Talvez alguns não o saibam, porém Gerald Thomas teve sucessos de
público e de crítica no teatro brasileiro (um exemplo foi “Um circo de rins e fígados”,
com Marco Nanini), e escândalos também. Um momento para mim inesquecível foi a
encenação da ópera Tristão e Isolda (Tristan und Isolde), do compositor alemão Richard Wagner, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em agosto de 2003.
A concepção era fascinante: ela assumia a neurose do casal
protagonista e transformou o filtro do amor em uma droga contemporânea, a
cocaína (que entusiasmou Freud por breve período), o que me pareceu uma feliz tentativa de apresentar, inclusive
visualmente (o pó era atirado no ar em momentos-chave da partitura) o tremendo
mal-estar que Wagner cria desde o prelúdio, com as indefinições tonais e a
melodia infinita. Esse prelúdio, de que provém tanto da música do século XX, ainda é capaz de produzir perturbação nos ouvintes, principalmente naqueles que só conhecem o repertório dos séculos XVIII e XIX.
A estreia dessa obra foi mal recebida - e mesmo Wagner chegou a dizer que somente as apresentações medíocres salvariam-no. As grandes execuções, que assumissem toda a radicalidade daquele teatro e daquela música, não seriam aceitas pelo público da época. Wagner estava, como outros poucos homens do teatro do século XIX (Victor Hugo, certamente, também Büchner e poucos outros), criando contra o gosto corrente do público - e acertou nessa aposta contra o consenso.
A estreia dessa obra foi mal recebida - e mesmo Wagner chegou a dizer que somente as apresentações medíocres salvariam-no. As grandes execuções, que assumissem toda a radicalidade daquele teatro e daquela música, não seriam aceitas pelo público da época. Wagner estava, como outros poucos homens do teatro do século XIX (Victor Hugo, certamente, também Büchner e poucos outros), criando contra o gosto corrente do público - e acertou nessa aposta contra o consenso.
Penso que encenar esta ópera de Wagner de forma apaziguadora é trair profundamente o compositor (Nietzsche, em Ecce homo, afirmou que, em Tristão, Wagner encontrou seu insuperável e recuou com Os Mestres Cantores de Nurembergue e O Anel do Nibelungo). Gerald Thomas resolveu não facilitar para ninguém. Boa parte da ação passava-se em um consultório em Copacabana,
e o psicanalista, um papel mudo introduzido pelo diretor cênico, era Sigmund
Freud de Vasconcellos... Dessa forma, Gerald Thomas ressaltava a universalidade
da história, que poderia se passar no Rio de Janeiro então (digamos que ele
respeitava mais o caráter arquetípico do libreto do que os puristas wagnerianos
que gostam de ver um dragão de brinquedo cuspindo fogo no Siegfried...), se encenada daquela
forma.
A presença de Freud (mesmo abrasileirado), além de ressaltar
as leituras psicanalíticas da obra de Wagner, que possuem muita pertinência,
gerou outra tensão, brilhante: inserir o judaísmo na obra de um autor
abertamente antissemita, que atacou Mendelssohn e Meyerbeer, não reconheceu sua
dívida com Heine.... Apesar da propaganda racista feita pelo compositor, vários
dos principais intérpretes de Wagner foram e são judeus, como hoje Daniel
Barenboim, e, no passado, Alexander Kipnis e Otto Klemperer, para citar apenas
dois dos músicos que tiveram de deixar a Europa depois da barbárie alemã nos
anos 1930 e 1940. No próprio tempo de Wagner, devemos lembrar de Lili Lehmann,
que foi a primeira Isolda nos Estados Unidos e cantou uma das ninfas do Reno na
estreia do Anel do Nibelungo. Devemos lembrar também do maestro Hermann Levi.
O grande regente tornou-se indispensável para reger a
complexa música de Wagner. Quando o compositor criou sua última obra para o
palco, Parsifal, que ele considerava “sagrada”, Levi era o único intérprete que ele
julgava à altura de reger a difícil peça, seu canto de cisne. Mas exigiu que
Levi se batizasse para não “profanar” sua obra!
O maestro sentiu-se, naturalmente, muito ofendido e
recusou-se a regê-la. Wagner teve de pedir desculpas e voltar atrás, o que não foi um ato de tolerância, como lembra Gutman (na biografia Richard Wagner: The Man, His Mind and His Music), mas uma capitulação.
Todos sabem que o ditador alemão nos anos 1930 e 1940, além
de adorar Wagner, comungava do mesmo antissemitismo do compositor. Por isso,
foi interessantíssimo ver o que Gerald Thomas concebeu para a montagem de
Tristão e Isolda. Especialmente no segundo ato, quando Tristão decide ir para o
exílio com Isolda (o que não dá certo). Vários judeus hassídicos, por trás de
uma cortina (que poderia ser uma grade) assistiam à cena, o que, para mim, evocava
aos refugiados. Um personagem wagneriano que sofreria o mesmo desterro que
Wagner desejava para os judeus.
Plasticamente, era tudo muito interessante: no prelúdio, em
um fortíssimo da orquestra, uma atriz que fazia um papel mudo de paciente de
Freud, no consultório, jogava pó branco no ar – o efeito era muito belo. No
segundo ato, quando a paixão de Tristão e Isolda se consuma, o consultório
estava todo revirado, o que se coadunava com o clima da música e as palavras de
Isolda, já entregue ao delírio do amor. Nunca me esqueço que, num efeito
dramático surpreendente, Tristão surgiu de trás de um móvel caído – ele estava
lá o tempo todo, e também entregue ao delírio.
No terceiro ato, contudo, o conceito fracassava. A tentativa
de criticar o mundo da moda não se integrava aos atos anteriores, tampouco à
música, nem mesmo conseguia constituir um drama autônomo. E, para o Liebestod,
ou o que mais propriamente se chama de iluminação de Isolda, o diretor sucumbiu
à solução mais batida, mais óbvia: simplesmente mergulhar a cantora na luz. A
imaginação cênica falhou no terceiro ato.
A execução musical foi, de fato, uma execução, mas no mau
sentido. O regente Silvio Barbato tentava controlar a música, o que lhe era
difícil tecnicamente; as dificuldades não deixavam sobrar espaço algum para a
interpretação. A soprano poderia, no máximo, cantar Mimi; ficou o tempo todo
flutuando vocalmente, sem jamais assumir as frases dramáticas de Isolda. A
mezzo-soprano era inexistente, com um vibrato comparável às ondas que quase
submergiram o navio no terceiro ato da história. O jovem baixo também não
estava à altura dos acontecimentos (e fez-me lembrar do conselho de Flagstad
aos jovens cantores: “Leave Wagner alone”). Kurwenal foi entregue a um barítono
brasileiro de muito escassos recursos vocais, com estranho timbre que se
assemelha ao grito, mesmo quando tenta cantar piano (vi recentemente um Don
Pasquale com ele, foi realmente terrível; se tivesse cantado em um teatro com
alguma tradição, a vaia seria certa). Todo o combate com Melot no terceiro ato
foi cortado (sim, a ópera foi mutilada), o que, para mim, se deveu
provavelmente ao fato de que seria muito improvável que aquele barítono
conseguisse cantar aquela cena. Dessa forma, Kurwenal apenas desmaiou no palco,
morrendo por razão nenhuma...
(A propósito, para ler uma apreciação bem oposta à minha, mas de alguém que não conhecia a ópera, pois nem mesmo percebeu a mutilação musical da obra, indico esta crítica: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030818p2292.htm)
(A propósito, para ler uma apreciação bem oposta à minha, mas de alguém que não conhecia a ópera, pois nem mesmo percebeu a mutilação musical da obra, indico esta crítica: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030818p2292.htm)
Não fui embora, apesar da má qualidade da execução musical,
por causa do tenor, John Charles Pierce. É raro um cantor que consiga fazer jus ao árduo papel do
Tristão. Por causa dele, esperando o que ele faria no terceiro ato, fui até o
fim – e não me decepcionei.
Fechadas as cortinas, nunca senti tanto constrangimento. O
público aplaudiu com fervor os maus cantores, inclusive a Isolda
que apenas cantarolou o papel (e, sem muita ética, apontou com desdém para o
cenário nos cumprimentos) e o fraco maestro. O tenor merecia uma ovação cinco
vezes maior.
Enfim, Gerald Thomas apareceu, com os apetrechos da
Brünnhilde, pronto para defender-se... Aplaudi, mas não percebi ninguém mais
fazendo isso. Nunca tinha visto uma vaia tão monumental – era uma vaia que se
via, e não apenas se ouvia.
Eu estava na galeria, não consegui ouvir os xingamentos
antissemitas que parte do público na plateia vociferava, segundo o diretor, que
se refere brevemente ao episódio aqui, explicando que se tratava de membros do
International Richard Wagner Forum: http://www.nytimes.com/2003/11/11/arts/the-case-of-the-operatic-moon-in-rio-a-drawer-dropping-director-is-due-in-court.html
Como não queria ver o artista sendo destroçado, desci as
escadas daquele Teatro, que estava escrevendo uma das páginas mais constrangedoras
de sua história.
Subitamente, a vaia tornou-se ainda mais forte: parecia
sólida, um muro no ar. Eu já estava no nível da plateia, entrei e vi a
bunda de Gerald Thomas desnuda. Foi a resposta do artista...
A vergonha do Rio de Janeiro, que se mostrou extremamente
provinciana e tacanha em termos musicais, não pararia aí. O secretário de
segurança do governo Garotinho, Álvaro Lins, renomado, além de sua controversa atuação na administração estadual, por ter sido, em 2008, cassado por acusações de
formação de quadrilha, facilitação de contrabando, lavagem de dinheiro e
corrupção ativa (http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,stj-mantem-cassacao-de-ex-deputado-alvaro-lins,597241,0.htm),
apresentou queixa contra o diretor por ato obsceno em razão da bunda, e por
simulação de masturbação (http://www2.glb.com.br/manchetes/noticias.asp?639512).
O Ministério Público estadual aceitou-a, em momento inolvidável dessa
instituição, e a promotora de justiça Gisela Alexandre Brandão propôs que o
diretor reconhecesse sua “culpa” (http://www.conjur.com.br/2003-nov-11/audiencia_gerald_thomas_somente_ano_vem).
A justiça fluminense, em outro momento de provincianismo, não concedeu habeas-corpus para o diretor, permitindo que a ação prosseguisse. A ação penal chegou ao Supremo Tribunal Federal. Gerald
Thomas impetrou habeas-corpus para trancá-lo e, finalmente, obteve êxito.Mas ele não foi fácil:Carlos Velloso e aquela ministra bastante conservadora,
Ellen Gracie Northfleet, indeferiam o pedido. Celso de Mello e Gilmar Mendes
votaram a favor do paciente. Com o empate (Joaquim Barbosa, que não ouviu o relatório, não votou), a ação foi trancada. Tratou-se do Habeas-Corpus 83.996-7 RJ (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=384865), julgado pela Segunda Truma do STF em 17 de agosto de 2004. O relator foi Carlos Velloso; como acabou vencido, Gilmar Mendes escreveu o acórdão. Ele havia pedido vista do processo e proferiu o melhor voto.
O relator argumentou que não seria possível, na sede do habeas-corpus, verificar se a conduta do diretor havia sido atípica; aparentemente, a ação se enquadraria no tipo do ato obsceno e, por isso, a ação penal deveria prosseguir.
Gilmar Mendes (que tem algumas posições progressistas, o que não é o caso destas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/07/terceirizacao-e-terror-stf-e-o-solo.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/11/antigo-regime-e-magistratura-no-brasil_14.html) acolheu a tese da defesa de que o diretor não estava agindo com o fim de auferir prazer sexual: "ainda que se cuide, talvez, de manifestação deseducada e de extremo mau gosto, tudo está a indicar um protesto ou uma reação - provavelmente grosseira - contra o público." (grifo do original).
Ademais, dever-se-ia lembrar do contexto do acontecimento: na própria ópera havia ocorrido simulação de masturbação e "Estava-se diante de um público adulto, às duas da amanhã, no Estado do Rio de Janeiro."
Não se poderia sustentar, portanto, que a conduta ofendeu o pudor público.
Ainda mais importante foi lembrar que não se tratava de questão que deveria ser trazida para o direito penal. Escreveu ainda Gilmar Mendes: "a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, sendo dispensável, por isso, o enquadramento penal." Em caso contrário, a própria liberdade estaria ameaçada (por sinal, essa ameaça é uma das consequências do populismo penal).
O caso, de fato, era político, muito além da pequena política das autoridades do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público contra o diretor, a quem os artistas (e o público, não no sentido apenas artístico) devem agradecer por ter rejeitado o acordo de "reconhecimento da culpa". Ele teria sido mais um passo perigoso, fomentado pelo governo conservador de Garotinho, contra a liberdade em nome de certos valores morais.
Depois desse voto, Ellen Gracie fez uma estranha consideração, na qual concordava com Gilmar Mendes, porém manteve o voto contra o paciente, pois ele mostrou desprezo do público, enquanto uma figura "bem mais qualificada" como Victor Hugo (na ocasião do tumulto provocado pela peça Hernani) adotou "postura de humildade"... Note-se, nesta tentativa, felizmente frustrada, de usar o processo como sermão, o incômodo moral da jurista conservadora.
Esse incômodo é gerado pela parte mais importante da obra de Gerald Thomas como diretor e autor, e é um dos responsáveis pela sua força. No entanto, creio que uma leitura crítica da trajetória desse artista devesse verificar também os elementos conservadores em sua arte. Não sou nem de longe a pessoa mais indicada para analisá-los (vi apenas algumas de suas montagens), mas eles existem, recobertos pelo brilhantismo das encenações, e provavelmente exigem esse brilho. Mesmo que ele seja a luz de um lugar-comum, à semelhança do final de Tristão e Isolda no Rio de Janeiro.
O relator argumentou que não seria possível, na sede do habeas-corpus, verificar se a conduta do diretor havia sido atípica; aparentemente, a ação se enquadraria no tipo do ato obsceno e, por isso, a ação penal deveria prosseguir.
Gilmar Mendes (que tem algumas posições progressistas, o que não é o caso destas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/07/terceirizacao-e-terror-stf-e-o-solo.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/11/antigo-regime-e-magistratura-no-brasil_14.html) acolheu a tese da defesa de que o diretor não estava agindo com o fim de auferir prazer sexual: "ainda que se cuide, talvez, de manifestação deseducada e de extremo mau gosto, tudo está a indicar um protesto ou uma reação - provavelmente grosseira - contra o público." (grifo do original).
Ademais, dever-se-ia lembrar do contexto do acontecimento: na própria ópera havia ocorrido simulação de masturbação e "Estava-se diante de um público adulto, às duas da amanhã, no Estado do Rio de Janeiro."
Não se poderia sustentar, portanto, que a conduta ofendeu o pudor público.
Ainda mais importante foi lembrar que não se tratava de questão que deveria ser trazida para o direito penal. Escreveu ainda Gilmar Mendes: "a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, sendo dispensável, por isso, o enquadramento penal." Em caso contrário, a própria liberdade estaria ameaçada (por sinal, essa ameaça é uma das consequências do populismo penal).
O caso, de fato, era político, muito além da pequena política das autoridades do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público contra o diretor, a quem os artistas (e o público, não no sentido apenas artístico) devem agradecer por ter rejeitado o acordo de "reconhecimento da culpa". Ele teria sido mais um passo perigoso, fomentado pelo governo conservador de Garotinho, contra a liberdade em nome de certos valores morais.
Depois desse voto, Ellen Gracie fez uma estranha consideração, na qual concordava com Gilmar Mendes, porém manteve o voto contra o paciente, pois ele mostrou desprezo do público, enquanto uma figura "bem mais qualificada" como Victor Hugo (na ocasião do tumulto provocado pela peça Hernani) adotou "postura de humildade"... Note-se, nesta tentativa, felizmente frustrada, de usar o processo como sermão, o incômodo moral da jurista conservadora.
Esse incômodo é gerado pela parte mais importante da obra de Gerald Thomas como diretor e autor, e é um dos responsáveis pela sua força. No entanto, creio que uma leitura crítica da trajetória desse artista devesse verificar também os elementos conservadores em sua arte. Não sou nem de longe a pessoa mais indicada para analisá-los (vi apenas algumas de suas montagens), mas eles existem, recobertos pelo brilhantismo das encenações, e provavelmente exigem esse brilho. Mesmo que ele seja a luz de um lugar-comum, à semelhança do final de Tristão e Isolda no Rio de Janeiro.