O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Último livro do ano: o Cristo de Mirisola

Ronald Polito emprestou-me neste fim de ano e acabei de ler, com bastante gosto, o livro de crônicas de Marcelo Mirisola O Cristo empalado (Rio de Janeiro: Oito e meio, 2013). Quem conhece a ficção desse autor logo o reconhecerá (ou reconheceu) nos textos, na maioria publicados no sítio Congresso em Foco.
Lamento, porém, que o livro tenha problemas de revisão.
Em Mirisola, temos um estilo com fortes frases de efeito: como Nelson Rodrigues, que ele cita, temos a sensação de que prefere perder o amigo a perder a frase e o personagem. Para o escritor, o problema é perder, às vezes, o rumo da reflexão na busca do efeito, risco que se acentua por ele dar a impressão de confessar-se, desabafar sem muita censura, ou, o que exige ainda mais cálculo, de escrever para desagradar: "Nunca podia imaginar que faria um jornalista (tudo bem, um estudante de jornalismo da UFRJ) sair chorando de uma entrevista, me superei." (p. 118). Mais de uma vez ele alude à possibilidade (ou desejo) de ser demitido por causa das crônicas.
Creio que a qualidade desse livro decorre justamente desse exercício de tentar ampliar as fronteiras do admissível, no qual temos a principal vocação política da literatura de Mirisola. O obsceno é um dos instrumentos para fazê-lo, mas somente um deles: nestas crônicas, o escritor quer incomodar também os mandarins da cultura e da política, bem como seus servos:
- Trabalha para o Itaú né, garoto?
- Itaú Cultural.
- Pior. Se fosse caixa de banco, eu respeitava. (p. 110)
Essa vocação política transcende aqui os ocasionais golpes de ressentimento, mais visíveis em suas declarações públicas.
Não espanta, pois, que este escritor tenha apoiado os protestos em 2013 e deseje que o "imponderável saia de controle" (p. 106). Em sua poética, ele corteja esse descontrole.
No livro, temos crônicas sobre cinema, cidades (principalmente Rio de Janeiro e São Paulo), morte, amigos, redes sociais, religião. Na crônica que dá título ao conjunto, Mirisola apresenta a tese de que é a cruz que carrega Cristo nas costas, e não o contrário: se ele tivesse sido empalado, "a Igreja e os seus subprodutos mais sórdidos simplesmente não existiriam" (p. 122). Várias outras passagens têm esse caráter crítico e inusitado:

  • "Quem, senão o diabo e os corretores de imóveis, teria interesse no aumento populacional?" (p. 21)
  • "Até a hipocrisia perdeu status, virou qualquer coisa amparada pela lei Rouanet." (p. 74)
  • "[...] da mesma forma que manipulam a alma dos crédulos e as informações em geral, os banqueiros líricos projetam a taxa selic de juros e decidem quem será o próximo presidente da República, mais ou menos assim." (p. 111) 
  • "O céu de Chico Xavier é uma casa de perucas dos anos 50, é a casa dele e dos xaropes que vão rezar até encher o saco de Deus; não é meu lar, nem nosso lar; não fede nem cheira." (p. 132)
  • "Zeca Pagodinho é o homem a quem Chico Buarque se fez mulher em suas músicas." (p. 179)
  • "O prefeito do Rio, Eduardo Paes, devia ter umas aulas de sociologia e comércio exterior com as putas da Help. [...] A Help é o nosso Louvre, e pede socorro." (p. 186). Sobre o MIS no local da extinta Help: http://www.ebc.com.br/cultura/2013/12/rio-ganha-o-novo-museu-da-imagem-e-do-som-em-2014-e-reabre-a-sala-cecilia-meirelles


De forma semelhante ao que acontece em sua ficção, não vemos um autor que assuma a persona de intelectual; por esse motivo, acho estranha a comparação de Mirisola com Montaigne que Aldir Blanc enuncia e não explica na introdução. Estas crônicas são bem diversas e menos ambiciosas do que os ensaios do autor francês. Trata-se mesmo de outro gênero. Mirisola, na mesma crônica em que cita mais de um trecho de uma aula de Barthes, deixa claro que está fazendo outra coisa: "E com relação a tal da 'capa reativa' de Deleuze, não faço a mínima ideia do que seja, pois sou mais místico do que picareta e odeio masturbação intelectual." (p. 81).
O que mais me interessou, neste livro, foi a percepção social de Mirisola. Sobre São Paulo, por exemplo, escreveu em "Dia feio, seco e gelado de céu azul" que a "diferença social" é incorporada pelo ódio, "e ninguém faz questão de esconder esse sentimento"; no Rio de Janeiro, não seria assim, pois "Os cariocas ainda não descobriram que se odeiam." (p. 37). Alguns já descobriram.
Acho justas suas reflexões sobre as políticas de segurança, que atestam a falência prática do punitivismo: "O fato de aumentar o efetivo de policiais nas ruas ou de construir novos presídios de segurança máxima é tão primário e agressivo quanto à [sic] violência que se pretende combater." (p. 49). Mesmo aí, no entanto, podem aparecer simplismos, como, em "A morte não precisa das cinzas do carnaval", ele resumir a situação da insegurança urbana a "guerra'.
Uma das crônicas que me foi mais surpreendente foi "Criação de negrinhos", que parte de um grampo que revelava como Naji Nahas emprestou dinheiro a Celso Pitta. O especulador o fez com desprezo ao então prefeito de São Paulo, o primeiro negro que foi eleito para administrar aquela cidade. Na qualidade de cidadão, apesar de não gostar do Pitta, Mirisola sentiu-se humilhado com a postura de Nahas e, indignado, escreveu que a indignação é inútil: "O Brasil tropicalizou Montesquieu e o transformou num camelô." (p. 53).
Em outra, "Brechó Brasil", tratou do filme O mistério do samba, que não vi. Concedendo que o filme é comovente, atacou a sua recepção - por mauricinhos - e a legitimidade de Marisa Monte em fazê-lo; ela apenas teria aderido a uma "lenda alheia": "Se Carolina Jabor e Lula Buarque tivessem feito um filme sobre a criadagem de suas belas casas arborizadas em Santa Teresa, o resultado não teria sido menos comovente.' (p. 176). Tratar-se-ia de um exemplo da "luta de classes escondida debaixo do tapete" (p. 179). A menção a José Miguel Wisnik me parece deslocada, porém.
Com "Boilesen ontem, hoje e sempre", numa temática bastante presente neste blogue, Mirisola associa a Operação Bandeirante, ontem, à política cultural determinada pelo marketing dos bancos de hoje. Vejam o que ele diz sobre filme de Walter Salles, que também não vi: "Transformou o assassino revolucionário num clichezinho água com açúcar pra Cidadão Boilesen sacudir a pança acompanhado capeta na Taíi." (p. 89). Por fim, a exclusão é produzida não só por meio da categoria da "alta cultura", como também pelos juros que cobram...
O livro é muito engraçado - não percam a história do que estaria por trás da recusa de Lou Reed em participar da Flip. No entanto, é também pungente, especialmente em "Fábula rodoviária". Nessa crônica, o escritor, depois de satirizar os personagens que esperam o ônibus, compartilha do destino daquelas pessoas.
"Estou quase convencido de que existe vida além do óbvio" (p. 101); convence-nos disso a própria literatura de Mirisola.

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