Preparei um texto para introduzir uma futura publicação da Comissão da Verdade
do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Ela trará de volta à circulação uma longa carta escrita
por diversos presos políticos em São Paulo, em outubro de 1975, para Caio Mário
da Silva Pereira, que presidia o Conselho Federal da OAB. Hoje, ela pode ser lida no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Já escrevi um pouco sobre ela neste blogue (em http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/02/violencia-em-pinheirinho-iv-e.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/desarquivando-o-brasil-xxxii-memoria.html) por causa dos assassinato de Herzog, que ocorre justamente quando a carta é terminada, e é mencionado em um adendo, e em razão da lista de 233 torturadores nela identificados, alguns apenas com o codinome.
A carta explica os diversos tipos de tortura implicados, arrola os responsáveis, depois passa a tratar das variadas ilegalidades que sofriam desde o momento da prisão (verdadeiros sequestros, que violavam as normas constitucionais e do Código de Processo Penal Militar, aplicável aos civis em matéria de segurança nacional) até as condições carcerárias, no cumprimento da pena.
Lemos que "O regime militar aqui imposto em 1o. de abril de 1964 baixou uma enxurrada de atos e leis de exceção."; alguns deles são mencionados, e comenta-se que "Se a letra de todos esses dispositivos draconianos, por si só, já fere a consciência jurídica contemporânea, a prática dos órgãos repressivos tem sido, ao longo dos anos, um permanente atentado à condição humana". Pois a prática violava esse próprio direito de exceção, "na certeza da impunidade que lhes é assegurada pelo regime discricionário".
A carta explica os diversos tipos de tortura implicados, arrola os responsáveis, depois passa a tratar das variadas ilegalidades que sofriam desde o momento da prisão (verdadeiros sequestros, que violavam as normas constitucionais e do Código de Processo Penal Militar, aplicável aos civis em matéria de segurança nacional) até as condições carcerárias, no cumprimento da pena.
Lemos que "O regime militar aqui imposto em 1o. de abril de 1964 baixou uma enxurrada de atos e leis de exceção."; alguns deles são mencionados, e comenta-se que "Se a letra de todos esses dispositivos draconianos, por si só, já fere a consciência jurídica contemporânea, a prática dos órgãos repressivos tem sido, ao longo dos anos, um permanente atentado à condição humana". Pois a prática violava esse próprio direito de exceção, "na certeza da impunidade que lhes é assegurada pelo regime discricionário".
Antes da carta, houve outras denúncias de tortura de
presos políticos, que logo a ditadura militar
buscou silenciar. Elas começaram pouco depois do golpe de 1964, e o primeiro
livro dedicado ao assunto foi Torturas e torturados (Rio de Janeiro:
Idade Nova, 1966), de Márcio Moreira Alves, censurado e recolhido pelo governo
federal no próprio ano da publicação. Ele foi liberado judicialmente em 1967, mas
por pouco tempo; o então deputado federal pelo MDB logo teve que partir para o
exílio em razão do AI-5.
Márcio Moreira Alves contou que, para escrever a obra,
penetrou incógnito na Penitenciária do Recife, participou de redes clandestinas
de militantes políticos e recolheu depoimentos de cerca de cem torturados, e
assim foi “descobrindo a sistemática da tortura, vendo que ela não era uma
aberração praticada por elementos incontrolados da polícia e do Exército mas
sim uma necessidade do regime, ditada pela sua política econômica”.
Com efeito, a tortura, assim como outros abusos contra
os direitos humanos eram uma necessidade, e não um acidente do regime, que
nisso revelava sua natureza evidentemente autoritária. Como, simultaneamente, o
governo federal queria preservar aparências democráticas (e um dos discursos de
legitimação do regime, repetido por Castelo Branco em sua posse na presidência,
era justamente o de que o golpe de 1964 havia sido dado para “preservar” a
democracia...), tais abusos contra os direitos humanos nunca foram permitidos
juridicamente de forma aberta.
Embora, nesta última ditadura no Brasil, tenha-se
adotado uma sistemática jurídica de fazer a Constituição
conviver com um direito de exceção que dava ampla margem de discricionariedade
ao governo de agir contra as garantias constitucionais, nem mesmo os Atos
Institucionais, o instrumento maior desse direito de exceção, permitiram a
tortura, as execuções e os desaparecimentos forçados. Fazê-lo teria sido o
equivalente a uma confissão pública, que a ditadura militar jamais desejou.
Contudo, o direito de exceção, ao transformar a
arbitrariedade em regra, impedindo a apreciação judicial dos atos praticados
com base nos atos institucionais e nos complementares, e ao abolir, pelo AI-5, o
habeas-corpus para os crimes
políticos, fez com que a defesa contra esses abusos se tornasse mais difícil; não
apenas, note-se, a defesa judicial, mas também a de caráter político, que se
viu cerceada pela ampliação dos poderes de censura, de cassação e suspensão dos
direitos políticos, interditando fortemente o debate.
Tratava-se de uma forma hipócrita de produzir
legalmente a ilegalidade: os crimes cometidos pela repressão não eram
permitidos, porém se tornava mais difícil combatê-los legalmente.
Como esses crimes foram sistematizados informalmente,
para mantê-los nessa meia-luz (ilegais, porém institucionalizados, para que não
fossem iluminados pelo debate e pela denúncia no espaço público, a censura e o
segredo eram fundamentais para o regime.
Outras necessidades da ditadura militar, para evitar
as apurações dos próprios crimes, foram as de afastar a Justiça Comum dos
crimes contra a segurança nacional, o que foi realizado já no segundo Ato
Institucional, em 1965, e de intervir no Judiciário e no Ministério Público,
afastando quem fosse mais comprometido com a defesa dos direitos humanos do que
com a defesa do regime autoritário. A ditadura necessitou da cumplicidade da
Justiça Militar e do Ministério Público que atuava junto a essa Justiça para
que fossem ignoradas, em grande parte dos casos, as sistemáticas ilegalidades
dos inquéritos penais militares e dos processos, bem como as denúncias, feitas
pelos presos políticos, de torturas e de execuções pelas forças da repressão.
Após o AI-5, com o endurecimento da repressão política
e da censura, cresceu a importância, para as denúncias dos abusos contra os
presos políticos, de instituições estrangeiras, da imprensa internacional e de
redes de exilados brasileiros no exterior. Tiveram um papel nessas denúncias a
Igreja Católica, a Anistia Internacional, a Associação Internacional dos
Juristas Democratas, a Frente Brasileira de Informações, entre outras
instituições e redes.
A interdição do debate no Brasil (com exceções como o
do assassinato de Olavo Hanssen em 1970, que foi noticiado com cautela pela
imprensa) facilitou à ditadura lançar-se ao genocídio indígena e ao massacre
dos combatentes da Guerrilha do Araguaia na primeira metade dos anos 1970.
Ademais, a própria denúncia configuraria um crime contra a segurança nacional,
como pretexto da “difamação” da imagem do Brasil.
[...]
A carta descrevia algumas das táticas do que chamo de
produção legal da ilegalidade, por meio de que as próprias instituições de
garantia da ordem jurídica produzem decisões contrárias ao ordenamento legal
(inclusive violando o próprio direito de exceção produzido pela ditadura, como
os próprios presos políticos bem assinalaram). Trata-se de uma relação
paradoxal entre legalidade e ilegalidade, mais complexa do que a simples ideia
de uma “suspensão” da legalidade nos “porões” da ditadura, o que falseia dois
dados essenciais: as normas jurídicas não eram simplesmente suspensas nas
prisões da ditadura (além de propiciarem paradoxalmente a ilegalidade, não se
podia falar de suspensão do ordenamento: o direito administrativo, por exemplo,
para vários efeitos continuava vivo nos esquemas de repressão, como na
organização hierárquica); em segundo lugar, as torturas não vinham dos
“porões”, não correspondiam a meros “acidentes”, e sim originavam-se dos
próprios palácios do poder, e eram da “substância” do regime.
Nesse regime autoritário, não é de admirar que os
defensores da legalidade – penso aqui nos advogados de presos políticos – fossem
perseguidos. Retomo, neste momento, a informação do SNI de 1976 que caracteriza
o jurista conservador Caio Mário da Silva Pereira (que não advogou para esses
presos, ao contrário de Heleno Fragoso, também mencionado no documento) de “elemento esquerdista e antirrevolucionário”.
Trata-se de mais do que manifestação histérica do anticomunismo inerente à
doutrina de segurança nacional. Pilar Calveiro, ao que me parece, viu bem a
questão, que também estava presente na Argentina: “toda acción legal, como la
presentación de habeas corpus, denuncias, búsqueda de personas, juicios, era
considerada ‘subversiva’”.
Nesse sentido, o legalismo era uma ameaça às
instituições...
Creio que as reações dos setores conservadores contra as atuais iniciativas de justiça de transição, as resistências contra a responsabilização pelos crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da ditadura, alguns dos quais apontados nesta carta, sejam ainda uma herança dessa cultura cínica em relação ao Direito, presente na ditadura militar, e evidenciam o caráter incompleto da transição democrática no Brasil.
Creio que as reações dos setores conservadores contra as atuais iniciativas de justiça de transição, as resistências contra a responsabilização pelos crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da ditadura, alguns dos quais apontados nesta carta, sejam ainda uma herança dessa cultura cínica em relação ao Direito, presente na ditadura militar, e evidenciam o caráter incompleto da transição democrática no Brasil.
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