O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
sexta-feira, 22 de novembro de 2013
Ricardo Lísias, Bernardo Carvalho e os discursos do capital
Sempre que é publicado um livro de Bernardo Carvalho, procuro-o e o leio. Em geral, no mesmo dia em que sai a notícia da publicação, como ocorreu com Reprodução. Assim que o terminei, percebi, como vários outros leitores, um paralelo, embora superficial, com obra recente de Ricardo Lísias, O livro dos mandarins, de 2009.
Houve quem dissesse (e até escrevesse) que certamente Bernardo Carvalho teria lido o romance anterior, mas ele mesmo negou tê-lo feito em entrevista ao jornal Zero Hora: http://wp.clicrbs.com.br/mundolivro/2013/10/01/bernardo-carvalho-fala-de-seu-novo-livro-reproducao/
Estive na última quarta-feira em um evento do SESC em que ele falou com Veronica Stigger e Marcelo Mirisola, perguntei sobre esse paralelo e ele ratificou a declaração dada ao jornal, de que não vejo por que duvidar. Os dois livros são muito diferentes, apesar de ambos terem um propósito satírico e apresentarem pessoas ligadas ao mundo corporativo que desejam aprender chinês (sem muito sucesso, por sinal).
Bernardo Carvalho tenta reproduzir tiques de certa linguagem da internet em um registro oral em que nem sempre eles soam verossímeis: na primeira parte, o personagem estudante de chinês fala "curti" como se fosse uma espécie de pontuação ("Morreram, curti, mas nasceram outros no lugar", p. 45), numa referência pouco sutil do romancista ao facebook. Na terceira, aparentemente, o autor esqueceu desse tique estranho.
Nas três partes, temos principalmente uma única voz de um diálogo que soa, dessa forma, como um monólogo. O procedimento é cansativo e, para que aquela falação se torne mais compreensível e, talvez, verossímil, o personagem estudante de chinês faz muitas perguntas e repete demais o que lhe está sendo dito: por conta desses artifícios narrativos, ele não apenas se mostra burro e preconceituoso, mas parece um pouco surdo.
Em termos de linguagem, trata-se do livro menos interessante do autor. Quando, no fim, o romancista vê-se obrigado a explicar o que aconteceu, percebe-se que a própria trama (em geral, o ponto forte de Bernardo Carvalho) o derrotou. E, se é verdade que ele pensou o livro como uma obra política (As iniciais, romance publicado em 1999, parece-me muito mais forte nesse quesito) por conta de sua crítica à internet, só podemos lamentar que essa crítica seja superficial, pois se limita à superficialidade dos discursos e à banalidade das paixões tristes que dominam os "colunistas" de internet e certas pessoas que escrevem em redes sociais.
Como se trata de Bernardo Carvalho, o livro, apesar dos problemas, tem momentos interessantes como este, que me parece explicar aqueles discursos banais: "A língua do futuro dá ao homem o que ele quer ouvir." (p. 53). Temos aí um sentido de "reprodução".
O livro de Ricardo Lísias tem, na verdade, pouquíssimos pontos de contato com Reprodução. A forma como em O livro dos mandarins apresenta-se o empobrecimento da linguagem do seu personagem principal, Paulo, cujo nome vai sofrendo mutações ao sabor do ambiente em que está, é muito mais interessante.
Como é possível parodiar uma linguagem como a dos manuais de autoajuda para executivos sem que o próprio livro se torne desinteressante? Lísias logra fazê-lo, embora o livro decole realmente a partir da segunda parte, quando o protagonista vai para a... África.
O estudante de chinês de Bernardo Carvalho consegue finalmente embarcar para a China e voltar. O executivo de banco criado por Ricardo Lísias, em uma ideia genial do autor, nunca põe os pés naquele país, porém jamais deixa de estar lá. Dessa forma, ele pode escrever e dar conferências, sem constrangimento algum, sobre a língua que não compreende (sua linguagem é curiosamente descuidada, aliás: "Há algum tempo, o doutor coleciona palavras cujo significado sejam inspiradores para a vida corporativa", p. 289) e sobre sua estada nas terras onde nunca pisou de fato, mas são o que move todos os seus passos: esta China é o espírito dos tempos do capitalismo contemporâneo.
Muitos são os passos no romance: Brasil, Reino Unido, Sudão, Egito e, novamente, o Brasil. É curioso que o protagonista, desde a infância, sinta uma dor móvel nas costas, que pode fazê-lo desmaiar nos momentos de maior tensão. Parece-me que Lísias cria uma imagem engraçada da própria mobilidade do capital financeiro, sempre sujeito a crises.
O estrondoso vazio do personagem principal, cujo nome vem sempre de seu entorno (os nomes dos outros personagens também são flutuantes), e que antes sofre a ação do que a movimenta (mesmo a sua volta ao Brasil é involuntária), torna-o a pessoa certa para o momento. Ele volta ao Brasil e seu empreendedorismo ganha novos contornos. É necessário e oportuno seu avassalador vazio para que tudo se reduza à dimensão de negócio. Trata-se do triunfo do neoliberalismo, de que a figura de certo ex-presidente aparece como ícone triunfal: "o seu maior diferencial será a proposta de junção das ideias do sociólogo Fernando Henrique Cardoso com as práticas chinesas contemporâneas. Pois é, parece que tem ainda uma história de massagem antiestresse." (p. 304).
A "massagem" no instituto Confucius, de que não adianto mais nada, se coaduna perfeitamente com a ética deste mundo corporativo: "sem fazer nenhuma operação ilegal, ele se adiantou ao jornalista, observou que de fato havia algo estranho com certas transações do banco em diversas contas offshore e, sem muita cerimônia e absolutamente nenhuma ilegalidade, fez o banco assumir algumas iniciativas de caridade, por ele batizadas de desenvolvimento social" (p. 92). As questões sociais são apropriadas e reduzidas ao marketing, e a literatura, à autoajuda.
Essa máquina de apequenamento e redução para multiplicação do capital conduz à terrível imagem final do livro, que trata a sério o que foi visto com deboche: a construção destas identidades no capitalismo contemporâneo parte da mutilação. O último capítulo faz o leitor rever a primeira parte do livro, que não entrega seus segredos na primeira leitura: a mutilação já estava lá, naquele homem incapaz de amor (vejam a relação com a mãe moribunda e com a secretária), e ela o revela como um fator de produção perfeitamente amoldado àquele ambiente corporativo.
A construção das subjetividades no capitalismo contemporâneo era um dos eixos de As iniciais, de Bernardo Carvalho, mas não no registro satírico de Lísias, embora haja ironia em diversas passagens no livro de 1999, como no discurso, perto do fim deste romance, sobre o fim do capitalismo, que era, a propósito, um título possível para o livro, a que o autor renunciou, se bem me lembro das entrevistas da época, porque as livrarias o guardariam nas estantes de economia...
O discurso, descobre-se, é uma fala de um (mau) ator: "O fim do capitalismo começa aqui. É essa a nossa única contribuição. Estamos na vanguarda da miséria. Saímos na frente para a anunciar ao mundo o que os espera. Somos o início do fim, o começo do caos. E só estamos esperando para contaminar o resto do mundo." (p. 125).
A contaminação, com efeito, é um tema importante nesta obra, e também no âmbito privado dos personagens, por conta da SIDA. Os paralelos entre o particular e o coletivo são muito importantes neste livro, que já anuncia a "virada antropológica" que sua obra teria com Nove noites (2002). Em As iniciais, temos uma personagem antropóloga que acaba por mostrar, de forma reflexiva, como Bernardo Carvalho faz uma espécie literária de etnografia de certa classe social nesse livro, um dos melhores da ficção brasileira contemporânea.
O livro dos mandarins também está nessa categoria. Se o fascismo contemporâneo constrói subjetividades que amam o poder, como imaginava Foucault, temos no personagem de Lísias uma impressionante apresentação desse fascismo, tão mais pertinente por não se limitar à simples paródia de discursos.
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