O romance Caderno de ossos (Companhia das Letras, 2025), de Julia Codo, trata da Vala de Perus. Curiosamente, as três últimas notas que escrevi neste blogue abordam acontecimentos recentes ligados a essa vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos, alguns deles de militantes políticos.
Em 21 de março, publiquei sobre o pedido de desculpas que a União Federal faria no dia 24 subsequente; em 29, decidi escrever sobre como ele ocorreu, em razão da deficiente cobertura da imprensa; finalmente, depois de os trabalhos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp) terem levado à identificação de Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva, expliquei algo, em razão das falhas do jornalismo, sobre como ela aconteceu.
Opera Mundi, que entrevistou Edson Teles, da coordenação do CAAF, e Sumaúma, com Eliane Brum revisitando o caso de Grenaldo, que ela ajudou a desvendar em 2003, foram muito melhores na abordagem. Também o foi este livro de Julia Codo que, impresso em março de 2025, não abordou esses acontecimentos recentes, mas explicou bastante do processo de identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus até o governo de J. Bolsonaro, que o sabotou.
Codo resolve adotar um tom didático para explicar a história da Vala, a abertura dela no governo de Luiza Erundina, a negligência da Unicamp, a criação do CAAF, as ações do presidente Bolsonaro e da ministra Damares contra a identificação dos desaparecidos. Cito esta passagem sobre as audiências de conciliação na Justiça Federal, da época em que a União tentou tirar os remanescentes ósseos da guarda do CAAF, que havia realizado identificações em 2018:
O governo federal argumentou que a manutenção do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e o envio das amostras para Haia geravam muitos gastos e que a migração das ossadas para a Polícia Civil de Brasília traria uma grande economia. Os representantes da Comissão dos Familiares disseram que aquilo era inaceitável, que a transferência provocaria perda de tempo e novos atrasos na identificação dos restos mortais e que a troca na equipe, treinamento de pessoal, remoção e transporte adequado do material também gerariam gastos aos cofres públicos.
O que poderia ser um defeito, o didatismo, acaba se revelando a força do livro, que não se justifica de outra forma. O romance, narrado em primeira pessoa, alterna as passagens da protagonista contando o que está vivendo com retrospectivas de sua infância e juventude, bem como relances da história de sua tia Eva, a desaparecida que talvez esteja entre os remanescentes ósseos da Vala. Não há contraste, porém: é tudo muito parecido e pouco interessante: é bastante evidente que o casamento dela não vai durar, tampouco o avô conseguirá viver muito mais tempo. Sabemos todos que empreiteiras participavam ou se aproveitavam da repressão: não há revelação alguma quando a antiga militante, Celeste, conta para a sobrinha de Eva o que todo muito sabia.
Essa escrita centrada no eu acaba por se revelar burguesa demais para o tema. Quando a protagonista vai para a Marcha do Silêncio em 2019 em São Paulo (o evento aparece sem o nome), ela percebe sua própria "falsa empatia" e seu "engajamento episódico". Infelizmente, o romance mimetiza a personagem, em vez de trazer um olhar crítico.
Como a protagonista não é extremamente sagaz, pululam passagens sem sutileza ou profundidade: é um exemplo a explicação sobre as pesquisas ante mortem e post mortem que é logo seguida de uma analogia simplória no campo amoroso. Vejam esta passagem do amor post mortem: "Quando a ruptura é abrupta: síndrome do coração partido, também chamada cardiomiopatia do estresse. Quando a ruptura é lenta: negação, insônia, gastrite.".
As reflexões da protagonista assemelham-se às frases que revisa para seu trabalho on-line de citações motivacionais para um aplicativo, bem como às interpretações de sonhos que ela consulta em um portal da internet. O estilo alheio também pode ser a pessoa.
A tentativa de introduzir a personagem de uma vidente perto do final não chega a mudar o panorama; Clarice Lispector em A hora da estrela criou uma personagem análoga para precipitar aquele desfecho completamente genial em que se entrelaçaram as dimensões sociais e individuais daquela história. Neste livro de Julia Codo, temos apenas uma tentativa de adiar o final com mais um episódio; o fim do romance, porém, já ocorreu páginas antes de ele terminar.
Principalmente, nada ficamos a saber sobre Eva, a desaparecida. O romance não chega a constituir o que ela fazia em termos políticos, tampouco quem ela era. Essa lacuna poderia ter sido explorada de forma interessante, mas acaba se tornando um simples vazio, e não um buraco negro a gerar outros universos. A propósito, a autora também incluiu passagens didáticas sobre Astronomia, como a singela comparação da passagem dos dias durante a pandemia com os efeitos da atração gravitacional de um buraco negro.
Nesse sentido, o olho de resina da desaparecida, que a protagonista descobre e passa a levar consigo, é o próprio romance: ele também não consegue dar a ver. Infelizmente, esse isomorfismo tampouco é explorado pela autora.
Boa parte da história se passa em 2019: chega 2020 e a pandemia, que é reduzida, neste livro, a um pretexto para oficializar o fim do casamento e confirmar o isolamento social da protagonista. Dito isso, os efeitos sobre o trabalho do CAAF são descritos. O antropólogo forense com quem ela teve um namorico explica:
Estamos fazendo o trabalho remoto que dá para fazer: manter o contato com os familiares, fazer textos e vídeos informativos. E acompanhar as audiências online do gabinete do juiz.
[...]
Para quem não quer que o processo ande, a pandemia é uma ótima justificativa: não tem condição sanitária, e pronto. Mesmo sendo um laboratório de cem metros para dois profissionais. Daria perfeitamente para trabalhar.
O didatismo pelo menos dá algum valor de documento ao romance e o relaciona ao direito à memória e à verdade, pois foi exatamente isso o que ocorreu com aquele Centro da Unifesp.
Em pelo menos dois momentos em que o livro se aproxima de algo mais sério, ele recorre a frases nominais. Isso é interessante: a Vala de Perus irrompe e a escrita se transforma: "Uma vala com a largura de uma retroescavadeira. Trinta e dois metros de comprimento, quase três de fundura. Um dia de 1976. Uma exumação em massa numa noite muito fria ou muito quente. [...]".
Não dura muito. Poderia ter sido uma poética para o desconhecido. Da forma como ficou, temos apenas a sintaxe de um caderno de notas, e não de ossos.