O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Alberto Pimenta homenageia Enzensberger: Foge a nuvem com o tempo

   


Em uma enquete de poucos anos atrás, indiquei Alberto Pimenta e Hans Magnus Enzensberger como poetas realmente jovens, um pouco, talvez, provocando gerações que nasceram mais recentemente. Só um pouco, no entanto. O que me encanta neles era o fato de rejeitarem o conformismo, que é algo que envelhece, enquanto muitos autores jovens apenas no sentido cronológico limitam-se a ajustar-se a conformidades novas ou nem tanto.
O escritor alemão morreu em 24 de novembro de 2022 aos 93 anos. Pimenta, como se sabe, tem muitos laços com a cultura germânica, pois foi professor na Universidade de Heidelberg durante seu exílio e chegou a publicar um interessante livro de poesia visual em alemão, Verdichtungen.
Pimenta, além disso, admira a obra de Enzensberger; em 2019, por ocasião dos 90 anos do autor, publicou a antologia bilíngue 66 Poemas escolhidos e traduzidos por Alberto Pimenta pelas Edições do Saguão, provavelmente a melhor que existe em português. Transcrevo este trecho do posfácio:

[...] muito jovem, Enzensberger foi um dos dinamizadores do renovador propósito literário que recebeu a designação de Grupo 47 - a que o famigerado político de extrema-direita F.J. Strauss chamava as varejas. Enzensberger foi diferente de todo o Grupo, a língua de Enzensberger é só a língua de Enzensberger. Admirar estes poemas é começar por chegar aí.

O sentimento infunde este poema novo, Foge a nuvem com o tempo, de dezembro de 2022, editado por ele e Rui Miguel Ribeiro. Uma elegia ao poeta alemão; digo "poeta" porque, se ele, como Pimenta, escreveu em prosa e foi um importante ensaísta, o assunto do poema é principalmente a poesia, além da impermanência das coisas.
Divide-se em três partes: a primeira, "Esperei", uma navegação pela história da poesia ("pelo meio das ondas/ ou da água do despejo/ esse é sempre o caminho." De Dylan Thomas a Homero, passando por Safo, Camões, Petrarca; para os mais recentes, nessas andanças marítimas, não encontra boas palavras:

peixe reparado
poesia congelada.
Aqui um, ali outro
pescador de pérolas;
são já raros,
continuaram sempre
a meter-se àquele áspero mar
onde um dia se acha
a pérola da vida
e outro dia se morre;
assim tu, por exemplo


Enzensberger, a quem ele se dirige, é uma exceção; mas sua imagem ergue-se dos mares, toma a forma de nuvem e se vai, embora ainda se ouça o que o autor alemão disse.
A segunda parte, mais breve e escrita em versos mais curtos, "Quis entender", soa como um debate interior; a irresolução gramatical de frases que se iniciam e logo são cortadas sugere um diálogo incrédulo diante da presença de Enzensberger.
Enfim, acredita-se na presença, que é o objeto da terceira parte, "Esperei até ao fim", a mais lírica. Enzensberger está imóvel, "a pensar talvez em Ingeborg/ ou nos teus amigos comunistas franceses/ todos mortos". Estará morto?
Outra elegia de Pimenta, Tanto fogo e tanto frio: o último sonho de Olímpio (Lisboa: &etc, 2007, que incluía um texto de Vitor Silva Tavares), em homenagem a Olímpio Ferreira, terminava com um gesto do silêncio. Não contarei aqui o final do poema novo, que envolve o silêncio de alguns e o canto de outros; digo, porém, que ele me parece uma réplica ao que Enzensberger escreveu no poema "Leichter als Luft" ("Mais leve que o ar"), que Pimenta traduziu naquela antologia; ele assim termina:

Muita coisa fica de qualquer modo
a pairar no ar.
O mais leve de tudo talvez seja 
o que sobra de nós
ao estarmos já debaixo da terra.

De fato, se há um poeta à altura de responder a Enzensberger, a jogar com a dialética terra/ar, bem como canto/silêncio, é Alberto Pimenta. 

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