"Não tenho dúvida, adultério é para os fracos. Os fortes se separam." (p. 218).
Divórcio (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013), o último romance de Ricardo Lísias, é, de fato, um livro forte. Ele possui um apelo emocional menor do que
O céu dos suicidas (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012), pois, mais reflexivo, convoca menos o público a se identificar com o narrador. Creio que, nesse aspecto, o livro novo
supera o anterior, mas entendo que outros leitores possam preferir o de 2012 por essa mesma razão.
Acompanho todas as publicações desse escritor, que conheci pessoalmente em 2004, se não me engano. É um dos muito poucos que me interessam entre os ficcionistas brasileiros contemporâneos, vasta categoria com alguns estranhos membros que preferem o turismo à literatura, brigam para conseguir subsídios para viagens e, falhando, criticam os que são escolhidos para dar palestras no exterior.
Li os contos recentes, mencionados neste romance, o homônimo
Divórcio (que pode ser encontrado aqui:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-62/ficcao/divorcio),
Meus três Marcelos e
A corrida (
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-65/questoes-afeto-desportivas/a-corrida). Eles são geniais, nada menos, pelo inusitado do corpo sem pele (e as dificuldades decorrentes do contato com o mundo) e pela concentração do texto. No romance, há uma retomada dessas imagens:
A carne viva que tomava conta do meu corpo latejava e, muitas vezes, minha vista escurecia. Na rua, acaba sendo até perigoso. Então, comecei a contar o número de pessoas em um cartaz, quantos carros paravam para admirar um determinado travesti a cada dez minutos, os carros da polícia que passavam diante de mim fazendo barulho e tudo o que pudesse ser quantificado.
Enquanto contava o número de taxistas carecas em uma esquina, lembrei que no primeiro conto que escrevi na vida, há mais de dez anos, a personagem também repassava na cabeça uma série de coisas para tentar manter a lucidez. Estou de fato dentro de um texto que escrevi. O ar desapareceu. Encostei-me em um muro. O reboque arranhou meu corpo sem pele. Uma folha de papel não é tão áspera. (p. 79-80)
No entanto, creio que o romance não é tão bom quanto os contos porque o texto, mais dispersivo, não atinge uma concentração equivalente. Não creio, apesar disso, que ele seja uma simples diluição daqueles textos, pois deixa diversos fios novos para serem apanhados, até mais do que consegue amarrar (o próprio narrador destaca esse problema). Há diversos pontos: um deles é o paralelo com o filme de Lars von Trier,
Melancolia, filme que concorreu na edição do Festival de Cannes que foi decisiva para a história narrada neste livro. O narrador tanto se identifica com o cineasta contra os clichês, como afirma, à página 123, querer construir a cabana mágica que resistiria contra o fim do mundo.
A personagem de cinema que constrói a cabana é também a que comete o adultério um pouco mais rápido do que a ex-esposa do livro, pois o faz na própria noite de núpcias. O paralelo entre o fim do casamento e a catástrofe, presente naquele filme, é central para o romance de Lísias. Em ambos, há uma crítica contra elites supostamente sofisticadas. No entanto, quem constrói a cabana contra a catástrofe, no romance de Ricardo Lísias, é quem sofreu o adultério.
Ou teria sofrido? No romance, temos a história de um divórcio causado pelo fato de o marido (o narrador) ter encontrado um diário da esposa, depois de quatro meses de casamento, que revelam não só um adultério já realizado e a antevisão de diversos outros, como uma personalidade oculta que lhe era totalmente desconhecida.
Temos aqui um
Dom Casmurro elevado a milésimo grau na questão do ponto de vista do texto: apenas o narrador/marido e, que, além do mais, tem o mesmo nome do autor. A voz da esposa somente aparece nos supostos trechos do diário (que ela mesma acabaria queimando, sobrando apenas a cópia do ex-marido, que, assim, diz sentir-se livre para usá-lo na ficção) que, ademais, em uma típica estratégia de ficionista, vão sendo apresentados em excertos cada vez mais completos. Ela é uma ficção dele, como afirma que dirá perante os tribunais: "Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance." (p. 128). De fato, um romance que está sendo escrito enquanto o lemos, e nisso está a principal metalinguagem do livro, mais sutil do que o balanço que o narrador faz do romance nos três últimos capítulos/quilômetros do livro, que habilmente despista o leitor, induzido a ficar em apenas em um dos níveis da metalinguagem.
O livro, em algumas de suas tiradas contra o jornalismo, avisa que não devemos confiar em personagens com uma só fonte: "[...] o Garganta Profunda serviu para que os jornalistas fossem atrás de provas materiais. Aqui no Brasil, apenas um
off já é suficiente. Um dedo-duro fala alguma coisa e no dia seguinte uma notícia é publicada." (p. 216). Sutilmente, Ricardo Lísias questiona o estatuto de verdade desta própria narrativa, em que apenas uma voz comparece. Imagino que alguns desconfiarão, ao lerem na contracapa que o livro é uma autoficção, que o segundo radical (a ficção) não é verdadeiro, e talvez procurem
Divórcio pelo que possa ter de literatura
à clef (os professores universitários que transam com alunos enquanto as esposas dão aula, os pervertidos que são donos de jornais e contratam colunistas fascistas). Todavia, Ricardo Lísias, em um nível mais fundo, faz-nos desconfiar do primeiro radical (o "auto" e, enfim, do eu), o que é muito mais interessante literariamente.
O livro brinca todo o tempo com esse jogo ambíguo da ficção e da realidade, na realidade constitutivo de toda literatura: lemos, no mesmo parágrafo, a frase "Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos." (p. 190), e um agradecimento a três pessoas que, de fato, existem e são próximas de Lísias.
A ex-esposa é uma ficção do narrador, ele mesmo ficcional; entendemos que ele se sinta estar "dentro de um texto" seu, e que ele diga que quase se tornou um personagem dela: "Em um ano de namoro, ela tinha substituído todas as minhas roupas." (p. 48). Mais adiante, lemos que o próprio corpo do narrador foi refeito, ao longo dos quilômetros percorridos no texto, pela literatura. Nesse sentido, pode-se dizer que, no romance, a personagem da adúltera e de quem constrói a cabana contra a catástrofe, embora aparentemente estejam separados, são, como no filme de Lars von Trier, a mesma pessoa. E o autor é a
persona non grata em um livro que aposta na literatura contra outros discursos que disputam o mundo; neste livro, esses outros discursos são principalmente os do jornalismo e do direito. Trata-se de uma tarefa política que ele, explicitamente, assume neste romance: "O mundo real não oferece mais bases sólidas" (p. 198) e "A arte é uma possibilidade de resistência" (p. 199). Algo bem inusitado para romances sobre separações, e que dá a medida da força desta ficção.
Com isso, é interessante encontrar paralelos entre as duas figuras, a adúltera e o marido traído: a lista de defeitos e qualidades, que a ex-esposa faz com um espírito muito superficial, acaba servindo, para o narrador, até mesmo de estrutura para o capítulo 13. E aparece no próprio narrador o que talvez seja o principal defeito daquela mulher: o clichê. "Gente bem-sucedida tirou pós-doutorado em clichê." (p. 103). Algumas passagens do diário da ex-esposa são muito ricas nisso:
[...] o cara falou quase todo o tempo inteiro dos livros do Ricardo e das faculdades brasileiras e americanas. Quando chegou o prato, ele pegou o garfo errado e o garçom teve que corrigir. A pessoa consegue ser professor em Princeton mas não sabe usar talher em um restaurante um pouco melhor.
[...] São pessoas rígidas e fechadas. Elas vivem em um mundo próprio. A verdade é que estou em lua de mel com um autista e hoje conheci o amigo de meu marido, outro autista, esse professor de Princeton. [...]
[...] Não quero ter que viver no meio de livros e depois não saber pegar o garfo direito. [...]
Esses caras que leram demais são muito fechados. Meu marido é muito esquisito. O Ricardo reclamou da fila da Broadway. Ele vai ficar dez dias em NY e não vai ver um espetáculo da Broadway! Ele leu muito mas não sabe que pela Broadway passaram os grandes atores que começaram a vida lá. Ele quer andar na rua! O Ricardo leu muito mas não sabe nada. Meu marido e esses amigos idiotas que ele anda. Sou a maior jornalista de cultura do Brasil, a cultura para mim é vida, é como o jornalismo, é aventura. (p. 72-73)
Aqui, há um problema do romance. Às vezes, quando Ricardo Lísias depende mais de uma análise crítica do que da estrutura da trama, o texto sofre com um certo unilateralismo: "Não é à toa que os estrangeiros nos enxergam como um país lúbrico e burro." (p. 158); "Sempre me irritaram os romancistas que pretensamente 'retratariam o ponto de vista do outro'." (p. 184); quando recai nesse tipo de superficialidade,
Divórcio não consegue cumprir sua proposta política.
Tais momentos de crítica de tom panfletário estão em mais de um de seus livros. Porém, nos melhores momentos,
Divórcio realiza a literatura como política e como cura: da literatura o narrador constrói sua nova pele, na corrida (cada capítulo, um quilômetro) que lhe devolve o corpo.
Nessa trajetória de convalescença, há vários fios deixados que talvez Ricardo Lísias, o romancista, poderia explorar em novos textos: destaco a questão da "pele ferida" (p. 31), que une a figura do avô com a viagem ao Chile; o Chile evoca o autoritarismo, tema que reflete mais adiante nas relações familiares e no mundo do jornalismo: um dono de jornal, alcoólatra, que não sabe a diferença entre crase e trema (!) recebe um colunista estrangeiro reacionário e reclama que a ditadura brasileira foi pouco violenta, enquanto o outro aponta as virtudes de Salazar. Talvez nos deva mais um romance sobre a ditadura militar, abordada de forma tão original em
Duas praças (São Paulo: Globo, 2006).
Escrevi esta nota de leitura porque tenho duas ideias sobre a literatura deste escritor que parecem confirmar-se em
Divórcio. Não mencionei nenhuma delas, o texto tomou outro rumo. Quero um dia escrever sobre Ricardo Lísias.