O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 21 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCIX: O pedido oficial de desculpas, 24 de março, pelos desaparecidos da Vala de Perus

Em 24 de março de 2025, Dia Internacional do Direito à Verdade, comemorado também no Brasil em razão da lei federal 13.605 de 2018, ocorrerá um evento histórico: o governo federal pedirá desculpas pelos desaparecimentos na Vala de Perus, uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos.

A lei federal nasceu de um projeto da deputada federal Luíza Erundina. Quando ela foi prefeita, a Vala pôde ser aberta e o trabalho de identificação dos remanescentes ósseos pôde começar. Era 1990: abriu-se uma CPI na Câmara dos Vereadores que serviu de preâmbulo para as comissões da verdade dos anos 2010. Alguns agentes da repressão, como Carlos Alberto Brilhante Ustra, escaparam de depor. A denúncia do funcionário do Serviço Funerário Antônio Eustáquio foi fundamental para a localização da Vala.



Acima, vê-se Eustáquio em 4 de setembro de 2024, ao lado do Cemitério Dom Bosco, com Amelinha Teles e Criméia de Almeida, membros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

Os remanescentes foram enviados à Unicamp para serem identificados. Depois de algumas alegadas identificações, o trabalho parou e eles foram armazenados de forma calamitosa, o que levou a um processo judicial. O pedido de desculpas do dia 24 de março foi decidido nas audiências de conciliação.

Além disso, os familiares dos desaparecidos provocaram o governo federal, a partir de uma articulação feita na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (menciono Amelinha Teles e Adriano Diogo na Comissão) com a ministra das Mulheres Eleonora Menicucci e a presidenta Dilma Rousseff. Daí nasceu o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp), que, na época, tinha a sua primeira mulher reitora, Soraya Smaili. 

A história da criação da equipe de trabalho e do universo de identificação de desaparecidos dentro daquele caso pode ser lida no relatório da Comissão da Verdade "Rubens Paiva", no capítulo "A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus".

O CAAF trabalhou nas duas últimas identificações tornadas públicas, as de Dimas Antônio Casemiro e de Aluísio Palhano em 2018, porém os militares voltaram ao poder em 2019, com J. Bolsonaro como seu representante, e as atividades ficaram praticamente paralisados, pois a União Federal descumpriu os acordos e deixou de enviar a sua contribuição financeira. Só em setembro de 2024 uma nova equipe voltou a trabalhar na identificação, em contratos temporários, a partir de um acordo com o PNUD.

O governo estadual também foi processado por causa dos remanescentes ósseos, eis que estava envolvido nos desaparecimentos por causa de suas polícias, evidentemente, e de duas universidades estaduais: a Unicamp, como escrevi, deixou os remanescentes ósseos em condições precárias, deteriorando-se. Os familiares descobriram a situação de paulatina destruição; em seguida, os remanescentes foram levados para a USP, e ela se manteve inerte: o trabalho de identificação foi interrompido. 

O governo estadual, porém, durante as audiências de conciliação, decidiu repentinamente no fim de 2024 que não faria publicamente o pedido de desculpas, ao contrário do federal. A Agência Pública contou corretamente essa história na matéria "Governo Tarcísio recusa evento de pedido de desculpa por vala clandestina", de 5 de dezembro.

É estranhíssimo achar que não se deve desculpar publicamente por crimes de lesa-humanidade; fica a parecer que há uma simpatia oficial por esses delitos, da mais alta reprovabilidade, por sinal. Por isso, não teremos as autoridades estaduais no 24 de março. É provável que o governador seja obrigado judicialmente a fazer um pedido de desculpas próprio mais tarde.

Um erro comum em relação à Vala de Perus é achar que todos os remanescentes ósseos são de militantes políticos: na verdade, eles incluem também outros alvos da ditadura: indigentes, vítimas do Esquadrão da Morte e da epidemia de meningite, que a ditadura determinou que não podia ser noticiada, o que aumentou sua letalidade.

Outro erro, muito comum na imprensa, que será reproduzido na nota de desculpas do governo federal, já publicada pela Agência Pública no ano passado e pela CNN, em 6 de março de 2025, é o número de casos. Antes, se falava de 1.049 ossadas. Atualmente, após as análises do universo dos remanescentes ósseos, o CAAF identifica 1.062 casos contidos em 1.065 caixas.

Anuncia-se que a Ministra Macaé Evaristo fará o pedido de desculpas no dia 24 de março às 14 horas. Na ocasião, serão ouvidos também a Comunidade Cultural Quilombaque, de Perus, e os familiares de desaparecidos. Resolvi escrever esta nota por causa do caráter histórico do evento e porque até o momento em que esta nota é escrita o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não incluiu o evento entre as noticias no seu portal, tampouco no ex-Twitter, embora já tenha enviado o convite para as pessoas cadastradas.

Eu não o recebi, no entanto irei (e chamo todos os que puderem aparecer lá), e deixo aqui a lista dos vídeos que gravei em quatro de setembro de 2024, no ato dos 34 Anos da Abertura da Vala de Perus, que a imprensa não noticiou e a administração do cemitério, privatizada, tentou impedir, como contei na época.




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