Pedro Moraes e João Rafael Diniz convidaram-me para falar, em sete de agosto, com a jornalista Luka França, sobre o caso Carandiru, que somente havia entrado na minha produção poética, ou algo assim, em Cinco lugares da fúria, e não nas minhas tentativas ensaísticas.
O vídeo está no youtube (http://www.youtube.com/watch?v=CPofbqcW-mk) e no sítio do próprio projeto de debates, o Vandaleando (http://vandaleando.laboratorio.us/), ainda com pouco material, mas que tem a vantagem de incluir as ligações na internet para certos textos que citei.
Em 22, também deste mês, falei sobre "Liberdade e manifestações públicas na ditadura militar e democracia" na Casa do Advogado de Santana, da 125a. Subseção da OAB-SP, presidida por Eliana Malinosk Casarini, a convite de uma colega minha, Patrícia Cobianchi Figueiredo - um dos nomes da nova geração de constitucionalistas (http://patriciacobianchi.blogspot.com.br).
Nas duas ocasiões, tive de falar da desmilitarização da polícia (no segundo caso, diante de alguns com mentes policiadas), o que não é minha especialidade. O Vandaleando não foi gravado nessa aprte. Nos dois casos, sugeri Túlio Vianna, professor de direito penal da UFMG, que recentemente deu aula pública em São Paulo sobre o assunto: http://www.youtube.com/watch?v=o2x8XFv7ap8
A aula trazia as ideias que defendeu neste artigo para a Revista Fórum: http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-a-policia/
Os comentários ao vídeo são eloquentes: não é de admirar que tantos policiais tenham elogiado a aula. A desmilitarização traria mais garantias e respeito aos policiais, hoje submetidos à hierarquia autoritária da instituição. Seria uma forma de assegurar-lhes, com mais eficácia, direitos, respeitá-los e valorizá-los como agentes públicos e cidadãos, o que é necessário para qualquer polícia de segurança pública consequente. Uma política que sirva para garantir o direito à segurança da sociedade, e não para proteger abusos de governos que necessitam de uma força armada de controle social para manter seus privilégios e usurpações.
No entanto, as polícias são apenas alguns dos lugares do problema da segurança, e outro, de reforma também difícil, é o Judiciário. Aqui, a desmilitarização (ao menos nas mentes e nas decisões) também é necessária...
Na 1a. Conferência Nacional de Polícia, que ocorreu em 1951 no Rio de Janeiro, produziu-se a tese "Dos atos ilícitos perante os direitos de reunião e de associação. Medidas policiais que os previne,", de autoria do então secretário da segurança pública do Estado da Bahia, Laurindo de Oliveira Régis Filho.
A Constituição de 1946, no artigo 141, § 11, previa que "Todos podem reunir-se, sem armas, não intervindo a polícia senão para assegurar a ordem pública. Com esse intuito, poderá a polícia designar o local para a reunião, contanto que, assim procedendo, não a frustre ou impossibilite."
Toda a tese é uma longa tentativa de negar esse preceito, referindo-se a decisão anterior à Constituição do Tribunal de Justiça de São Paulo que sustentou a proibição policial de comício do PCB e citando, em favor dos poderes de polícia no controle de reuniões e associações, juristas como Carlos Maximiliano e Temístocles Cavalcanti.
A tese, entre outros pontos, defendia que a polícia tivesse o poder de autorizar e proibir até mesmo reuniões em recintos fechados. Vejam a letra d das "indicações" da tese, que pode ser lida no portal do Projeto Memórias Reveladas (http://www.memoriasreveladas.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home).
O que era o "germe dos extremismos", que tornava tão perigoso os direitos de reunião e de associação? O comunismo, ou, segundo o autor, "o caminho tortuoso dos que, pregando o ódio entre as classes, a ela liberdade pretendem extinguir, sob as trevas de uma ditadura sem pátria e sem lei 'que desumanizaria a humanidade, everteria, subverteria, inverteria a obra do Creador'."
Os anos 1950 são importantíssimos para entender a ditadura militar, que não pode ser desvinculada da geopolítica da Guerra Fria. O anticomunismo expresso em documentos como esse, das Forças Armadas e da polícia (provavelmente também em organizações empresariais, mas, estes, ainda não os vi), está nas raízes do golpismo que irromperia mais tarde.
Nesse sentido, que a CNV tenha de investigar desde 1946, além de ter base constitucional, também faz sentido do ponto de vista histórico.
A ideia de que se devem restringir os direitos humanos em nome do combate à subversão está presente também nas formulações da doutrina de segurança nacional pela Escola Superior de Guerra, ao ponto de, antes do golpe, se propugnar que o subversivo não poderia ter as mesmas garantias do criminoso comum, e tampouco as que eram previstas para o combatente inimigo capturado durante guerras. Tratava-se da defesa da criação de uma categoria de "sem-direitos" que poderia ser aplicada a qualquer suspeito.
Tratei disso, do impacto das manifestações de 1968 sobre as autoridades da ditadura, que reagiram ao ver o povo na rua (inclusive "mães de família") com o Ato Institucional n. 5, que já foi chamado, com propriedade, de "antilei".
Que, em junho e julho deste ano, as manifestações populares tenham também sido respondidas com medidas autoritárias contrárias à lei, mostra o quanto falta para democratizar o país. Dessa forma, algumas histórias parecem repetição viciosa do passado recente: as ameaças da Polícia Militar do Rio de Janeiro contra a OAB (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/desarquivando-o-brasil-lxv-policia.html), a Polícia Civil gaúcha voltando a fazer o papel da censura política apreendendo livros sobre o anarquismo (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxiii-descartes.html), que infiltrados sirvam de pretexto para a ação das forças de segurança (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxii-os.html), os grandes meios de comunicação exigindo violência policial contra o povo (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxi-policia.html), ministros defendendo abertamente programas ilegais que beneficiam empreiteiras (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/hidreletricas-e-seguranca-nacional.html) etc.
Que as manifestações tenham seguido e os governos tenham tido de recuar (e até alguns meios de comunicações tiveram de voltar um pouco atrás) parece-me um sinal de vitalidade da política brasileira. Pois é de baixo para cima que essa vitalidade manifesta-se. E é ela que os regimes autoritários precisam reprimir para existir.
Na Casa do Advogado de Santana, um dos documentos que levei foi a ata da 41a. sessão do Conselho de Segurança Nacional (CSN), que se iniciou em 11 de julho de 1968 (disponível também no portal do Projeto Memórias Reveladas). O governo federal preocupava-se com as manifestações públicas, que ocorriam no Brasil e em várias partes do mundo (note-se que, em geral, são os reacionários que criticam 1968). O general Jayme Portella de Mello, Secretário-Geral do CSN, fica indignado com a resposta dos líderes estudantis diante da proibição de passeatas, "a qualquer título", em cinco de julho pelo ministro da justiça Gama e Silva. A resposta parece-me ser uma lição de soberania popular: ""Não escolhemos a forma de manifestação: é pacífica se o Governo dá a permissão, é violenta se as autoridades tentam reprimi-la".
Repressão. Volta-se então à questão da polícia. Talvez a única coisa mais ou menos interessante que eu tenha dito na conversa com Luka França, que vale a pena ser vista pelo relato e pela análise que a jornalista fez do julgamento que ela presenciou, ocorreu no final, que não foi gravado. Acabei repetindo a mesma coisa na última pergunta da palestra de ontem. Um membro do público repetiu um argumento no caso Carandiru (bem apropriado) sobre a pobre imagem dos bons policiais, que existem. Trata-se da velha história de varrer a sujeira para baixo do tapete.
Tive de responder que a questão estava mal posta: a moralidade ou a correção dos policiais individualmente considerados, embora importante, não deveria ser o fulcro. Tratava-se de algo muito maior, de nível institucional: em um sistema que trata os cidadãos como inimigos, e é isso o que ocorre se a polícia é militarizada (legado da doutrina de segurança nacional, que tem como alvo principal o inimigo interno), pouco importa aquela possível correção. O próprio sistema é essencialmente infenso à soberania popular e deve ser extinto. Aqueles bons policiais pouco terão a fazer no seio da máquina autoritária, a não ser se esconderem, serem triturados ou saírem, como tentam fazer tantos de meus alunos policiais: eles estudam Direito para tentar uma outra vida.
Ademais, não se deve, no plano político, contar simplesmente com a virtude dos indivíduos. Onde há poder, há a tentação do abuso. Nenhuma instituição pode funcionar bem contando apenas com a virtude individual, que sempre pode revelar-se falha e corrompível. É necessário criar mecanismos de controle do poder para tentar evitar os abusos de poder. Essa lição já estava presente, por exemplo, em O Federalista, no sistema de freios e contrapesos.
E é claro que nos regimes democráticos que a denúncia dos abusos e sua punição é possível. Em períodos como o da ditadura militar, o abuso é a regra e assina o Diário Oficial.
Que certos abusos continuem a assiná-lo apenas assinala o caráter incompleto da democracia brasileira, constatação que está nas raízes das manifestações do presente.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
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Excelente Pádua,
ResponderExcluirImportante o enfoque que você dá aos anos 50,
Quando analisamos o século XX percebemos que algumas questões republicanas são retomadas sempre a partir da mesma base, considero sintomático a referência que Castelo Branco faz a Oliveira Vianna nas suas primeiras manifestações após o golpe de 64.
Por isto o momento que estamos é importante, para construirmos outras soluções destas questões republicanas e democráticas que não se resumam as retrições de direitos, como ocorreu em 1937/1964 e em muitos outros períodos.
Ab.
Samuel Martins
Obrigado, Samuel. É oportuna a lembrança da influência de Oliveira Vianna. É pena que a CNV, ao menos de acordo com o relatório parcial que publicou, não esteja se ocupando de forma minuciosa com os anos 1950.
ExcluirAbraços,
Pádua