O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 4 de maio de 2025

Inanição, mudez e o inarticulado: Escrevo seu nome no arroz, de Caetano Romão

Nós que lemos Um nome inteiro disposto à montaria (7 Letras, 2021), poemas que formam uma história de amor entre dois homens, imaginávamos que Caetano Romão poderia escrever um romance. Quem ler Escrevo seu nome no arroz (Fósforo, 2025) logo perceberá que é obra de um poeta, pelo que faz com o estilo ("Meu coração está com dor de garganta", por exemplo). Por sinal, um dos poucos momentos não verossímeis do livro ocorre quando o narrador/protagonista diz que "Só temos palavras cruzadas em casa", e não livros.


O autor no lançamento na Livraria Simples, em São Paulo. 

Mencionamos o gênero do primeiro livro não para insinuar que o autor entrou como um peixe fora d'água no campo da prosa de ficção, mas para afirmar que ele é uma das comprovações do que Fernando Pessoa dizia: é preciso ser poeta para escrever bem. 

Os fatos da história são simples: dois irmãos enterram a mãe no quintal da casa logo no início do livro. Depois disso, vão degringolando mentalmente, especialmente o mais velho, que deixa de falar. A terra murmura, coisas mudam de lugar, eles ainda ouvem a mãe. O mais jovem ainda é capaz de sair da casa, falar com estranhos com quem tem encontros fugazes (um especialista em lepidópteros, uma artista em fase de autorretratos). Nenhum encontro amoroso acontece. O mais velho surta mais seriamente e não recebe ajuda, o que precipita o final.

Há outras questões no livro. Ele é quase um romance de tese sobre a voz: os dois jovens ouvem vozes além do murmúrio da terra. O protagonista, que é gago, reclama que a dentadura da mãe já não diz nada. Porém diversas coisas se manifestam em linguagens não articuladas, que são apreciadas porque "um alfabeto é rasgo que jamais cicatriza". Quando finalmente surge um assobio, ele comenta: "Tenho escutado murmúrio, sussurro, gemido. Agora, assobio, nunca. Pelo jeito, a terra anda mais cheia de fôlego.". O irmão quer saber o que as vozes falam; o protagonista responde: "Dizer não necessariamente é dizer alguma coisa.". Há uma busca interessante pelo inarticulado nesta obra.

Parece-me que hoje há mais casos na literatura brasileira de tentar dar a voz aos seres não humanos, inclusive a elementos geológicos, como é o caso de Krakatoa de Veronica Stigger. Na primeira parte desse último livro, a voz de vulcões, do carvão, da água, do gelo, do fogo e outras ressoam depois do fim do mundo. Na obra de Stigger, a questão do Antropoceno é central: o quanto a crise trazida pelos humanos reverte em catástrofe para eles (nós) mesmos.

A proliferação de vozes no livro de Caetano Romão, embora seu cenário seja o meio rural, não se origina disso nem mesmo da devastação produzida pelo latifúndio (hoje chamado de "agronegócio"). Há uma crise do humano aqui, no entanto ela ocorre em escala individual, doméstica. Quando o irmão deixa de falar, o protagonista se pergunta se "por acaso cresceu grama sobre o seu vocabulário". 

Doméstica, talvez uterina. A crise é desencadeada pela morte da mãe, que é enterrada onde moram. De veze em quando, eles vão ao "buraco de mamãe" para varrer as folhas. O quarto dela fica intocado: o jovem gato, trazido pelo irmão mais velho, pega a dentadura da falecida e gera um pequeno incidente (curiosamente, é ele quem ganha a capa do livro). Em princípio, é a morta, e não o gato quem faz imperar a desordem:


Mamãe está tão real que até faz tremer os copos sobre a mesa. Tento fazer alguma piada para desviar a atenção, mas não dá muito certo. Simão rosna para mim e dá uma mordida no seu pão com cebola, depois de encharcar ele na canja.

Hoje ela está impossível: a louça inteira se sacode fazendo pirraça, como se houvesse um terremoto debaixo da terra.


A casa acaba se tornando um grande útero da mãe morta onde os irmãos vão regredindo, um mais seriamente do que o outro. Além disso, o irmão mais jovem deixa transparecer uma atração homoafetiva pelo mais velho (Simão), que deixa de falar e de comer. Procurando-o, depois que foge de casa, ele vai encontrando as roupas jogadas no caminho e faz este comentário: "A cueca, amassada rente à cerca, sorriu para mim fazendo promessas". O que é feito com o grão de arroz onde foi escrito o nome do protagonista (o título do livro, note-se) confirma o erotismo subjacente.

Este é um romance do incesto, mais sutil na abordagem no tema do que Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, por apostar no inarticulado para revelá-lo. Tema tabu, os textos da orelha e da quarta capa sequer o mencionam.

No útero, os dois irmãos disputam pela mãe. Quando o mais velho adoece, o protagonista, embora saiba que "só um doutor para vasculhar Simão e dizer se ele tem voz alojada no fígado", não chama ninguém e assume os cuidados paliativos.

Em certo momento, ele diz que traria, entre outras coisas improváveis, inseticidas, ratoeiras, pastas de naftalina para o irmão, doente, já "inerte no sofá", sentir-se "próspero". É evidente que ele deseja destruí-lo. A curiosa escolha do adjetivo é bastante reveladora: como se sabe, o personagem homônimo de Shakespeare em A tempestade foi destronado e exilado pelo irmão.

Um dos dados mais interessantes do romance é que essas ações monstruosas contrastam com a permanente delicadeza da linguagem do protagonista. Ele se apresenta como um jovem frágil e conta de uma festa em que sofreu deboche e foi o irmão que teve de apanhar de vários para defendê-lo. 

Um monstro sutil. No final, o delicado é que obtém a vitória de ficar sozinho na casa/útero, o que se reflete na voz: o mais difícil trava-língua é enfim dito sem gagueira nenhuma. Como este romance.


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