O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

VIII Blogagem Coletiva: 45 anos do AI-5 (Desarquivando o Brasil LXXV)



Sugiro que vejam aqui a chamada para a VIII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, do dia 10 a 13 de dezembro de 2013, da qual transcrevo o início:
http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/12/05/convocacao-para-a-viii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/
Na ocasião dos 45 anos do Ato Institucional nº 5, e poucos meses antes dos 50 anos do golpe de 1964, novamente blogueiros e ativistas estão unindo forças para realizar a VIII blogagem coletiva #DesarquivandoBR. Trata-se de uma demanda urgente do país pela justiça de transição, pela memória e pela verdade. Os tímidos resultados, até agora, da Comissão Nacional da Verdade, quase um ano e sete meses após sua instituição, reforçam nossa convicção de que o engajamento da sociedade organizada é essencial.
O AI-5, chamado na época de “antilei”, formalizou o endurecimento da ditadura e forneceu o novo ambiente institucional para que ocorressem, no ano seguinte, a revisão autoritária da Constituição de 1967 e a edição do decreto-lei n. 898, que agravou a punição dos crimes contra a segurança nacional, reintroduzindo oficialmente a pena de morte no direito brasileiro.
Aproveito o momento e faço uma pequena nota sobre essa norma. Depois do golpe de 1964, os militares não sabiam bem o que fazer em termos jurídicos. A tomada do poder e a derrubada de João Goulart feriram, é claro, a Constituição então vigente, a de 1946, que havia sido democraticamente aprovada por uma assembleia constituinte. Francisco Campos, o jurista responsável pela Constituição autoritária do Estado Novo, é que lhes sugeriu o mecanismo do Ato Institucional. Conto um pouco desta história aqui: http://www.redalyc.org/pdf/934/93400621.pdf.
Tratava-se de um tipo de norma jurídica que fugia às limitações constitucionais e que servia para suspender e abolir os direitos fundamentais, diretamente nascida do Poder Executivo, sem consulta alguma ao Congresso. Sua fonte de legitimidade eram tão-somente os fuzis deitados sobre a mesa da presidência da república.
Além de castrar o Legislativo, o instrumento do Ato Institucional deixou o Judiciário de mãos atadas. O primeiro ato institucional, não numerado (não se previa que haveria uma série), ameaçou os juízes (e afastou alguns deles), suspendendo as garantias de vitaliciedade e estabilidade por seis meses. Além disso, limitou o controle judicial dos atos praticados com base nessa norma "ao exame de formalidades extrínsecas, vedada a apreciação dos fatos que o motivaram, bem como de sua conveniência ou oportunidade".
O exame de conveniência e oportunidade, no tocante a atos administrativos discricionários, é normalmente vedado ao Judiciário. Esse primeiro Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, cobriu desse manto administrativo todas as investigações sumárias (não sou eu que assim classifico, é o próprio Ato Institucional que as chama de sumárias - a arbitrariedade era, de fato, a regra) que foram feitas para expurgar as Forças Armadas e os poderes públicos da presença da esquerda.
Pior do que isso, ficava excluída de apreciação judicial a cassação de mandatos e a suspensão de direitos políticos por 10 anos praticadas, sem necessidade de investigação alguma, pelo Executivo federal.
O AI-5, cujo texto pode ser lido no sítio da presidência da república, radicalizou essas previsões autoritárias. Ele excluía da apreciação judicial todos os atos praticados com base nele e nos seus atos complementares (outra norma do direito de exceção da ditadura militar, presente desde o primeiro ato institucional, com o fim de o "regulamentar" e "operacionalizar").
Essa cobertura genérica de imunidade contra o Judiciário, porém, não era nova: estava presente desde o AI-2, que a criou para si e para o Ato de 1964. Mais importante foi o fim do habeas-corpus para crimes políticos e contra a segurança nacional, o que foi um duro golpe contra o que restava das liberdades.
A suspensão de direitos políticos implicava também restrições aos direitos civis, também sem que o Judiciário pudesse controlá-las::
Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado,
§ 1º - o ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados.
§ 2º - As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário.
Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, mamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
§ 2º - O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.
A previsão do estado de sítio jamais foi aplicada: o governo não precisava dela, tendo o AI-5 nas mãos, que permitia, além de colocar o Congresso em recesso, intervir nos Estados e Municípios.
O AI-5 tornou-se fundamento jurídico para diversas normas de exceção, para a censura e suspensão de direitos: outros atos institucionais (do sexto ao décimo-quarto), atos complementares e também os decretos-lei. Um ato complementar de suma importância foi o 38, também de 13 de dezembro, que pôs em recesso o Congresso Nacional. Lembremos que o pretexto para a edição do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves pedindo um boicote ao militarismo, e a recusa do Congresso em permitir que ele fosse processado por isso - mero pretexto, pois o Ato foi planejado ao longo do ano, em um contexto geopolítico de recrudescimento da Guerra Fria (somente a vinculação a esse contexto merece, por sinal, livros e teses).
Durante o recesso do Legislativo, foram editadas normas como o Decreto-lei n. 459, de 10 de fevereiro de 1969, que instituiu a Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, com o fim de investigar os "subversivos" e indicar ao Presidente da República mais pessoas que deveriam se sujeitar às penalidades do AI-5:
Art. 1º. Fica instituída a Comissão Geral de Inquérito Policial Militar com a incumbência de promover investigação sôbre atos subversivos ou contra-revolucionários e apurar atos e as devidas responsabilidades de todos aquêles que, no País, tenham desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas Leis que definem os crimes militares contra a Segurança Nacional e a Ordem Política e Social.
Art. 2º. A Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, vinculada à Presidência da República, será constituída de um General-de-Divisão, que a presidirá, de um Capitão-de-Mar-e-Guerra, de um Coronel do Exército e de um Coronel-Aviador nomeados pelo Presidente da República.
Parágrafo único. Por indicação do Presidente da Comissão Geral, será designado, por ato do Presidente da República, um Procurador da Justiça Militar para encargos de assessoramento.
[...]
Art. 6º. O Presidente da Comissão Geral de Inquérito encaminhará os relatórios de inquéritos concluídos ao Presidente da República, que poderá desde logo aplicar aos indiciados as punições previstas no Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, sem prejuízo das sanções penais a que estiverem sujeitos.
Mais importante ainda foi o Decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, que se tornou a nova "lei" de segurança nacional. As penas foram todas agravadas em relação à legislação anterior e, com fundamento no AI-14, de 5 de setembro de 1969, foram introduzidas as penas de morte e de prisão perpétua.
O Congresso somente foi reaberto com o Ato Complementar n. 32, de 15 de outubro de 1969, o que significa que o Poder Executivo legislou sozinho, arbitrariamente, durante dez meses. Sua reabertura deu-se para dizer sim à escolha militar do General Médici como o ditador que ocuparia a presidência, tendo em vista a doença de Costa e Silva e o golpe dado pelo triunvirato militar contra o vice-presidente Pedro Aleixo (que, além do "defeito" de ser civil, havia sido contrário ao AI-5), formalizado com o Ato Institucional n. 16, de 14 de outubro de 1969, que declarou vagos os cargos de presidente e vice-presidente da república e consagrou no poder, até as eleições indiretas que apontariam Médici, os três ministros militares.
Quando foi revogado o AI-5, que não tinha prazo para cessar? Só com a Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que previa, no seu artigo terceiro, que "São revogados os Atos institucionais e complementares, no que contrariarem a Constituição Federal, ressalvados os efeitos dos atos praticados com base neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial."
É interessante a ideia de que ele era uma "antilei". Modesto da Silveira, um dos principais advogados de presos políticos durante a ditadura militar, contou que, em 1969, o argentino Sebastián Soler, como representante da Comissão Internacional de Juristas, veio ao Brasil assistir ao julgamento da presidente do Correio da Manhã (um jornal que foi destruído pela ditadura militar), Niomar Moniz Sodré Bittencourt, com outros jornalistas, Oswaldo Peralva e Nelson de Faria Batista. Era 20 de novembro de 1969. A auditoria militar montou um teatro de "devido processo legal" para Soler. Os advogados contaram-lhe que os réus eram agredidos dentro das auditorias, e os advogados, ameaçados. Heleno Fragoso, para confirmar o autoritarismo do regime, deu-lhe o AI-5, que ainda não havia completado um ano, para ler. Modesto da Silveira conta que ele exclamou que aquilo era um 'lixo legislatório" e uma "antilei".
A história pode ser lida no livro publicado em 2010 pela PUC Rio e pela Vozes, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, Os advogados e a Ditadura de 1964.
Sobre a questão da "antilei": formalmente, não se tratava mesmo de lei, pois não vinha nem passava pelo Poder Legislativo; "ato", com efeito, e "institucional", é uma designação mais conveniente - pela sua generalidade, poderia designar qualquer ato normativo, até portarias, ou mesmo não normativo, vindo do poder público. A generalidade do nome permite desviar a atenção da ilegitimidade da origem.
Mas não é essa a questão que me interessa. Nos próprios consideranda do AI-5, temos esta passagem bastante lúcida, que já comentei algumas vezes: "atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;". As regras jurídicas do regime, mesmo as de exceção, permitindo, mesmo em nível reduzido, o contraditório, a defesa, e reconhecendo a personalidade jurídica dos "subversivos", podiam ser usadas contra ele mesmo.
Daí que as formas do direito, que têm realmente esse caráter reflexivo (uma vez que uma de suas principais funções é a de regular conflitos sociais), não eram as mais adequadas para serem instrumentalizadas em nome da doutrina de segurança nacional. Esta doutrina, nesse sentido antijurídica, precisava da criação de zonas de não-direito, ou de infradireito (no sentido de Foucault), como foram, por exemplo, os DOI-CODI, para que aqueles direitos e sujeitos fossem aniquilados ao sabor do arbítrio das autoridades.
Como o AI-5 foi usado para esse fim? Ele não legalizou a tortura e os desaparecimentos forçados - isso não foi realizado pela ditadura militar. Mais sutil em sua barbárie, ela preferiu eliminar ou cercear as vias de ação contra as ilegalidades do regime. Não por acaso, após esse Ato, tantos advogados (como Sobral Pinto) foram presos e juízes, afastados (desde o Supremo Tribunal Federal, como já escrevi, apesar das lembranças falsas de juristas conservadores, que imaginam um regime militar em que a Justiça era independente).
O AI-5 não tornava legais condutas como a tortura, mas dificultava ou impedia que as ilegalidades fossem combatidas. Nesse sentido, tivemos uma forma de produção legal da ilegalidade, em mais um exemplo de cultura cínica diante das leis: temos os direitos, só não podemos efetivá-los ou protegê-los...
Era notadamente o caso do Decreto-lei n. 898, editado nesse período de recesso forçado do Congresso Nacional, que ampliou o prazo de prisão, de forma a prejudicar  o controle judicial. Cito artigo de Oto Luis Sponholz e Antonio Acir Breda, "Aspectos processuais da reforma da lei de segurança nacional" (publicado pela Revista de Informação Legislativa em 1978 e disponível nesta ligação: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181168/000366197.pdf?sequence=3):


Ademais, essa comunicação nem sempre era feita, ou era realizada fora do prazo. Nesse período em que o preso ficava incomunicável (mesmo em relação a assistência de advogado, embora o Estatuto da Advocacia então vigente previsse que o advogado teria acesso ao cliente em regime de incomunicabilidade) era, em regra, submetido a tortura. Não era permitida, mas seu controle era dificultado não só pela legislação, mas pelas instituições: era a Justiça Militar, esse oximoro, que teria a competência de processar esses crimes contra os presos políticos, e ela fazia-se de surda diante das denúncias, no papel de garante da impunidade, como bem documentou o projeto Brasil Nunca Mais; indico nesta ligação o volume sobre as leis repressivas: http://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/nunca/06.pdf.
Não por acaso, torturava-se também nas auditorias militares, e alguns torturadores eram também auditores. Em propiciar esses espaços de infradireitos repressivos, o AI-5 foi uma das faces públicas, formalizadas, da hipocrisia jurídica do regime, e acabou por apontar, a contrapelo, vias de resistência para a oposição: a legalista e a de luta pelos direitos humanos.

Além dos blogues indicados em nota anterior, incorporaram-se à Blogagem Coletiva:

P.S. E mais estes:



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