A indigência desse arrazoado é manifesta. Está naquele texto constitucional o princípio da ampla defesa, que, com sua natureza de princípio, irradia-se para as outras previsões do ordenamento. Li que Deisy Ventura pronunciou-se no sentido de que o caso é um "precedente assustador na América Latina", o que facilmente se verifica com a escandalosa a violação à soberania popular. Dilma Rousseff, por sinal, usou expressão parecida. Em nota, a Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe também condenou o golpe.
A suspensão do Paraguai tanto do Mercosul quanto da Unasul é correta, portanto, eis que tais organizações exigem que seus participantes adotem o regime democrático. Não é de admirar que os Estados Unidos, que tradicionalmente atacaram a democracia na América Latina, tenham logo reconhecido o governo golpista.
Ademais, o golpe vinha sendo preparado há tempos, e se relaciona com a instabilidade política daquele Estado, como se pode ver nesta análise de André Luiz Coelho. A recente intervenção do Legislativo na corte suprema daquele país parece ter sido um dos passos. Hugo Albuquerque acertadamente destacou que um dos pretextos para a derrubada do presidente foi o fato de Lugo ter assinado o segundo Protocolo de Ushuaia (celebrado em dezembbro de 2011), que fortalece o compromisso democrático do Mercosul. E as empresas multinacionais que realizavam ilegalidade transgênica no campo também se opunham ao governo.
Gostaria de destacar três pontos:
a) A conduta ainda tímida da OEA, cujo secretário-geral, Insulza, está mais ocupado em sabotar o sistema interamericano de direitos humanos. Lemos no comunicado de 23 de junho que os Estados da região testemunharam um "juicio sumario que, aunque formalmente apegado a la ley, no parece cumplir con todos los preceptos legales del derecho a la legítima defensa". O Mercosul, que tem seu compromisso democrático formalizado no Protocolo de Ushuaia, já suspendeu o Paraguai.
A OEA também possui um compromisso equivalente, a Carta Democrática Interamericana, que não vem sendo lembrada por muitos comentaristas. O curioso é que Insulza aludiu à Carta em seu primeiro discurso à frente da OEA, em 2005.
De qualquer forma, de acordo com ela, a suspensão somente poderá ocorrer depois de deliberação de no mínimo por dois terços dos Estados na Assembleia da OEA:
Artigo 21
Quando a Assembléia Geral, convocada para um período extraordinário de sessões, constatar que ocorreu a ruptura da ordem democrática num Estado membro e que as gestões diplomáticas tenham sido infrutíferas, em conformidade com a Carta da OEA tomará a decisão de suspender o referido Estado membro do exercício de seu direito de participação na OEA mediante o voto afirmativo de dois terços dos Estados membros. A suspensão entrará em vigor imediatamente.
O Estado membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o cumprimento de suas obrigações como membro da Organização, em particular em matéria de direitos humanos.
Adotada a decisão de suspender um governo, a Organização manterá suas gestões diplomáticas para o restabelecimento da democracia no Estado membro afetado.
b) O pretexto para a derrubada do presidente eleito foi o de mortes em conflito agrário. Isso mostra como essa questão continua problemática no continente - e, nesse ponto, devemos lembrar do Brasil. Metade dos ativistas ambientais assassinados na última década eram brasileiros, de acordo com estudo da Global Witness, tal é o empenho do governo federal nas questões ambiental, fundiária e das comunidades indígenas. Como o congresso brasileiro vaia ativistas ambientais mortos, não vejo como esse novo recorde brasileiro vá mudar nos próximos anos. Deve-se lembrar que também o Judiciário é peça importante na criminalização dos movimentos sociais e de jornalistas, como está ocorrendo em Belo Monte, com o recente pedido de prisão preventiva de onze militantes contrários à construção da hidrelétrica.
c) O fato de a suprema corte paraguaia ter legalizado o golpe não elide o caráter autoritário da derrubada de Lugo. As decisões das cortes têm autoridade, o que não significa que sejam sempre corretas - o plano da validade jurídica não se confunde com o da correção teórica da decisão judicial, embora se relacionem. Tal é razão pela qual existe e é relevante a teoria do direito (ela seria inútil se o direito fosse pura discrionariedade) e também por que toda decisão deve ser discutida publicamente, embora acatada. A discussão pública sobre a razoabilidade e a adequação da decisão em muito ajuda na melhoria das decisões do Judiciário - e, neste caso, na denúncia da manobra golpista realizada por esse poder e pelo Legislativo contra o Executivo.
Quanto a golpes legalizados por cortes, temos, no Brasil, o exemplo recente da ADPF n. 153, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Constituição de 1988 subordinava-se a uma emenda da Constituição de 1967; isto é, a Constituição da democratização não representaria uma ruptura com a ordem autoritária, e sim era apenas uma dócil continuação do texto constitucional da ditadura, como expliquei nesta nota. A impunidade de assassinos e torturadores, de ontem e de hoje, dependia disso.
Sobre a Carta Democrática, que foi aprovada em 11 de setembro de 2001 (nada menos), escrevi há mais de dez anos um texto ("A Carta Democrática Interamericana e a eterna novidade da democracia", com Julius Moreira Mello) que era cético. Eu apontava algo que ocorreu agora no Paraguai, o fato de
hoje, boa parte dos regimes autoritários revestir-se de uma aparência constitucional. O caso do ditador japonês do Peru, Alberto Fujimori, foi exemplar: após golpe de estado, ele foi eleito e reeleito para a Presidência do país. Aparentemente, o Congresso funcionava e o Judiciário era independente. Todavia, o ditador impunha pesado controle sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, mediante corrupção e expurgos, bem como sobre os meios de comunicação, e alterou a Constituição de forma a torná-la mais centralizadora e permitir a continuidade do autoritarismo sobre o Peru.
A Carta pode ser útil nesses casos? O projeto da Carta submetido às contribuições da sociedade civil possuía ainda mais deficiências a respeito:
Artigo 12 - Em conformidade com a cláusula democrática da Declaração de Québec, qualquer alteração ou ruptura inconstitucional da ordem democrática em um Estado membro da OEA constitui um obstáculo insuperável para a participação do Governo desse Estado nas sessões da Assembléia Geral, na Reunião de Consulta, nos Conselhos da Organização e nas conferências especializadas, e também nas comissões, nos grupos de trabalho e em outros órgãos criados dentro da OEA, sujeito ao estabelecido na Carta da OEA [, bem como do processo de Cúpulas das Américas].
Logo, a contrario sensu, uma ruptura constitucional da ordem democrática (como chegou a acontecer no Peru) escaparia ao sistema criado pela Carta... Essa falha foi objeto de contribuição da sociedade civil. A redação definitiva do artigo 19, já transcrito, e do artigo 18 bastante melhoraram a previsão original:
Artigo 18 - Quando, em um Estado membro, ocorrerem situações que possam afetar o desenvolvimento do processo político institucional democrático ou o legítimo exercício do poder, o Secretário-Geral ou o Conselho Permanente poderão, com o consentimento prévio do governo afetado, determinar visitas e outras gestões com a finalidade de fazer uma análise da situação. O Secretário-Geral encaminhará um relatório ao Conselho Permanente, o qual realizará uma avaliação coletiva da situação e, caso seja necessário, poderá adotar decisões destinadas à preservação da institucionalidade democrática e seu fortalecimento.
No entanto, pode-se duvidar que o sistema criado pela Carta Democrática tenha alguma eficácia contra as ditaduras constitucionais, que foi o caso do Peru. Devido à aparência democrática e à existência de eleições periódicas, a forma de controle internacional mais efetiva é justamente a realizada pela Comissão e pela Corte Interamericanas de Direitos Humanos. Basta lembrar da série de derrotas que a ditadura de Fujimori sofreu perante a Corte.
Outra questão que expõe os estreitos limites da Carta é o da ameaça das empresas transnacionais aos direitos humanos [...]
Nesse artigo, eu defendia que deveria haver uma articulação da Carta com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos no sentido de
prever que, em casos de desrespeito às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado-membro seria suspenso da OEA, o que seria uma forma de sanção ao descumprimento do artigo 68 do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe sobre o compromisso dos Estados de cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.
Como isso não foi feito, pode-se bem duvidar da sinceridade dos Estados membros no tocante ao fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Pelo menos nesse ponto, meu ceticismo mostrou-se correto. A propósito, a revista The Economist (que não pode ser qualificada de esquerdista) publicou neste mês interessante matéria sobre como planeja-se enfraquecer o Sistema, com o firme apoio não só da Venezuela, como do Brasil de Dilma Rousseff.