O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O golpe no Paraguai e a Carta Democrática Interamericana

Houve um golpe no Paraguai. Uma tentativa de falsificar o direito para justificar a falsificação da democracia que lá ocorreu é dizer que, apesar de o presidente Lugo não ter tido como se defender, e de nenhuma acusação ter sido provada ou mesmo definida, a constituição paraguaia não faria tais exigências.
A indigência desse arrazoado é manifesta. Está naquele texto constitucional o princípio da ampla defesa, que, com sua natureza de princípio, irradia-se para as outras previsões do ordenamento. Li que Deisy Ventura pronunciou-se no sentido de que o caso é um "precedente assustador na América Latina", o que facilmente se verifica com a escandalosa a violação à soberania popular. Dilma Rousseff, por sinal, usou expressão parecida. Em nota, a Federação de Associações de Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe também condenou o golpe.
A suspensão do Paraguai tanto do Mercosul quanto da Unasul é correta, portanto, eis que tais organizações exigem que seus participantes adotem o regime democrático. Não é de admirar que os Estados Unidos, que tradicionalmente atacaram a democracia na América Latina, tenham logo reconhecido o governo golpista.

Ademais, o golpe vinha sendo preparado há tempos, e se relaciona com a instabilidade política daquele Estado, como se pode ver nesta análise de André Luiz Coelho. A recente intervenção do Legislativo na corte suprema daquele país parece ter sido um dos passos. Hugo Albuquerque acertadamente destacou que um dos pretextos para  a derrubada do presidente foi o fato de Lugo ter assinado o segundo Protocolo de Ushuaia (celebrado em dezembbro de 2011), que fortalece o compromisso democrático do Mercosul. E as empresas multinacionais que realizavam ilegalidade transgênica no campo também se opunham ao governo.
Gostaria de destacar três pontos:

a) A conduta ainda tímida da OEA, cujo secretário-geral, Insulza, está mais ocupado em sabotar o sistema interamericano de direitos humanos. Lemos no comunicado de 23 de junho que os Estados da região testemunharam um "juicio sumario que, aunque formalmente apegado a la ley, no parece cumplir con todos los preceptos legales del derecho a la legítima defensa".  O Mercosul, que tem seu compromisso democrático formalizado no Protocolo de Ushuaia, já suspendeu o Paraguai.
A OEA também possui um compromisso equivalente, a Carta Democrática Interamericana, que não vem sendo lembrada por muitos comentaristas. O curioso é que Insulza aludiu à Carta em seu primeiro discurso à frente da OEA, em 2005.
De qualquer forma, de acordo com ela, a suspensão somente poderá ocorrer depois de deliberação de no mínimo por dois terços dos Estados na Assembleia da OEA:

Artigo 21
Quando a Assembléia Geral, convocada para um período extraordinário de sessões, constatar que ocorreu a ruptura da ordem democrática num Estado membro e que as gestões diplomáticas tenham sido infrutíferas, em conformidade com a Carta da OEA tomará a decisão de suspender o referido Estado membro do exercício de seu direito de participação na OEA mediante o voto afirmativo de dois terços dos Estados membros. A suspensão entrará em vigor imediatamente.
O Estado membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o cumprimento de suas obrigações como membro da Organização, em particular em matéria de direitos humanos.
Adotada a decisão de suspender um governo, a Organização manterá suas gestões diplomáticas para o restabelecimento da democracia no Estado membro afetado.


b) O pretexto para a derrubada do presidente eleito foi o de mortes em conflito agrário. Isso mostra como essa questão continua problemática no continente - e, nesse ponto, devemos lembrar do Brasil. Metade dos ativistas ambientais assassinados na última década eram brasileiros, de acordo com estudo da Global Witness, tal é o empenho do governo federal nas questões ambiental, fundiária e das comunidades indígenas. Como o congresso brasileiro vaia ativistas ambientais mortos, não vejo como esse novo recorde brasileiro vá mudar nos próximos anos. Deve-se lembrar que também o Judiciário é peça importante na criminalização dos movimentos sociais e de jornalistas, como está ocorrendo em Belo Monte, com o recente pedido de prisão preventiva de onze militantes contrários à construção da hidrelétrica.

c) O fato de a suprema corte paraguaia ter legalizado o golpe não elide o caráter autoritário da derrubada de Lugo. As decisões das cortes têm autoridade, o que não significa que sejam sempre corretas - o plano da validade jurídica não se confunde com o da correção teórica da decisão judicial, embora se relacionem. Tal é razão pela qual existe e é relevante a teoria do direito (ela seria inútil se o direito fosse pura discrionariedade) e também por que toda decisão deve ser discutida publicamente, embora acatada. A discussão pública sobre a razoabilidade e a adequação da decisão em muito ajuda na melhoria das decisões do Judiciário - e, neste caso, na denúncia da manobra golpista realizada por esse poder e pelo Legislativo contra o Executivo.
Quanto a golpes legalizados por  cortes, temos, no Brasil, o exemplo recente da ADPF n. 153, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Constituição de 1988 subordinava-se a uma emenda da Constituição de 1967; isto é, a Constituição da democratização não representaria uma ruptura com a ordem autoritária, e sim era apenas uma dócil continuação do texto constitucional da ditadura, como expliquei nesta nota. A impunidade de assassinos e torturadores, de ontem e de hoje, dependia disso.

Sobre a Carta Democrática, que foi aprovada em 11 de setembro de 2001 (nada menos), escrevi há mais de dez anos um texto ("A Carta Democrática Interamericana e a eterna novidade da democracia", com Julius Moreira Mello) que era cético. Eu apontava algo que ocorreu agora no Paraguai, o fato de

hoje, boa parte dos regimes autoritários revestir-se de uma aparência constitucional. O caso do ditador japonês do Peru, Alberto Fujimori, foi exemplar: após golpe de estado, ele foi eleito e reeleito para a Presidência do país. Aparentemente, o Congresso funcionava e o Judiciário era independente. Todavia, o ditador impunha pesado controle sobre os Poderes Legislativo e Judiciário, mediante corrupção e expurgos, bem como sobre os meios de comunicação, e alterou a Constituição de forma a torná-la mais centralizadora e permitir a continuidade do autoritarismo sobre o Peru.
A Carta pode ser útil nesses casos? O projeto da Carta submetido às contribuições da sociedade civil possuía ainda mais deficiências a respeito:

Artigo 12 - Em conformidade com a cláusula democrática da Declaração de Québec, qualquer alteração ou ruptura inconstitucional da ordem democrática em um Estado membro da OEA constitui um obstáculo insuperável para a participação do Governo desse Estado nas sessões da Assembléia Geral, na Reunião de Consulta, nos Conselhos da Organização e nas conferências especializadas, e também nas comissões, nos grupos de trabalho e em outros órgãos criados dentro da OEA, sujeito ao estabelecido na Carta da OEA [, bem como do processo de Cúpulas das Américas].

Logo, a contrario sensu, uma ruptura constitucional da ordem democrática (como chegou a acontecer no Peru) escaparia ao sistema criado pela Carta... Essa falha foi objeto de contribuição da sociedade civil. A redação definitiva do artigo 19, já transcrito, e do artigo 18 bastante melhoraram a previsão original:

Artigo 18 - Quando, em um Estado membro, ocorrerem situações que possam afetar o desenvolvimento do processo político institucional democrático ou o legítimo exercício do poder, o Secretário-Geral ou o Conselho Permanente poderão, com o consentimento prévio do governo afetado, determinar visitas e outras gestões com a finalidade de fazer uma análise da situação. O Secretário-Geral encaminhará um relatório ao Conselho Permanente, o qual realizará uma avaliação coletiva da situação e, caso seja necessário, poderá adotar decisões destinadas à preservação da institucionalidade democrática e seu fortalecimento.
No entanto, pode-se duvidar que o sistema criado pela Carta Democrática tenha alguma eficácia contra as ditaduras constitucionais, que foi o caso do Peru. Devido à aparência democrática e à existência de eleições periódicas, a forma de controle internacional mais efetiva é justamente a realizada pela Comissão e pela Corte Interamericanas de Direitos Humanos. Basta lembrar da série de derrotas que a ditadura de Fujimori sofreu perante a Corte.
Outra questão que expõe os estreitos limites da Carta é o da ameaça das empresas transnacionais aos direitos humanos [...]

Nesse artigo, eu defendia que deveria haver uma articulação da Carta com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos no sentido de

prever que, em casos de desrespeito às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado-membro seria suspenso da OEA, o que seria uma forma de sanção ao descumprimento do artigo 68 do Pacto de São José da Costa Rica, que dispõe sobre o compromisso dos Estados de “cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
Como isso não foi feito, pode-se bem duvidar da sinceridade dos Estados membros no tocante ao fortalecimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. 

 Pelo menos nesse ponto, meu ceticismo mostrou-se correto. A propósito, a revista The Economist (que não pode ser qualificada de esquerdista) publicou neste mês interessante matéria sobre como planeja-se enfraquecer o Sistema, com o firme apoio não só da Venezuela, como do Brasil de Dilma Rousseff.


10 comentários:

  1. Pádua,

    Parabéns pelo texto, interessante observar que a estabilidade institucional parece demasiadamente dependente da harmonia entre os poderes.

    Nessa deturpação o projeto de Montesquieu apresenta uma falha, caso a harmonia entre os poderes seja colocada acima da Constituição.

    Particularmente, nesse movimento à esquerda dos países da América Latina, até mesmo pelo funcionamento dos sistemas eleitorais o Legislativo tende a ser mais moroso às mudanças do que o Executivo.

    Assim, como aconteceu no Paraguay o Executivo apresenta-se com apoio popular, mas a maioria no Legislativo é conservadora.

    Nesse ponto, a Constituição que está acima da separação dos poderes é chamada para funcionar como álibi de um atentado ao regime democrático.

    O Legislativo em âmbito federal, estadual e municipal é muito mais moroso à mudanças progressistas.

    Basta analisar a ocupação do Congresso Nacional no Brasil, isto é, a pulverização do eleitorado dificulta a ocupação de espaços no legislativo.

    Dificilmente os militares tomarão o poder hoje, a situação é bem mais sofisticada, os militares apenas serão chamados para limparem as praças, se necessário for.

    Em relação ao judiciário, em Weimar o Tribunal Constitucional já antecipou várias teses anteriores à ascensão do Hitler, na América Latina o livro Ditadura e Repressão de Antony Pereira é indicativo de que o judiciário não está inerte nos regimes autoritários, inclusive prestando-se ao papel de perigosos avalistas.

    Ab.

    Samuel Martins.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Prezado Samuel Martins,

      agradeço o comentário, sempre historicamente informado. Os militares, porém, realizam outras tarefas também: serviram para ocupar favelas no Rio sem previsão constitucional, continuam a realizar torturas etc.
      Abraços,

      Pádua

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  2. Pois então, o realmente preocupante "golpe constitucional" ocorrido no Paraguai, torna ainda mais preocupante a constatação feita no último parágrafo da postagem. Aliás, a perplexidade é ainda MAIOR quando sabemos que uma Presidente então submetida a graves violações de direitos humanos, pessoalmente, esteja compactuando com o enfraquecimento do sistema interamericano de DH. As emendas anti-democráticas, tal como a PEC 215, me parecem encontrar o caldo de cultura ideal para prosperarem nesta exata quadra da história da AL. Outra questão que está me intrigando: rapidamente a 'deposiçao' do Paraguai do Mercosul foi aproveitada para admitir-se a Venezuela, que me parece longe de ser considerada uma democracia. Se bem entendi, o opositor ao ingresso desse país no Mercosul, era o próprio Paraguai, ainda sob Lugo. Está ficando difícil de avaliar onde querem chegar os cambiantes dirigentes latino americanos, com suas quase atitudes... abr, Adriana

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    2. Acho que a presidenta nunca esteve comprometida com o sistema interamericano de DH. Ademais, quando ela foi presa, a Corte nem mesmo existia, e sim apenas a Comissão

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    3. Me refiro apenas que para alguém que foi torturado, seria da mais alta importância, senão pelo tema em si mesmo, mas em razão da experiência pessoal, combater todas as formas de violações de DH. No tempo da prisão da Presidenta, o sistema interamericano talvez se revelasse uma farsa, dado o comprometimento dos possíveis países-membros com as violações em massa de direitos da época. Hoje, amadurecido, o sistema deveria ser valorizado e prestigiado e não boicotado, como parece acontecer. Retrocessos há, porém, por toda parte - na proteção às baleias do Atlântico Sul à ...

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    4. http://apublica.org/2012/06/dizia-o-torturador/: "Cahill se recorda do estrago causado pela fala da presidenta Dilma, ela mesma vítima de torturas durante a ditadura, sobre o tema na Universidade de Harvard em abril desse ano. Depois de palestra, a presidenta foi indagada por um aluno sobre o caso de uma prisioneira política na Venezuela. Em sua resposta, ao justificar porque não se meteria na política do outro país, Dilma mandou uma mensagem perigosa: 'Eu sei o que acontece, não tenho como impedir que em todas as delegacias do Brasil de haver tortura'.". Pragmatismo é isso aqui. Abr, Adriana

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  3. Essa história de que "sofreu tortura então é boa gente" não é bem assim Adriana.

    Já conheci pelo menos uma pessoa que é... um monstro.

    O golpe é inadmissível.

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    1. acho que Adriana não disse isso; inclusive, criticou a presidenta do Brasil, que sofreu tortura.
      Abraços, Pádua

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