Um dos fracassos ou, pelo menos, uma das decepções de certos governos de esquerda na América Latina verifica-se na oposição aos direitos humanos. Boaventura de Sousa Santos, no artigo "Oitava carta às esquerdas: As últimas trincheiras", publicado na Carta Maior, deixa bem clara a rendição oficial às grandes empreiteiras e aos grileiros: "Quem poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de associação, em nome dos imperativos do “desenvolvimento”?"
Àqueles que olham com desconfiança o intelectual português por seu engajamento na esquerda, sugiro que leiam a matéria "Chipping at the foundations: The regional justice system comes under attack from the countries whose citizens need it most", da revista The Economist, insuspeita de esquerdismo, que vai direto ao cerne da questão: os Estados que estão a atacar o Sistema Interamericano são aqueles cujos cidadãos mais necessitam do Sistema.
Kant, em À paz perpétua (já me referi a esse livro nesta nota), escreveu que chegaria uma época em que a violação dos direitos humanos em alguma parte da Terra seria sentida em todo o planeta. Estamos bem mais próximos disso do que no fim do século XVIII, pois já ocorrem manifestações internacionais contra violações de direitos humanos, e o direito acompanha lentamente essas mudanças. Talvez, por essa razão, os Estados estejam (no fundo confirmando a tese de Kant, pois reagem contra ela), contrapondo-se ao direito internacional: tendo em vista que a destruição das culturas indígenas é cada vez mais sentida como uma ofensa à humanidade, torna-se imprescindível, para a eficácia desses abusos, sabotar os instrumentos jurídicos internacionais.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos está sendo atacada pelos Estados não por causa dos defeitos do Sistema Interamericano, e sim em razão de suas virtudes. O mecanismo das medidas cautelares, que permite agilizar a proteção dos direitos humanos, é um dos alvos principais - e, por ser um avanço, foi atacado, entre outras autoridades, pela inacreditável ministra de direitos humanos do Brasil, Maria do Rosário, por ser demasiado eficiente...
(Nota: sobre a ministra, podemos lembrar de sua contraditória tendência de tratar dos direitos humanos silenciando as vítimas, ou seja, vitimizando-as mais uma vez, como ocorre com os índios no Brasil, e voltou a acontecer recentemente com as Mães de Maio.)
O decreto legislativo nº 788, de 13 de julho de 2005, sem o cumprimento da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, previu:
Art. 1º É autorizado o Poder Executivo a implantar o Aproveitamento Hidroelétrico Belo Monte no trecho do Rio Xingu, denominado “Volta Grande do Xingu”, localizado no Estado do Pará, a ser desenvolvido após estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e outros que julgar necessários.A consulta obrigatória às comunidades indígenas que poderiam ser afetadas ficou para depois:
A má técnica legislativa, usual no Congresso Nacional brasileiro dos últimos tempos, resplandece no parágrafo único (ele diz apenas que o direito aplicável deverá ser seguido, como se o princípio da legalidade já não existisse no direito brasileiro).Art. 2º Os estudos referidos no art. 1º deste Decreto Legislativo deverão abranger, dentre outros, os seguintes:I - Estudo de Impacto Ambiental - EIA;II - Relatório de Impacto Ambiental - Rima;III - Avaliação Ambiental Integrada - AAI da bacia do Rio Xingu; eIV - estudo de natureza antropológica, atinente às comunidades indígenas localizadas na área sob influência do empreendimento, devendo, nos termos do § 3º do art. 231 da Constituição Federal, ser ouvidas as comunidades afetadas.Parágrafo único. Os estudos referidos no caput deste artigo, com a participação do Estado do Pará, em que se localiza a hidroelétrica, deverão ser elaborados na forma da legislação aplicável à matéria.
Até mesmo esse decreto legislativo, apesar de não cumprir realmente a Convenção da OIT, prevê que devem ser "ouvidas" as comunidades interessadas. Isso não foi feito, como se sabe, o que justificou o deferimento, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, do pedido de suspensão das obras de Belo Monte pelo Ministério Público Federal do Pará.
Há pouco, o Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática do seu presidente, Ministro Ayres Britto, cujo histórico reacionário em relação ao campo é salientado neste artigo de Claudio Angelo (agradeço a Idelber Avelar por ter chamado a atenção para o texto), deferiu pedido da Advocacia-Geral da União para a retomada das obras. Também escreverei sobre a decisão, mas em outra perspectiva.
Se tal é a Corte mais alta do Judiciário brasileiro, a necessidade de instrumentos internacionais efetivos somente se ressalta ainda mais, e explica porque outros Estados, além do Brasil, cujas políticas oficiais marcam-se pelo cumprimento apenas seletivo dos direitos humanos, estejam com ele nesse ataque. A postura da Venezuela, por meio do governo autocrático de Hugo Chávez, em deixar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é oportuna para um Estado que progressivamente cerceia esses direitos.
No entanto, como bem dizia Kant em À paz perpétua, os Estados irão, hipocritamente, negar (daí o papel do princípio da publicidade para a garantia do direito público) que estão a agir contra a validade dos direitos humanos, por meio das máximas sofísticas. Entre elas, está a si fecisti, nega, abundantemente empregada nos atuais ataques contra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Nesse jogo hipócrita, em um contexto de ataque generalizado aos povos indígenas nas Américas (leiam este alerta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos), no Chile, no Equador, na Argentina, na Bolívia, no Brasil, que jamais ocorre sem a concomitante agressão ao Direito Internacional Ambiental, foi escrita há poucas semanas mais uma página desmoralizadora da história do Ministério das Relações Exteriores.
Deisy Ventura, Flávia Piovesan e Juana Kweitel publicaram na seção Tendências e debates da Folha de S.Paulo, no dia 7 de agosto de 2012, o artigo "Sistema Interamericano sob forte ataque", que enfatizou o ataque diplomático do Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos: "[...] quando a comissão fez recomendações no caso da hidroelétrica de Belo Monte, o Brasil não perdoou. Contrariado, desqualificou publicamente a comissão, retirou seu embaixador junto à OEA, decidiu não pagar a sua quota por meses e desistiu da candidatura de um membro brasileiro para a comissão".
O artigo em contraponto da seção foi assinado por um dos Embaixadores Patriota (o outro, que é seu irmão, é o Chanceler - o Itamaraty mantém a respeitosa tradição de ser uma "casa de família"), Dois pesos, duas medidas. O absurdo jurídico e histórico do artigo é manifesto, e devo apontá-los, no meu dever intelectual de professor de direito.
Esse Patriota escreve "Quando proliferavam ditaduras na região, a CIDH se levantava em prol dos presos políticos destituídos de seus direitos e torturados." Ao contrário, a Comissão pouco pôde fazer, tendo em vista que a OEA, manipulada pelos interesses geopolíticos dos EUA e das ditaduras aliadas ainda na Guerra Fria, não tinha interesse político em se contrapor às políticas de violações de direitos humanos efetivadas por essas ditaduras, entre elas o Brasil. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, por sinal, empenhou-se eficazmente para que a frase desse Embaixador se tornasse uma falsidade história.
Uma exceção foi a ditadura argentina, que permitiu a visita da Comissão (o que o Brasil dessa época jamais permitiu) - como lembro neste artigo,"Migração na ditadura militar brasileira: desejados e indesejados perante a doutrina de segurança internacional", apresentado no dia 24 deste mês no Segundo Congresso da Sociedade Latinoamericana para o Direito Internacional.
O artigo desse Patriota possui, entre outras, esta passagem, de uma brutalidade que desafia a verossimilhança: "Não é razoável que a comissão emita medidas cautelares com o intuito, por exemplo, de suspender a construção de hidrelétricas. Ela deve se ater a questões precípuas de direitos humanos, pronunciando-se por meio de pareceres recomendatórios e deixando que a corte assuma suas responsabilidades judiciais em casos que o justifiquem."
O Embaixador, em uma aparente alinhamento oficial às grandes empreiteiras, acha que construção de hidrelétricas nada têm que ver com direitos humanos e, por isso, a legislação concernente não serviria para o caso. Imagino, piamente, duas explicações para a tese brutal: ou ele acha que não há pessoas na região de Belo Monte (e, assim, reedita o costumeiro - e oportuno para o Estado - esquecimento de que há indígenas no Brasil), ou ele crê que os índios não são humanos.
Nos dois casos, o horizonte jurídico-político do arrazoado e da prática governistas é o genocídio.
No Congresso da SLADI que mencionei, foi apresentado, por Raísa Cetra, um trabalho muito mais interessante do que o meu, escrito com já mencionada e grande internacionalista Deisy Ventura, "A funcionalidade do Sistema Intermericano de Direitos Humanos: os casos de violência no campo levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos". Nesse trabalho, que aborda a persecução ilegal sofrida pelo MST, bem como a violência causada pelo agrobanditismo no Brasil (em geral travestido de agronegócio), temos esta passagem com que concluo esta nota:
[...] as recentes deposições sumárias dos presidentes de Honduras e do Paraguai comprovam que medidas como as “cautelares” da CmIDH são mais necessárias do que nunca em nosso continente. A Presidenta Dilma Roussef é testemunha histórica do que significa a falta de um órgão internacional, especializado em direitos humanos, capaz de reagir prontamente a graves violações. Na época da ditadura civil-militar brasileira, a debilidade do SIDH em formação, somada à parcialidade de uma OEA refém da guerra fria, ocasionaram uma omissão histórica da comunidade internacional diante da barbárie que grassava em nosso país.
Não encontro mais palavras. Quem foi vítima nos anos 1970 agora é algoz. E espera gozar da mesma impunidade internacional de que ainda estão a gozar, tendo em vista a fraqueza da justiça de transição no Brasil, os algozes do passado recente.
Pádua,
ResponderExcluirTd bem?
Excelente o seu texto, é interessante observar essa ambivalência do STF, que ora tem posições liberais ora retrógradas,
As posições liberais, como anencefalia e união homoafetiva, são demasiadamente liberais, pois ignoram a melhor herança do liberalismo político, que é o controle do poder.
Assim, quando estão em análise questões referentes a direitos individuais o STF consegue apresentar-se como progresista, todavia, quando está em tela questão de cunho político, quando torna-se mais necessária a sua função constitucional, de limitação do poder do Estado, o STF não o faz,
Função constitucional no sentido de constituir um Estado Democrático de Direito, apenas em um ensino jurídico de baixa qualidade como ocorrre no Brasil para se apreender que estamos sob tal condição, sendo que nem a Suprema Corte leva a Constituição Federal a sério.
Me lembro da ADPF. 153, quando, sem dúvida, tinhamos uma capítulo da transição democrática a ser escrito, e qual foi a posição do STF?
Mais uma vez, estando no polo oposto o Estado, ou o Governo, o mesmo se limita a decisões técnicas, omite-se em sua atribuições republicanas, e desperdiça a oportunidade de colocar o Estado Brasileiro em outro patamar jurídico-político.
Na realidade antes de questionar o STF, temos que questionar o papel desempenhado pela AGU, que transforma-se naquela assessoria jurídica capaz de fazer de tudo para que o patrão de plantão seja bem-sucedido, sendo que a sua função institucional é a representação do Poder Executivo, enquanto poder da república, e não do poder governamental que ocupa o executivo por quatro anos.
Se o titular do Poder Executivo descumpre a Constituição Federal às escâncaras a AGU também deve acompanhá-lo?
Sobre a Ministra dos Direitos Humanos eu vou me abster de comentar para não ser deselegante com o espaço de discussão.
Ab.Samuel Martins.
Prezado Samuel Martins,
Excluirtudo bem. A AGU parece-me agir como fazem usualmente as procuradorias, que se portam como órgãos de defesa e ataque dos governos contra a sociedade - não por acaso, essas funções são, em regra, muito bem remuneradas.
Enquanto isso, a Ministra continua merecendo toda confiança da Presidência da República.
Abraços, Pádua.
Enfim a postagem esperada. Está tudo aí. Oportunidade minha de lembrar um tuíte de Eduardo Viveiros de Castro colocando em questão a relação algoz e vítima. Faz tempo, e não me lembro bem o que dizia, mas relacionado ao tema deste escrito aqui quanto aos anos 70, dos violados passarem a violadores. Pois naquela ocasião, como nesta, imediatamente me lembrei do filme de Liliana Cavani, "O porteiro da noite", esplendidamente tratando dessa sombra que é ter passado pela mais drástica abjeção, e dela não poder se separar, pelo bem ou pelo mal, nunca mais... abr, Adriana
ResponderExcluirPrezada Adriana, agradeço a indicação do filme, que não conheço. Abraços, Pádua.
ExcluirOutra coisa: também gostaria de ler o que Eduardo Viveiros de Castro escreverá sobre o estado atual da questão. Abraços, Pádua.
ExcluirSó passei pra dizer que "O Porteiro da Noite" é filme imperdível. Barra pesada,mas imperdível. Charlotte Rampling ...
ResponderExcluirObrigado, Adriana e Renata, pela indicação cinematográfica. Sou cheio de lacunas nessa área...
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