O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A propósito de Falstaff, dois finais, o de Verdi e o de Wagner

O Teatro São Pedro que, por méritos próprios de sua programação, e em virtude dos defeitos do outro teatro lírico existente na cidade, se tornou o palco mais interessante para ópera em São Paulo, está montando a última ópera de Verdi, Falstaff : http://www.theatrosaopedro.org.br/falstaff/
Neste ano, tivemos o bicentenário de nascimento dos dois maiores compositores de ópera do século XIX nas regiões que se tornaram a Itália e a Alemanha: Giuseppe Verdi (1813-1900) e Richard Wagner (1813-1883). A efeméride não me afetou: em casa, é sempre nascimento deles, nunca deixei de escutá-los. São dois gênios do romantismo. Hoje, é bastante ridículo, mas ainda há quem odeie um e ame outro, em geral devido a preconceitos nacionalistas.
Tratava-se de época em que a ópera tinha um papel importante para a identidade cultural, e a obra de ambos foi veículo para o nacionalismo. Verdi, especialmente na sua obra inicial, comprometido com os ideias de unificação da Itália; de sua terceira ópera e primeiro grande sucesso, Nabucco, saiu esta peça, uma espécie de ária a quatro vozes (a escrita para o coro é muito simples), de melodia muito belliniana, que continua a socorrer os italianos em momentos difíceis. (Re)vejam o maestro Riccardo Muti protestando contra os cortes nas políticas culturais, depois dos aplausos ao "Va pensiero"; a peça é repetida, e o público canta com o coro: http://www.youtube.com/watch?v=EzgfZzD0yzc
Verdi, nesse momento, refletiu nos lamentos dos judeus por sua pátria perdida os anseios nacionalistas italianos; ele o fez também com os antigos romanos (como em Atilla: "Avrai tu l'universo, resti l'Italia a me"). Como tinha, porém, um espírito cosmopolita, logo se desvencilhou, tematicamente, desse nacionalismo e transformou em ópera peças de Schiller, Hugo, Shakespeare e outros autores.
Shakespeare, por sinal, forneceu a matéria para o libreto de suas duas óperas finais, Otello e Falstaff, com libreto de Arrigo Boito (o compositor de Nerone e Mefistofele), e uma outra, bem anterior, Macbeth, com sua genial cena de sonambulismo: http://www.youtube.com/watch?v=7x7lQWXmalc.
Wagner, pelo contrário, depois que entrou na via da reinvenção dos mitos germânicos, não a deixou mais, e dedicou-se, também teoricamente, à apologia da arte alemã ("die heilige deutsche Kunst": http://www.youtube.com/watch?v=u61XvPYyaE0), o que acabou se misturando àquele caldo nacionalista (lembremos da Escola Histórica do Direito), imperialista, racista e reacionário que gerou um dos regimes políticos mais criminosos do século XX. Por sinal, o antissemitismo de Wagner nunca lhe permitiria fazer o que Verdi fez em Nabucco: usar o drama dos judeus para encenar um anseio de seu próprio povo.
No entanto, o talento venceu os preconceitos do compositor: já em sua época, alguns dos melhores intérpretes de suas difíceis obras (às vezes, há gerações em que não há ninguém capaz de realmente fazer justiça a certos papéis, como Siegfried, Wotan, Brünnhilde) eram judeus, como o maestro Hermann Levi, que estreou Parsifal, e a soprano Lili Lehmann. Hoje, um exemplo é Daniel Barenboim, que regeu Wagner em Israel - um tabu.
Voltando ao Falstaff: a ópera é cheia de melodias, mas elas vão se sucedendo rapidamente e, em geral, ou se tornam árias curtas que não paralisam a ação ("Quando ero paggio": http://www.youtube.com/watch?v=vkbUO1ySbJk), ou se tornam monólogos sem estrutura previsível (o monólogo da honra: http://www.youtube.com/watch?v=yvOznlXoook), o que é um sinal, neste caso, de fecundidade musical do compositor que, conscientemente, se despedia do gênero.
É em razão dessa fecundidade, por sinal, que certos admiradores de sua obra pregressa não gostam muito das óperas finais: Otello e Falstaff, ambas inspiradas em Shakespeare. Uma vez, eu saía de uma exibição em vídeo do Andrea Chenier, uma ópera de um autor menor, Giordano, que serve principalmente de veículo para tenores. A exibição ocorreu no Teatro Glauce Rocha, e um senhor, no elevador, comentou que essa ópera pelo menos tinha umas árias bonitas, ao contrário do Otello, que seria chato... Um lembrete de que parte do público de ópera não gosta de música, e sim de certos efeitos vocais.
Além disso, é errado dizer que Otello e Falstaff não têm árias; elas ainda estão lá, mas não, em geral, como uma forma chiusa, como peça autônoma, e sim integram-se a um discurso musical contínuo. Por exemplo, uma das árias mais impressionantes de Verdi, "È sogno? o realtà?" (que vi no São Pedro muito bem interpretada por Rodrigo Esteves), aparece no contexto do longo dueto entre Falstaff e Ford (disfarçado de senhor Fontana). Pode-se ver o dueto cômico aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ZzkZfuHNfsc.
O amor de Verdi pelo diálogo e pela voz de barítono unem-se brilhantemente nessa genial cena de Falstaff. Ford suspeita, em razão da inconfidência dos servidores de Falstaff, de que o outro esteja cortejando sua esposa, Alice. E passa-se por outro, Fontana, dizendo-se apaixonado por Alice, e oferece dinheiro a Falstaff para que este seduza a mulher de Ford. Qual o pretexto disso? Depois de ter cedido a um primeiro homem, ele, Fontana, teria mais chances com a esposa até então fiel... A situação já é engraçada, e tudo se complica quando Falstaff logo aceita o saco de moedas e revela que já tem um encontro marcado com Alice, aproveitando que o Ford fica fora de casa das 2 às 3! O falso Fontana fica pasmo e pergunta sobre o Ford, que é descrito de maneira bem injuriosa por Falstaff, que, em seguida, pede licença e sai um momento para preparar-se para o encontro amoroso. Deixado a sós, Ford canta uma esplêndida ária de ciúmes, tão engraçada quanto eram trágicas a de Otello (como este monólogo, em troca do qual se pode alegremente jogar fora toda a obra de Giordano: http://www.youtube.com/watch?v=Uaen8W7Ejzg).
No São Pedro, com o trabalho excelente do maestro Emiliano Patarra  e do diretor cênico, Stefano Vizioli, as oportunidades cômicas foram bem aproveitadas e, como todos os cantores eram capazes de cantar a música (com exceção de Luciano Botelho, para quem os agudos de Fenton eram um desafio - os "lábios assassinos" quase viraram "notas assassinas"...) e atuar (especialmente Jason Budd no papel título; Licio Bruno, com quem ele se alterna, já mostrou no Municipal de São Paulo que também domina o personagem), foi uma noite divertida.
O final da ópera é impressionante: formalmente, é uma fuga, o que não é a coisa mais fácil de executar (nem de escrever). Os versos de Arrigo Boito dão a moral da peça: "Tutto nel mondo è burla./ L'uom è nato burlone" - assim começa o final, cujo texto é cantado por todos os personagens. Assim a fuga termina: "Tutti gabbati! Irride/ 'un l'altro ogni mortal./ Ma ride ben chi ride/ la risata final.", algo como: "Todos enganados! Zombam/ um dos outros todos os mortais./ Mas ri bem quem ri/ a risada final": http://www.youtube.com/watch?v=49oAEKQsdgc
Com esta risada que justifica a vida, Verdi se despediu da ópera.
Outro universo é o de Wagner: na última ópera, Parsifal (podemos perfeitamente classificá-la assim, embora o compositor a tenha chamado de Bühnenweihfestspiel, algo como "peça festiva de consagração"), reafirma-se o universo dos mitos germânicos reinventados pelo compositor-libretista, e se torna mais explícita a pretensão de que essa arte fosse uma religião... A mundanidade de Verdi está léguas distante disto.
A música é genial, porém, o que mesmo Nietzsche, já rompido com o ex-amigo, reconheceu, e a intervenção final do coro, com "Höchsten Heiles Wunder!/ Erlösung dem Erlöser!" (algo como "Supremo milagre da salvação!/ Foi salvo o salvador!") é de chorar: http://www.youtube.com/watch?v=nhxGXQsF_wI
Wagner despede-se com esse gesto de transcendência, presente em tantas de suas obras. Mas o que significa este final? Uma obra essencialmente racista, como quer Gutman (http://www.nybooks.com/articles/archives/2001/may/31/wagner-politics/)? Provavelmente significará o que os diretores cênicos quiserem. François Girard, diretor do genial filme 32 curta-metragens sobre Glenn Gould (no Brasil, virou 32 variações) retirou um pouco do cunho misógino da ópera, na última montagem do Metropolitan Opera House (muito bem cantada), fazendo a única personagem feminina participar da cerimônia do Graal, embora ela acabe por morrer (Wagner a mata misticamente): http://www.youtube.com/watch?v=r5rsU8bX9QI
Alguns preferirão esta montagem de Calixo Bieito, diretor famoso pelo uso de nudez e sexo nas montagens de ópera, e que encena um strip-tease do tenor: http://www.youtube.com/watch?v=__9WWsX9f1k 
Acho que ele ainda não montou Falstaff. Se o fizer, provavelmente dará muita atenção ao namoro entre Nanetta e Fenton.
Na última sexta-feira, foi publicada breve matéria na Folha de S.Paulo sobre Falstaff com pelo menos um curioso equívoco: traduziu-se erradamente o final da ópera, que remete a um provérbio: ri melhor quem ri por último. Acho comovente esse gesto de Verdi de encenar sua carreira cênica com um dito popular: por meio de uma forma sofisticada, a fuga, ele encontra uma forma de retornar ao povo, de onde ele veio - e onde, creio, permanece.

Nenhum comentário:

Postar um comentário