O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXII: Imagens de Sobral Pinto

Na semana passada, vi o filme "Sobral - o homem que não tinha preço", de Paula Fiuza, sua neta, realizado com apoio da Ordem dos Advogados do Brasil. Ele não é muito bom, inclusive tecnicamente (a música, desnecessária, barulhenta e intrusiva, às vezes atrapalha a compreensão dos depoimentos e, principalmente, da narração), mas deve ser visto, pois não há outro documentário sobre o grande advogado, e ele traz cenas interessantes da época da ditadura militar.
O livro começa com Fernando Augusto Fernandes que, em sua pesquisa de mestrado, descobriu arquivos de áudio de sustentações de Sobral Pinto na Justiça Militar. A dissertação pode ser lida aqui: http://www.uff.br/dcp/wp-content/uploads/2011/03/Tese-de-2011-Fernando-Augusto-Fernandes.pdf  O livro, que ainda não li, Voz humana: a defesa perante os tribunais da república, inclui disco com sustentações orais na Justiça Militar: http://www.youtube.com/watch?v=yE8rEba9reA
Pode-se ouvir Sobral Pinto, em 1976, denunciando as "confissões" obtidas por meio de tortura. Deve-se lembrar que essa prática criminosa (mesmo para o direito de exceção da ditadura militar, embora fosse prática rotineira) era realizada até mesmo nas auditorias militares onde, muito pelo contrário, deveriam ser denunciadas.
Como quem não deve não teme, a escuta desses arquivos foi proibida, e o advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes tenta levantar essa proibição na Justiça.
O filme começa, pois, muito apropriadamente expondo não só as barreiras institucionais que persistem, após a democratização do país, contra o direito à memória, como a difícil missão de fazer a justiça no Brasil - em qualquer época. As dificuldades específicas trazidas pelo Estado Novo e a ditadura militar são ressaltadas pelo filme, e Paula Fiuza, nesta entrevista, justifica seu enfoque: http://www.conjur.com.br/2013-nov-02/entrevista-paula-fiuza-diretora-sobral-homem-nao-preco
Sobral Pinto foi favorável ao golpe de 1964, mas, logo depois, passou a opor-se à ditadura. Antes da OAB e do IAB, o jurista denunciou o regime. Um dos documentos destacados pelo filme, e que eu não conhecia, foi esta carta de Sobral Pinto a Armando Falcão de 3 de abril de 1974: http://dhnet.org.br/memoria/mercia/ditadura/advogados/sobralpinto_armandofalcao.htm
Ele passa um sermão no Ministro e lhe escreve para colocar "a autoridade de seu alto cargo ao serviço da manutenção eficiente e intacta da própria legislação da assim chamada Revolução Brasileira":
[...] os textos legais por mim invocados são da autoria do Governo Militar, que dirige o país em nome da assim denominada Revolução Brasileira. Não são textos decretados pelo liberalismo político, hoje tão menosprezados e ridicularizado, como se fosse uma ideologia decrépita e criminosa. Foram decretados por aqueles que se apresentam ao nosso povo como os salvadores de sua civilização.
Tal era a hipocrisia do regime. O que distinguiria o regime brasileiro das ditaduras comunistas era apenas manter a propriedade privada e a autonomia do Judiciário para julgar conflitos de direito privado.
Em cenas de arquivo, vemos Sobral Pinto com sua grande verve, seja no escritório, seja nas ruas (especialmente no comício pelas Diretas Já na Candelária, em que foi aplaudidíssimo), e Prestes a falar de seu antigo advogado. Outros clientes rememoram-no, como Hélio Fernandes e Rogério Duarte. Filhos e netos dão seu testemunho, bem como nomes que o conheceram e que o filme falha completamente em apresentar. Modesto da Silveira, que trabalhou com Sobral Pinto, aparece diversas vezes, mas o público que o desconhece não saberá que ele foi o advogado que mais defendeu presos políticos durante a ditadura militar. O filme nada diz. Rosa Cardoso também está presente, mas em nenhum momento se explica seu papel na defesa de presos políticos, muito menos se indica que ela é membro da Comissão Nacional da Verdade.
Até mesmo a prisão de Sobral Pinto durante a ditadura militar, habilmente contada por meio da montagem de depoimento do próprio advogado com outro, feito para o filme, de José Carlos Baleeiro, deixa de apresentar com mais pormenores o contexto das prisões, que foram generalizadas, atingindo civis e militares, comunistas, não-comunistas e até mesmo anticomunistas.


Na notícia do Diário da Noite, de 16 de dezembro de 1968, Pery Bevilacqua e Mourão Filho, que obviamente não eram nada comunistas, mas se opuseram à linha dura, foram destacados na manchete. No texto, logo depois deles, está Sobral Pinto. A matéria, com sua eclética lista de nomes, ilustra o estrago feito já nos primeiros dias do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro: Juscelino Kubitscheck e Ênio Silveira, Darcy Ribeiro e Carlos Lacerda...
O jornal pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
A opção por dar um peso maior à família (um sintoma do "homem cordial" segundo Sérgio Buarque de Holanda) sacrificou sua vida pública. O filme tem muitas lacunas no tocante ao engajamento político de Sobral Pinto. A neta e diretora, em outra declaração, diz que preferiu concentrar-se na "figura humana", a que a biografia feita por "um brasilianista americano" não teria feito jus: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/cinema/2013/10/31/noticia_cinema,147993/documentario-sobre-vida-do-jurista-sobral-pinto-tem-pre-estreia.shtml).
A referência ligeira é injusta com o trabalho de John W. F. Dulles (1913-2008), que escreveu sobre Carlos Lacerda, Castelo Branco, Getúlio Vargas e deixou uma biografia em dois volumes de Sobral Pinto. O primeiro, Sobral Pinto: A consciência do Brasil, foi publicado pela Nova Fronteira em 2001, em tradução de Flávia Mendonça Araripe. O segundo, Resisting Brazil's Military Regime: an account of the battles of Sobral Pinto (University of Texas Press, 2001), continua, infelizmente, inédito em português.
Dulles fez uma crônica, tão detalhada quanto sua pesquisa, da vida do grande jurista; não há, porém, muita análise histórica; para James Green, o livro é um tanto tedioso; em outra resenha, Frank D. McCann criticou o excesso de detalhes e a falta de uma tese central. No entanto, trata-se de uma fonte muito valiosa sobre a época. O autor, por exemplo, não oculta que, embora Sobral Pinto tenha sido um grandioso defensor da liberdade, aceitando diversos clientes de que discordava politicamente (nesse sentido, foi uma das maiores encarnações da ética da advocacia no Brasil), ele tinha problemas com a igualdade. Ele permaneceu até o fim adversário da igualdade de gênero. No seu apostolado pela família católica, combateu o divórcio e chegou a ser contra o voto feminino: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes_ate102011/R03754.pdf
Seu conservadorismo era também um elitismo, baseado no discurso da competência. Em 1987, ele recebeu, com Ives Gandra da Silva Martins e Ronaldo Caiado, dois conservadores, e Pietro Maria Bardi o prêmio Homem de Visão da antiga revista Visão. Aproveitou para renovar seus ataques à Teologia da Libertação, criticar as mulheres, que não entendiam que sua grandeza estava na "modéstia", e afirmou que um morador de favela poderia ser sério e honesto, mas não poderia ser vice-presidente da Assembleia Constituinte.
Em dezembro de 1988, afirmou que a nova Constituição não poderia ser efetivada, pois precisava de muitas leis complementares. Além disso, nela predominariam más disposições, como a descrição de família, no artigo 226 como uma união estável entre homem e mulher, sem exigir o casamento formal (p. 209). Ele poderia ter imaginado que o conceito mais tarde abrangeria uniões de pessoas do mesmo sexo?
Outro problema do filme de Paula Fiuza é não apresentar suficientemente a heterogeneidade dos opositores à ditadura; nesse amplo leque ideológico, Sobral Pinto estava à direita da maior parte da oposição. A esse respeito, destaco aqui um documento de espionagem do DEOPS/SP, que pode ser lido no acervo do APESP,  sobre conferência dada pelo jurista em 8 de junho de 1965, na sede do Grêmio da Politécnica da USP.

O título era bastante provocador para a época: "Ordem jurídica e sobrevivência da democracia". O evento fora promovido pelo Centro Dom Vital de São Paulo. Segundo a espionagem, ele discursou sobre sua defesa de Prestes e de Harry Berger (um dos casos mais graves de tortura na ditadura de Vargas, e para quem Sobral Pinto teve a famosa ideia de usar a lei de proteção dos animais) durante a Era Vargas, reafirmou que era católico e reclamou que o "cristianismo autêntico" não era aplicado desde a "revolta de Lutero".
Sobre os IPMs, disse que eram "vergonhosos" e que seriam conduzidos "muitas vezes" "até com ignorância". Certamente.
Mais adiante, ele teria entrado em conflito com uma esposa de general que havia respondido a inquérito penal militar. O relatório não informa a identidade. Mantenho a ortografia da época e os erros do original:

A espôsa de um general que respondeu a IPM, disse que alí tinha ido porque admirava Sobral e perguntou-lhe se o presidente que alí estava, era um usurpador do poder. Sobral respondeu que não, pois, juridicamente havia um pode que era o Congresso, que elegeu o atual presidente. A senhora, revidando, disse que o Congresso tinha sido castrado e era um carneiro dizendo mé e que foi um ato ilegal a tirada do poder de Goulart. Sobral confirmou que foi favorável ao afastamento de Goulart, pelo que foi exposto e que não considerava uma revolução, pois, esta teria que ter um programa, como a revolução comunista o tem. A mesma senhora disse que o Congresso estava constantemente sendo desrespeitado. Sobral disse que não, pois, tôdas as decisões foram acatadas, com dificuldades, mas, foram. a senhora disse que o caso de arraes era uma prova de desrespeito. Sobral respondeu que não, pois, a decisão foi respeitada. A senhora retrucou dizendo que o governo queria prendê-lo outra vez. Sobral disse que, o que o govêrno não queria era uma manobra, dizendo que arraes chefiava um movimento subversivo e seria chamado para depor e aí prenderiam-no novamente, mas que isto era dos coroneis e êle não sabia até onde os coroneis exerciam o govêrno. Vivamente inflamada, a senhora disse que estava decepcionada e que Sobral era um cínico, gerando no ambiente, profundo silêncio. O presidente do Grêmio interrompeu a palestra, advertindo a senhora do general e o Prof. Sobral Pinto, levantando-se, disse que não debateria com mais ninguém que o ofendesse daquela forma e que não devolvia o insulto por ser homem educado.
A história mostraria, pouco depois, que Sobral Pinto estava enganado. Em 27 de outubro do mesmo ano, foi editado o segundo Ato Institucional, que extinguiu todos os partidos políticos existentes, impondo o bipartidarismo, e acabou com as eleições diretas para presidente da república.
Voltando ao filme, quero destacar duas belas imagens: em cena de arquivo, João Nogueira canta a capella o samba "Vovô Sobral", por ele composto para Sobral Pinto, que ouve comovido e agradecido. Mais comovido ainda, um homem não identificado atrás do compositor chora silenciosamente.
João Nogueira conta que se inspirou no discurso da Candelária, quando Sobral Pinto explicou o princípio da soberania popular presente no parágrafo primeiro do primeiro artigo da Constituição: "Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido". O músico, provavelmente como a maior parte dos milhares que aplaudiram o jurista naquele momento, não conhecia essa previsão constitucional. De fato, com as práticas da ditadura militar, era difícil até suspeitar da existência formal desse princípio.
Creio que não só esse momento, mas sua trajetória de décadas como "defensor da liberdade em geral", na expressão de Prestes, ainda correspondem a uma lição para o país.
Significativamente, outro dos momentos mais bonitos não é protagonizado por Sobral Pinto, mas por seu ensinamento: um antigo funcionário do escritório do advogado, Didier Mesquita, reconstitui o caminho que o jurista fazia para chegar ao trabalho e conta que muitos o cumprimentavam, pois era bastante conhecido. Uma dessas pessoas, um camelô, pergunta sobre o que se trata a gravação e, ao ouvir o nome de Sobral Pinto, lembra-se dele como quem defendeu Prestes; afirma também que era um grande brasileiro. E fala que, para a democracia, é necessário haver pessoas que defendam os direitos.
Essa ideia logo me evocou a noção de cooriginariedade dos direitos humanos e democracia, que Habermas desenvolve e já estava implícita em Kant; trata-se, cito Ricardo Terra, de "a soberania popular pressupondo os direitos humanos e vice-versa, uma não podendo pretender o primado sobre a outra" (Kant & o direito, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 58).
É provável que o camelô não conhecesse a filosofia do direito de nenhum desses autores (trata-se de uma leitura muito especializada, a maior parte dos advogados certamente também não os conhece), e que o engajamento de Sobral Pinto e a experiência histórica tenham sido os fatores que o levaram a essa conclusão. Em inspirar direitos com e para o povo, temos a marca do grande jurista.

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