estado brasileiro a cumprir suas próprias leis e o Direito Internacional? A defesa dos crimes de lesa-humanidade da ditadura e seus agentes, que parece ter-se tornado uma finalidade mais ou menos informal das instituições, gerava preocupações oficiais já durante o regime autoritário. Há vários exemplos nos documentos dos órgãos de informação. Em maio de 1979, o SNI continuava a monitorar o movimento pela anistia, que prosseguiu mesmo depois de a ditadura fazer aprovar seu projeto de lei no Congresso Nacional. Neste momento, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) apoiava a criação de uma CPI dos direitos humanos que investigasse os desaparecimentos forçados e as execuções extrajudiciais promovidas pelo governo. Esta é cópia do panfleto:
Assina Eny Raimundo Moreira, a advogada que, além desta campanha e da advocacia para presos políticos, ajudou a organizar o projeto Brasil: Nunca Mais.
Esses apelos de justiça eram chamados, despudoradamente, de "revanchismo". Nesta Apreciação de 1981 do SNI, no campo relativo a esse tema, vemos listados como revanchistas as reações ao atentado cometido contra o advogado Dalmo Dallari (falecido em 2022), jamais esclarecido, à tortura e à execução extrajudicial de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, à tortura e ao desaparecimento forçado de Rubens Paiva (note-se que o SNI, tão bem informado, não sabia escrever o nome do deputado), bem como as denúncias contra o médico Harry Shibata, que assinou laudos falsos para a repressão.
Todos esses documentos encontram-se no Arquivo Nacional.
Revanchismo é palavra que voltou a frequentar o noticiário político. Não é de estranhar-se, contudo, que os veículos de comunicação e os políticos ligados ou simpáticos à extrema-direita de hoje tenham retornado ao termo com que os criminosos de ontem queriam usar para rebater as reivindicações de justiça da época da ditadura. Trata-se de continuidades no autoritarismo e no crime.
É indigna a equiparação entre as demandas de justiça, de um lado, e, de outro, os crimes cometidos por ou com a cumplicidade do Estado brasileiro. No entanto, ela é realizada por aqueles que tentam sustentar a qualificação de "revanchismo" aos familiares de mortos e desaparecidos no passado, ou para quem deseja a punição de crimes que tenham sido cometidos pela última gestão federal. Por trás dessa indignidade, parece-me estar a chamada teoria dos dois demônios, apelidada por alguns de "doisladismo" na versão brasileira desta forma de criminalização das vítimas que, esperamos, o novo governo Lula combaterá.
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