O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 27 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXII: Caderno de ossos, de Julia Codo e a Vala de Perus

O romance Caderno de ossos (Companhia das Letras, 2025), de Julia Codo, trata da Vala de Perus. Curiosamente, as três últimas notas que escrevi neste blogue abordam acontecimentos recentes ligados a essa vala clandestina no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde a ditadura militar ocultou mais de mil corpos, alguns deles de militantes políticos.

Em 21 de março, publiquei sobre o pedido de desculpas que a União Federal faria no dia 24 subsequente; em 29, decidi escrever sobre como ele ocorreu, em razão da deficiente cobertura da imprensa; finalmente, depois de os trabalhos do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp) terem levado à identificação de Denis Casemiro e Grenaldo de Jesus Silva, expliquei algo, em razão das falhas do jornalismo, sobre como ela aconteceu

Opera Mundi, que entrevistou Edson Teles, da coordenação do CAAF, e Sumaúma, com Eliane Brum revisitando o caso de Grenaldo, que ela ajudou a desvendar em 2003, foram muito melhores na abordagem. Também o foi este livro de Julia Codo que, impresso em março de 2025, não abordou esses acontecimentos recentes, mas explicou bastante do processo de identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus até o governo de J. Bolsonaro, que o sabotou.

Codo resolve adotar um tom didático para explicar a história da Vala, a abertura dela no governo de Luiza Erundina, a negligência da Unicamp, a criação do CAAF, as ações do presidente Bolsonaro e da ministra Damares contra a identificação dos desaparecidos. Cito esta passagem sobre as audiências de conciliação na Justiça Federal, da época em que a União tentou tirar os remanescentes ósseos da guarda do CAAF, que havia realizado identificações em 2018:


O governo federal argumentou que a manutenção do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense e o envio das amostras para Haia geravam muitos gastos e que a migração das ossadas para a Polícia Civil de Brasília traria uma grande economia. Os representantes da Comissão dos Familiares disseram que aquilo era inaceitável, que a transferência provocaria perda de tempo e novos atrasos na identificação dos restos mortais e que a troca na equipe, treinamento de pessoal, remoção e transporte adequado do material também gerariam gastos aos cofres públicos.  


O que poderia ser um defeito, o didatismo, acaba se revelando a força do livro, que não se justifica de outra forma. O romance, narrado em primeira pessoa, alterna as passagens da protagonista contando o que está vivendo com retrospectivas de sua infância e juventude, bem como relances da história de sua tia Eva, a desaparecida que talvez esteja entre os remanescentes ósseos da Vala. Não há contraste, porém: é tudo muito parecido e pouco interessante: é bastante evidente que o casamento dela não vai durar, tampouco o avô conseguirá viver muito mais tempo. Sabemos todos que empreiteiras participavam ou se aproveitavam da repressão: não há revelação alguma quando a antiga militante, Celeste, conta para a sobrinha de Eva o que todo muito sabia. 

Essa escrita centrada no eu acaba por se revelar burguesa demais para o tema. Quando a protagonista vai para a Marcha do Silêncio em 2019 em São Paulo (o evento aparece sem o nome), ela percebe sua própria "falsa empatia" e seu "engajamento episódico". Infelizmente, o romance mimetiza a personagem, em vez de trazer um olhar crítico.

Como a protagonista não é extremamente sagaz, pululam passagens sem sutileza ou profundidade: é um exemplo a explicação sobre as pesquisas ante mortem e post mortem que é logo seguida de uma analogia simplória no campo amoroso. Vejam esta passagem do amor post mortem: "Quando a ruptura é abrupta: síndrome do coração partido, também chamada cardiomiopatia do estresse. Quando a ruptura é lenta: negação, insônia, gastrite.".

As reflexões da protagonista assemelham-se às frases que revisa para seu trabalho on-line de citações motivacionais para um aplicativo, bem como às interpretações de sonhos que ela consulta em um portal da internet. O estilo alheio também pode ser a pessoa. 

A tentativa de introduzir a personagem de uma vidente perto do final não chega a mudar o panorama; Clarice Lispector em A hora da estrela criou uma personagem análoga para precipitar aquele desfecho completamente genial em que se entrelaçaram as dimensões sociais e individuais daquela história. Neste livro de Julia Codo, temos apenas uma tentativa de adiar o final com mais um episódio; o fim do romance, porém, já ocorreu páginas antes de ele terminar.

Principalmente, nada ficamos a saber sobre Eva, a desaparecida. O romance não chega a constituir o que ela fazia em termos políticos, tampouco quem ela era. Essa lacuna poderia ter sido explorada de forma interessante, mas acaba se tornando um simples vazio, e não um buraco negro a gerar outros universos. A propósito, a autora também incluiu passagens didáticas sobre Astronomia, como a singela comparação da passagem dos dias durante a pandemia com os efeitos da atração gravitacional de um buraco negro.

Nesse sentido, o olho de resina da desaparecida, que a protagonista descobre e passa a levar consigo, é o próprio romance: ele também não consegue dar a ver. Infelizmente, esse isomorfismo tampouco é explorado pela autora.

Boa parte da história se passa em 2019: chega 2020 e a pandemia, que é reduzida, neste livro, a um pretexto para oficializar o fim do casamento e confirmar o isolamento social da protagonista. Dito isso, os efeitos sobre o trabalho do CAAF são descritos. O antropólogo forense com quem ela teve um namorico explica:


Estamos fazendo o trabalho remoto que dá para fazer: manter o contato com os familiares, fazer textos e vídeos informativos. E acompanhar as audiências online do gabinete do juiz.

[...]

Para quem não quer que o processo ande, a pandemia é uma ótima justificativa: não tem condição sanitária, e pronto. Mesmo sendo um laboratório de cem metros para dois profissionais. Daria perfeitamente para trabalhar.


O didatismo pelo menos dá algum valor de documento ao romance e o relaciona ao direito à memória e à verdade, pois foi exatamente isso o que ocorreu com aquele Centro da Unifesp.

Em pelo menos dois momentos em que o livro se aproxima de algo mais sério, ele recorre a frases nominais. Isso é interessante: a Vala de Perus irrompe e a escrita se transforma: "Uma vala com a largura de uma retroescavadeira. Trinta e dois metros de comprimento, quase três de fundura. Um dia de 1976. Uma exumação em massa numa noite muito fria ou muito quente. [...]". 

Não dura muito. Poderia ter sido uma poética para o desconhecido. Da forma como ficou, temos apenas a sintaxe de um caderno de notas, e não de ossos.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Desarquivando o Brasil CCXI: Duas novas identificações de desaparecidos políticos e a desinformação da imprensa

Dia 15 de abril de 2025, à noite, foi liberada pelo Comitê Científico do Projeto Perus a informação de que foram identificados os remanescentes ósseos de dois desaparecidos políticos: DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA (e não "da Silva"), assassinados pela ditadura militar em 1971 e 1972, respectivamente.
Seus corpos foram ocultados em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. A chamada "Vala de Perus" somente foi aberta em 1990, no governo da prefeitura Luiza Erundina e representou uma grande materialidade do caráter da ditadura militar, com os mais de mil corpos lá escondidos ilegalmente.
Logo teremos o aniversário de 35 anos da abertura da Vala, mas poucos desaparecidos foram identificados desde então. Agora, temos seis. No dia 16, fez-se o anúncio público das novas identificações na Reitoria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Recentemente escrevi sobre o recentíssimo, de 24 de março, pedido de desculpas da União pela negligência na identificação. Naquele momento, não gostei da cobertura da imprensa. Desta vez, acho que foi pior. Fica a impressão de que ela não tem acompanhado a questão e, por isso, não a compreende bem.
Foi interessante ver que profissionais da informação não sabiam ou não lembravam que teria havido uma identificação de Casemiro em 1991 pela Unicamp. Emocionante ver reportagem televisiva afirmando que ele foi identificado em 1991 e que agora o DNA foi confirmado. Comovente ler na imprensa que em 1991 não existiriam exames de DNA...
Escrevo esta pequena nota apenas a partir de informações que vieram à luz, de 1990 até 2025 pelos Familiares, pelas Comissões da Verdade, imprensa e universidades, sem entrar, claro, em informações confidenciais. 
A equipe da Unicamp chefiada por Badan Palhares falhou na errônea identificação de Denis Casemiro em 1991. Como foi explicado no ato do dia 16, o DNA dos remanescentes ósseos que foram enterrados em Votuporanga como se fossem de Denis Casemiro não corresponde ao da família Casemiro, tampouco ao de nenhuma das famílias de desaparecidos cujos dados até o momento constam dos bancos de dados genéticos. Uma vez que não foram colhidos os dados de todas, talvez eles sejam de outro desaparecido político.
Foram outros remanescentes que foram identificados agora como pertencentes a Denis Casemiro.
Em 1991, a Unicamp usou um método de sobreposição de imagens de fotos dos desaparecidos vivos com os crânios, bem como verificação da tipagem sanguínea. A Agência Pública explicou aqui: https://apublica.org/2025/04/vala-de-perus-exame-de-dna-corrige-identificacao-de-desaparecido-anunciada-em-1991/
Ao contrário do que diz a matéria, existiam exames de DNA em 1991, porém a Unicamp não os fazia, pois eram muito caros. Continuam sendo, por sinal: também por motivos econômicos, antes de enviar qualquer amostra para coleta, é necessário avaliá-la rigorosamente segundo critérios antropométricos, trabalho feito pela equipe de pesquisa post mortem do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF-Unifesp). A análise genética é feita no exterior, em um laboratório na Holanda, o ICMP (International Commission on Missing Persons).
Como foi largamente divulgado em 1991, a Unicamp achou seis pontos coincidentes entre a foto de Denis e o crânio e bastou-se. Também foi divulgado na imprensa da época que eram QUINZE os pontos principais que eles buscavam.
De qualquer forma, como se viu na cerimônia, não havia muita chance de a Unicamp conseguir identificar corretamente por meio desse método porque, conforme se viu tanto em 1991 quanto depois, inclusive na recente matéria da Agência Pública, a equipe usou uma foto antiga de Denis Casemiro, de 1962, tirada quando ele tinha apenas 18 anos.
É a foto que está publicada no Dossiê Ditadura, dos Familiares, na Comissão Nacional da Verdade e na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":



Por algum motivo que me escapa, é a foto que boa parte da imprensa agora decidiu reproduzir. 
No entanto, quando foi assassinado pelo DEOPS-SP, ele não era mais assim. O CAAF-Unifesp divulgou a notícia com foto mais recente dele, obtida no fim do ano passado pela pesquisa ante mortem:


Ela está guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Fundo do DEOPS-SP. Esta é a imagem que se encontra nos álbuns policiais (quem viu "Ainda estou aqui", o filme de Walter Salles, deve lembrar das cenas de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, folheando os álbuns de suspeitos - era exatamente assim que acontecia).
A foto não tem data, mas se pode imaginar que ela tenha sido tirada perto de seu assassinato, pois faz recordar de seu semblante quando morto (quem tiver estômago, pode ver essas fotos do laudo necrológico na ligação para a Comissão "Rubens Paiva" que deixei acima). Nos dois álbuns onde ela pode ser vista, há muitas fotos tiradas depois do sequestro pelas forças da repressão.
Portanto, para Denis Casemiro, tivemos a restituição de seu corpo e de sua imagem, o que faz valer o direito à memória e à verdade, e caminhamos um pouco mais dentro do campo da justiça de transição.
Grenaldo de Jesus Silva era um caso que tinha muita probabilidade de ser encontrado em Perus, pois havia registro de ele ter sido enterrado no Cemitério Dom Bosco. Quando abriram clandestinamente a Vala, em 1976, seu corpo foi lá escondido. A ditadura fez espalhar uma versão oficial de que ele teria se suicidado depois de ter tentado sequestrar um avião e seria um criminoso. No entanto, ele foi um perseguido político, foi expulso da Marinha em 1964, tendo antes recebido a pena mais alta entre os membros do movimento dos marinheiros. 
Os militantes contra a ditadura não acreditaram no falso suicídio e, desde a campanha pela anistia, incluíram seu nome entre os mortos e desaparecidos da ditadura.


A foto pode ser vista no perfil elaborado pela Comissão "Rubens Paiva": https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/grenaldo-de-jesus-da-silva. Nele, também pode ser ler a notável matéria de Eliane Brum que revelou a verdade sobre o assassinato de Grenaldo, bem como o fato de que ele tinha sido descoberto e estava sendo perseguido, por isso tentou fugir do país por via aérea.
Ele pôde ser encontrado porque, em setembro de 2024, uma nova equipe entrou no CAAF-Unifesp e o trabalho de identificação pôde ser retomado, mesmo com contratos com prazo determinado e posições precárias. Em 2018, a equipe antiga logrou fazer duas identificações; depois, contudo, chegou o governo do Inelegível e o trabalho ficou quase paralisado; ademais, como o professor Edson Teles, vice-coordenador do CAAF explicou no ato do dia 16 de abril, aquele governo federal tentou retirar os remanescentes ósseos da Unifesp, o que poderia gerar um novo desaparecimento, pois o trabalho anterior sobre eles se perderia.
O anúncio da histórica identificação de DENIS CASEMIRO e GRENALDO DE JESUS SILVA foi realizado na presença da Ministra de Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo. Na mesa, falaram Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do governo federal; Samuel Ferreira, coordenador cientifico do trabalho de identificação e perito da Polícia Civil, Edson Teles, professor de Filosofia da Unifesp e um dos coordenadores do CAAF (com a historiadora Joana Barros); Amelinha Teles, pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; a Reitora da Unifesp, Raiane Patrícia Severino Assumpção e, finalmente, a Ministra Macaé Evaristo, que prometeu ajudar financeiramente os trabalhos. Sua fala foi bem sintetizada na matéria do Ministério: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/abril/estado-brasileiro-identifica-novas-vitimas-da-ditadura-e-reforca-compromisso-com-justica-de-transicao
Para terminar esta nota, não tenho nada melhor do que sugerir escutar Amelinha Teles (consegui gravar o início de sua manifestação no ato), que presenciou esta história desde a abertura da Vala, em 1990, elogiou Eliane Brum (uma jornalista rara) por sua atuação no caso de Grenaldo e explicou de maneira bem clara: "a Unicamp nos traiu":