O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Não é crítica literária ou jornalismo versus literatura, parte II


1. Instruções para lidar com os críticos:
Para que literatura, se podemos falar em cultura? A partir disso:
a) Enviar 20 perguntas genéricas para os críticos de que temos e-mail (incluir universitários, para mostrar que respeitamos os chatos da academia);
b) Escolher uma frase de cada resposta, a que tiver mais potencial de impacto textual*;
c) Escolher as que, fora de contexto, fizerem sentido oposto ao que têm na resposta - a resposta do crítico aumentará o impacto e dispensará a criação de nova pauta editorial;
d) Críticos mais polêmicos, isto é, com mais impacto, ou os que escrevam mais sem nexo (a perplexidade aumenta o impacto*), podem ter duas frases escolhidas;
e) Recortar as respostas e colar, misturando com as fórmulas de coesão textual previstas no manual da redação;
f) Se críticos de famílias ou editoras ou faculdades inimigas estiverem juntos no mesmo parágrafo, não há problema: o jornalismo é inclusivo e agregador, ao contrário da literatura;
g) Esperar as críticas e polêmicas e fazer mais perguntas a partir delas;
h) Voltar à primeira instrução.

* Impacto textual: alavancagem das vendas do jornal.

2. Instruções para autores:
Se os autores necessitarem de ajuda para responder às entrevistas, poderemos aconselhar estas frases a serem acrescentadas a um panorama literário abrangente**.
a) Precisamos destruir o cânone, ainda não estou nele.
b) Ninguém estuda a literatura contemporânea, só os meus rivais é que são estudados.
c) Críticas contra mim não podem ser divorciadas de minha posição social e, portanto, são mais um instrumento da burguesia na luta de classes.
d) O crítico falou mal de meu livro, ele tem é que calar a boca, ele quer impedir o debate.
e) Não copiei nenhum outro autor contemporâneo, nem leio essa gente, não perco tempo com merda.
f) Sou vanguarda há décadas, literatura mais nova que a minha só se for gugu dadá.
g) O gênio é uma exceção, mas é preciso implantar o verdadeiro estado de exceção, que não é este, falso, precisamos também acabar com a vontade de verdade.
h) "A burguesia fede" é o nome de nosso último projeto patrocinado pela confederação da indústria; recebemos selo verde.
i) Sociedade péssima, literatura pior? Faltou dizer: crítica feia e chata demais; nós, autores, é que somos avançados e construímos um país novo e sem preconceitos.

**Panorama literário abrangente: lista de releases de lançamentos.

3. Para o caso de ter que ler algum livro:
Selecionamos algumas resenhas*** prontas, exemplares até mesmo na extensão, proporcional à importância do tema.
Lembrar da autorização do setor de marketing se alguém quiser mencionar livros de editoras que não são anunciantes nem frequentam a lista de best-sellers.
a) Causa espécie que um livro de poesia de tal extensão não apresente nem mesmo um soneto, um só que pudesse rimar tantas aventuras com alguma doçura. O emprego de deuses na história é típico da literatura infantil, e as crianças adoram rimar. Contudo, não presta para alfabetização, a falta de técnica reitera-se na ausência de rimas. Para ele não existe a tradição poética ocidental. Mandemos o poeta para alguma oficina de poesia aberta na cidade. O pior trecho é o do romance entre Aquiles e Pátroclo, obviamente um sensacionalismo que vai na onda do beijo gay na Globo. Um livro da moda, que logo será esquecido.
b) Este autor nunca escreveu um romance. Logo, não tem fôlego narrativo. Um escritor menor. Ele não tem cultura, afinal não sabe nem quem escreveu o Quixote, que não foi ninguém chamado Pierre. Não tem imaginação nenhuma: chamar um livro de contos de Ficções mostra o quê? Parei na parte em que diz que nenhum livro é uma escada... Nem mesmo um cego confundiria livros com escadas. Uma grande biblioteca (será que o autor já entrou em alguma?) não pode ser feita de livros tão magrinhos. Não dá para empilhá-los com segurança. O autor mais óbvio do mundo.
c) Confesso que não li inteiro. Mas, na época em que as redes sociais nos dão tantas mensagens boas para ler, cabe editar um romance em 6 ou 7 volumes? Numa autoficção (sabe o que está na moda), o autor quando criança comia doces (chamado Madalena, que homenageia a namorada do escritor) e tinha insônia e complexo de Édipo. O ensimesmamento da história é infantil, não há nenhuma preocupação com a sociedade. Só quem é como o romancista pode usar o livro sem contraindicação: um volume como sonífero, outro como travesseiro. Nem precisa comprar todos.
d) A escritora tem uma narrativa fragmentada. Ela não sabe o que é um romance. No seu "livro", digamos assim, só há realmente uma personagem. Não pode ser um romance. O personagem não é nem plano nem redondo nem octogonal, ele é uma linha que no final se interrompe. Ou um ponto que fura as páginas até a contracapa. Sem Paixão, sem romance. Alguém tem que explicar à autora que nunca deveria ter existido um "livro" que não poderia ser escrito se a personagem varresse a casa ou pagasse dignamente a doméstica. Usem-no para matar baratas.
e) Este livro é cheio de positividade. Ensina que devemos sempre seguir adiante, mesmo que outros apareçam e comecem a reclamar da vida e repetir seus problemas. Mostra que nem o céu é o limite quando estamos apaixonados por nossa meta. Que o sol brilha somente para aquele que atravessou os obstáculos e soube não levar na jornada os perdedores. Se você se sente no escuro, é porque está ainda no meio do caminho! Dante para empreendedores: saindo do inferno para o céu, ao atualizar o livro do velho romancista italiano, prova como os autores de hoje superam a literatura e criam novas formas.
 ***Resenha: tipo de anúncio que não é diretamente pago.

4. Para não esquecer:
Matérias mais amplas sobre a literatura devem ser feitas pelos profissionais do mercado, como agentes, donos das editoras anunciantes (atenção: dono de editora, e não editor), executivos de redes que vendem livros, isto é, gente que entende mesmo do assunto.

Mensagem urgente: Em nome da contínua evolução e da objetividade do jornalismo contemporâneo e sua importância no futuro do país e do mundo, o caderno cultural foi descontinuado.
Antes de pegarem o último contracheque, não esqueçam de deixar o manual de crítica literária na reciclagem. A empresa é sustentável e respeita a responsabilidade social.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Desarquivando o Brasil LXXIX: A Globo, ontem e hoje

Houve quem fosse tomado por um sentimento de déjà vu diante de certos editoriais e matérias jornalísticas do presente, entre eles da Revista Época e do jornal O Globo, pertencentes ao mesmo grupo de comunicações. Devo dizer que a mesma sensação me assaltou.
Pareceu-me antológico o editorial de O Globo "Os inimigos da democracia", de 12 de fevereiro deste ano. Para quem tinha dúvidas da sinceridade de outro texto do mesmo jornal afirmando que o apoio à ditadura militar havia sido um "erro", penso que elas se dissiparam de vez.
Esse editorial merece as mesmas críticas que Rafucko fez ao programa de tevê Jornal Nacional no vídeo "Patrícia Correta", proibido pela tevê mas já assistido por, provavelmente, bem mais de um milhão de pessoas (uma de suas cópias, a que assisti, passava de quinhentos mil; ela já caiu e outra, posterior, já tinha ultrapassado esse número). Nos dois casos, o jornal subestimou a violência do Estado, também contra os jornalistas, que são alvo, em três quartos dos casos, da Polícia Militar, segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (está no vídeo).
Nos dois casos, parte-se, explora-se a morte do videografista Santiago Ilídio Andrade, cheia de detalhes inexplicados, que grandes jornalistas, como Jânio de Freitas e Alberto Dines, e intelectuais sérios, como Pablo Ortellado, logo puseram em dúvida: ainda falta muito a investigar. Mas não para a Globo, que já assumiu certa versão, rica também do que parecem ser infrações ao código de ética da OAB, com elementos inusitados como o advogado do rapaz que delata outro passa a representar também este, e o advogado leva um deles para confissão na Globo etc., e a transformação (agora estamos na ética jornalística) do advogado de defesa em fonte não questionada da verdade.
O editorial leva o leitora incauto a entender, na ordem do texto, que: a) houve finalmente uma vítima das manifestações; ele ainda b) elogia o secretário de segurança em mais um projeto oportunista contra o direito de manifestar-se; c) tenta relacionar a morte de Santiago Ilídio com Marcelo Freixo; d) acusa um assessor dele, Thiago de Souza Melo, de advogar para manifestantes; e) enfim, acusa partidos, organizações sociais e sindicatos de serem responsáveis pela violência.
Comento esses pontos em uma ordem mais lógica do que a do texto jornalístico:

a; e) A insinuação de que o videografista teria sido o primeiro morto nas manifestações é uma inverdade que Eduardo Sterzi havia rebatido; a questão é que os outros mortos, como é a regra, ou foram ignorados ou não receberam destaque.
Em tal silenciamento, o texto é mais uma peça de defesa da repressão do Estado contra os direitos humanos e mais um libelo pela violência feito pela grande imprensa brasileira, no rádio, na tevê, nos jornais impressos contra os direitos civis e políticos. Vejam Mônica Waldvogel na GloboNews, desconstruída recentemente por Vladimir Safatle; a jornalista acha que o papel "natural" da polícia não é de proteger os cidadãos, mas de reprimi-los, e que mortes que eventualmente disso decorram são meros acidentes.

c) Continuemos com as organizações Globo; em razão dos padrões mínimos de qualidade e de ética no jornalismo, submergidos abissalmente, Rafael Fortes criou a categoria de "jornalismo hediondo" (delicada analogia com a tipologia penal) para a recente e já célebre manchete do G1 sobre o disse-me-disse de que alguém teria escutado sobre algo que enfim teria relação com o mais destacado político que se insurge contra o modelo antidemocrático de cidade que tais organizações anunciam, defendem e vendem: "Estagiário de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu rojão era ligado ao deputado estadual Marcelo Freixo".

d) No editorial, busca-se outra ligação: assessor do deputado advoga para militantes, prática perigosa na ditadura militar, que levou vários advogados de presos políticos a prisão, e que, nos dias de hoje, continuaria suspeita, segundo este jornal.

Nesta informação confidencial do II Exército, escrita em 1970, "Condições financeiras dos presos políticos" (guardado no Arquivo Público do Estado de São Paulo-APESP), temos a referência a uma "indústria de advocacia da subversão": "já não constitui segredo que parte das despesas dos advogados vem sendo financiado [sic] por suas próprias organizações, com recursos a maioria, oriundos de assaltos." Os advogados cobrariam "somas vultosas" e "não têm sido esquecidos no momento de recebê-las".
Se recebiam honorários, os advogados estimulavam assaltos; se trabalhavam de graça, eram militantes... Dentro desse arrazoado autoritário, não havia como estar certo.
Marcelo Freixo explicou em outro texto a legal e legítima vinculação de seu assessor ao Instituto de Defensores dos Direitos Humanos. Essa movimentação do ódio teria que se dirigir contra o direito de defesa e contra os advogados, como a Globo fez novamente, e está acontecendo com toda força desde o ano passado. Isso ocorre em um contexto em que os advogados de manifestantes têm sofrido ameaças de morte. Alguns, desde junho de 2013, como conta, do Rio de Janeiro, o advogado militante de Direitos Humanos Felipe Coelho nesta entrevista dada a Raquel Boechat. Sobre o projeto no Congresso Nacional contra o terrorismo, Coelho afirma: "acho uma pena que a morte de um jornalista sirva a um propósito inverso da sua profissão, aumentar a repressão sobre o direito de manifestação, sobre o direito da liberdade de livre manifestação e opinião. [...] É um oportunismo político."

b) Como oportunismo pouco é para amadores, José Mariano Beltrame, o secretário de segurança do governo apoiado pela Globo, e a que Freixo faz oposição, logo correu para levar ao Congresso um projeto para criar o crime de desordem em locais públicos. E foi esse projeto que o editorial de 12 de fevereiro da Globo apoiou.

e) Enfim, O Globo, assim como os justiceiros do Rio de Janeiro, na verdade tira o foco da verdadeira questão, que Eliane Brum enuncia em artigo ("Nós, os humanos verdadeiros") sobre os linchadores do Rio: "as maiores vítimas de violência de todos os tipos estão nas periferias e nas favelas".

Vi que alguns evocaram, diante do editorial deste mês, a memória do que foi publicado por esse jornal, em 2 de abril de 1964, após o golpe, "Ressurge a democracia". Nessa hora, no entanto, O Globo não se destacava, em mais de um sentido, entre outros jornais, que também apoiaram o golpe, como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil. O Globo foi ganhar importância depois, durante a ditadura. Muito se grita nas ruas que "A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura". Isso é exato, mas não é tudo. Houve tensões com o regime, especialmente com a censura. Nada que se compare, claro, ao que sofreram os veículos de esquerda, como o Pasquim. Ademais, as organizações Globo não eram monolíticas: empregaram nomes de esquerda como Dias Gomes.

A virada empresarial ocorreu com a injeção de dinheiro estadunidense, que foi muito questionada em sua legalidade, tendo em vista as limitações para o capital estrangeiro, que já existiam, no campo das comunicações. A ditadura acompanhou esse processo. Ao lado, em um documento usual de espionagem encontrado no acervo do DEOPS/SP (guardado no APESP), de 15 de dezembro de 1964, comenta-se, entre os assuntos da intervenção em Goiás e a rusga crescente entre Carlos Lacerda e Castelo Branco: "A compra da organização Victor Costa, pelo Grupo dos Marinhos, do GLOBO, foi feita com a cobertura de Rockefeller, do grupo da N.B.C. (National Broadcasting Corporation)."
Com a compra da organização, que incluía o rádio (e a famosa Rádio Nacional) e a tevê, formou-se a Rede Globo.

O governo militar viu irregularidades no acordo Globo com a Time-Life, mas, como se lê no documento ao lado da mesma fonte (uma ficha de Roberto Marinho), resolveu não o anular, e sim determinar que "A TV Globo tem 10 dias para corrigir as irregularidades e eliminar do contrato os itens que contrariam a legislação brasileira. O presidente da república acha que ROBERTO MARINHO, diretor presidente da TV Globo não agiu por mal."
Nessa época, a grande oposição política que a Globo teve foi de Lacerda, que estava também a se opor ao presidente que foi tão compreensivo com o grupo empresarial, apesar de a CPI que investigou o acordo ter concluído por sua ilegalidade.




Roberto Marinho manteve-se fiel ao regime que permitiu a criação da Rede Globo. Há vários exemplos disso, no cultivo do ufanismo oficial e nos louvores ao governo federal. Neste breve nota, lembrarei apenas de um editorial de 30 de maio de 1978, a que o de 2014 faz eco.
Trata-se de um texto que fez coro com o governo contra campanha pela anistia, que crescia no país: em vários Estados formavam-se comitês da anistia, que almejavam, como já escrevi mais de uma vez, a punição dos torturadores da ditadura.
Tomei conhecimento desse editorial no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP); a Polícia Civil o transcreveu, o que é singular. O procedimento usual era recortar e colar as notícias. Não sei a razão de esse editorial ter fugido a essa prática, mas talvez tenham percebido que o texto se aparentava antes com um documento de polícia política do que com um texto jornalístico.
Ao lado, pode-se ver o seu início, mas ele pode ser lido em sua inteireza no Diário da Assembleia Legislativa de Pernambuco, pois o então deputado estadual Honório Rocha, tendo lido o texto no Jornal do Commercio, que reproduziu o editorial, pediu em 30 de maio de 1978 que constasse integralmente do Diário da ALEPE, o que foi feito nas páginas 346 e 347.
As execuções extrajudiciais, travestidas de tiroteios e de algo como "autos de resistência", são apresentadas desta forma: "quando o terrorista tomba morto num combate de rua com os agentes responsáveis pela ordem pública a semântica da subversão o considera assassinado ou fuzilado pelos órgãos de segurança". Embora a Folha da Tarde é que tenha sido considerada praticamente um diário oficial da OBAN, como lembra Beatriz Kushnir em em Cães de guarda - Jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988, em tais momentos O Globo rivalizou seriamente no negacionismo autoritário.
Fazia parte dessa negação da natureza autoritária do regime a caracterização quase delirante da legalidade dos processos da ditadura militar. Volto a citar o editorial de 1978: "Aos protestos dos condenados em processos absolutamente legais juntam-se aqui e ali as vozes dos 'inocentes úteis' dos aproveitadores da emotividade popular."
Este é um dos exemplos de como o direito importa para a história e para a política: as ilegalidades crônicas e sistemáticas desses mesmos processos são uma das contradições que desautorizam negar o caráter ditatorial do período.

Roberto Marinho, sintomaticamente, usa nesse trecho o vocabulário da doutrina da segurança nacional, tão identificado que estava com o ideário antidemocrático do regime. Segundo essa doutrina, os direitos humanos eram bandeira dos subversivos ou dos "inocentes úteis", que seriam muito perigosos para o país, segundo este texto da Carta Mensal do DEOPS/SP, n. 3 de setembro de 1974 (que li no acervo do Arquivo Público Mineiro).
Trata-se de fala de ninguém menos do que o então secretário de segurança pública, Erasmo Dias, dirigida a lideranças estudantis e seus pais nos recintos do DEOPS. O trecho, com suas metáforas explosivas, parece-me bastante significativo da mentalidade reinante na polícia política:
Da mesma forma que uma bomba, com a chama, o cordel e o explosivo, a célula comunista é a chama, a massa estudantil, o explosivo, e o cordel uma série  de elos onde se enfileiram os cripto-comunistas, para-comunistas, filo-comunistas, esquerdistas simpatizantes e inocentes úteis; estes últimos, junto à massa, são o potencial necessário à sua explosão, tão valiosos quanto o elo cripto-comunista! São os inocentes úteis de todo o cordel, a porção mais interessante e mais preciosa para a célula comunista, pois que, sendo indispensável, têm inclusive a capa da inocência e do idealismo.
O inocente-útil é tão perigoso quanto o cripto ou filo-comunista: é elemento essencial, para a detonação da massa! 
Esta passagem de 1978 também chama a atenção: "Um dos irmãos Queiroz Benjamin não vacilou em participar do assassinato de um jovem recruta então de sentinela no Hospital da Aeronáutica (a mãe desse terrorista, D. Iramaia, é a Secretária do Comitê Brasileiro Pró-anistia)."
César Queiroz Benjamin foi preso com 17 anos e tratado, ilegalmente, inconstitucionalmente, como um maior de idade pela polícia. Ademais, foi torturado. Seu irmão Cid Benjamin, que estava no exílio, trocado que fora pelo embaixador alemão, conta que “O problema”, escreve, foi ‘solucionado’ por um laudo de um tenente médico do Exército, de nome Leuzi, atestando que César tinha ‘idade mental’ de 35 anos. Com base nesse laudo, ele foi considerado maior de idade e julgado como tal. Passou preso cinco anos, dos quais três e meio isolado”. Tal era a "legalidade" decantada por Roberto Marinho: as sanções e os inquéritos desobedeciam o próprio direito de exceção da época.
A mãe, Iramaia Queiroz Benjamin, em depoimento ao CPDOC, contou desse desprezo oficial até pelas decisões do Supremo Tribunal Federal:
O César teve seis processos! O processo ia andando, andando, chegava no julgamento, o César era julgado inimputável, porque era menor de idade, e aquele processo era anulado. Mas aí o promotor recorria, e subia para a instância superior. Foi assim, até que o processo que estava mais adiantado chegou ao Supremo Tribunal Federal. E o Supremo declarou o César inimputável. Então o César tinha que ser solto! Não havia mais apelação! Mas os militares disseram que o Supremo tinha declarado o César inimputável só num processo, e faltavam os outros. Como se o César fosse duas ou três pessoas... 
Às custas de padrões mais consistentes de jornalismo, Roberto Marinho soube apoiar o regime que permitiu a formação de sua Rede Globo. E essa lealdade estendeu-se até o fim da ditadura, como se viu não se vendo a campanha das Diretas na sua tevê, e em outro editorial, de 7 de julho de 1984, "Julgamento da revolução". 
A fidelidade marca-se desde o título: ele insistia em chamar o golpe e o regime de "revolução". E louvava a autoanistia e a transição controlada pelos militares nestes termos: "Não há memória de que haja ocorrido aqui, ou em qualquer outro país, que um regime de força, consolidado já mais de dez anos, se tenha utilizado do seu próprio arbítrio para se autolimitar, extinguindo os poderes de exceção, anistiando adversários, ensejando novos quadros partidários, em plena liberdade de imprensa."
Entendo que o empresário quisesse elogiar a habilidade política dos militares em controlar o fim do regime, diferentemente do que ocorreu na Argentina; tal controle permitiu restringir fortemente as possibilidades da justiça de transição no Brasil (nota-se na comissão nacional da verdade, que surgiu tão atrasada que, no cinquentenário do golpe, ainda não terá terminado os trabalhos) e, com isso, limitou as condições de uma democratização mais profunda do país.
Em 31 de agosto de 2013, publicou-se o editorial "Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro", que foi comentado no Jornal Nacional, em conjunto com anúncio de um sítio da história da Rede Globo, com um caráter, por vezes, bem defensivo.
Houve quem desconfiasse da sinceridade do arrependimento tardio. Para terminar esta nota, dissipar tais suspeitas (possivelmente injustas), e tendo em vista que os novos princípios devem nortear ações diferentes, agora democráticas, sugiro:

a) Formação de uma Comissão da Verdade da Globo, para desenterrar os documentos de sua relação com a ditadura militar. Beatriz Kushnir, no livro que citei, teve acesso a um fundo de correspondência trocada entre a TV Globo e a Censura, mas - imaginem o que haveria no arquivo da empresa e nos arquivos pessoais da família Marinho!
b) Campanha para que outros veículos da imprensa que apoiaram a ditadura fizessem mea culpa (imaginem a Folha de S.Paulo pedindo desculpas pelo editorial da ditabranda?), reconhecessem seus "erros" e, em um passo adiante, formassem uma Comissão da Verdade da Imprensa, com jornalistas de vários veículos que pesquisariam tais arquivos.
c) Se a Rede Globo tornou-se contra o autoritarismo de ontem, por que não toma o mesmo posicionamento em relação ao de hoje? E contra seus injustos agentes, pois não são os partidos de esquerda e os sindicatos que estão a criar zonas de exceção no Brasil com os megaempreendimentos e os grandes eventos esportivos, e sim o clube de empreiteiras, grileiros e banqueiros, sob o silêncio cúmplice da grande imprensa.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Jornalismo como carta de direitos

Provavelmente para um dos livros que estou escrevendo:





Jornalismo como carta de direitos






Nunca declaramos
que os nossos são os melhores;
o horário é todo deles,
mas não declaramos
que eles são os melhores,
e sim que somos os olhos
e ouvidos de todos;
bradamos que os nossos foram
as primeiras vítimas
não por ignorarmos
as primeiras quedas sem vida;
porém vinham de outros órgãos,
pode a sociedade
discursar sem elas.

(...últimas notícias: foi assassinado pelo neto com cem facadas...
 – Novidade para toda a família: custam só cem dinheiros as facas Messer!
...liberada a foto do suspeito por seu advogado para a tevê...)

Nunca demos atenção
aos nossos feridos
por balas do Estado,
embora nossos, calamo-nos;
tal sutileza comprova
que não nos achamos
de fato os melhores.

(...mensagem instantânea de namorado da estagiária de advogado do amigo do governador, apagada mas capturada por nosso programa, insinuava que o líder da rebelião ouvia as mesmas músicas que o defensor de direitos humanos...
– Só por mil proteja a privacidade de seus dados com o programa ASN!
...preso o suspeito, entregou-o o advogado do cúmplice que o delatou e agora representa os dois...)

Para os mortos de outros órgãos
repetimos: a violência
tem o monopólio
do Estado legítimo,
e, se os nossos caem,
com o calor de seus corpos
queimamos os vivos.

(...últimas pesquisas governamentais mostram o potencial do solo amazônico para o pasto e as garagens...
– Churrasqueiras portáteis, cabem no carro, só mil dinheiros!
...o advogado dos presos, já desaparecidos, afirma que foram financiados por redes de direitos humanos, o governador amigo do causídico apoia o projeto antiterror que as proíbe...)

Os vivos, queimados
por não terem entendido
que somos os olhos
e ouvidos da sociedade,
só veem agora
a fumaça em que se tornam
transmitida a todos.

(...o defensor de direitos humanos alega que não sabia do gosto do líder da rebelião, mas perito veio à tevê e mostra que a trajetória do rojão desenhada num pentagrama reproduz a música de que ambos gostam...
– O governo entra agora em cadeia nacional: boa noite, aviso que criticar a necessidade da lei contra o terrorismo é um ato terrorista que confirma a necessidade da mesma lei.
...a congressista ruralista lembra no debate que a culpa é do filósofo francês Ruisseau, que escreveu a carta de direitos humanos da Revolução Francesa; o filósofo colunista concorda e explica que sem direitos humanos não teria existido o Terror...)

Queimam, mas o corpo
da sociedade não sofre;
somos só olhos e ouvidos,
mas a carne mesma,
ao longo de cinco séculos,
formou-se com o melhor:
balas da polícia.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Missa de 7º dia de Donizete Galvão e mais referências ao poeta



Escrevo para avisar que a missa de 7º dia do poeta Donizete Galvão será em São Paulo, na quarta-feira, dia 5 de fevereiro, às 20 horas, na Paróquia São Francisco de Assis, na Rua Borges Lagoa, 1209 A. Lá, poderemos dar mais um abraço em Ana Tereza, a viúva, e nos filhos Anna Lívia e Bruno.
Muitos têm se manifestado sobre esta perda. Sugiro a leitura de poema de Ruy Proença, "Notícia", que parte de um presente que recebeu de Donizete e o relaciona à notícia do falecimento. Guilherme Gontijo Flores escreveu um "In memoriam" que combina memória, uma pequena antologia e comentários aos poemas escolhidos.
Escrevi, em meu texto anterior, que não havia nada de Donizete no youtube senão a leitura filmada por Fabio Weintraub. Felizmente, no dia primeiro de fevereiro, o editor Adilson Miguel colocou no youtube a participação de Donizete Galvão no documentário "Versos diversos: a poesia de hoje", dirigido pelo professor Ivan Marques, que a TV Cultura exibiu em 1999. Ele fala sobre a própria poesia: "Não sou um poeta de altos voos imaginativos. Minha poesia é mais ligada aos objetos, aos fragmentos." 
Modéstia à parte deste escritor, é claro que é necessário ter muita imaginação para fazer os objetos falarem. Talvez, no entanto, a imagem mais adequada, neste caso, não seja mesmo a do voo, e sim o de uma imaginação que brote da terra.
Da citação que faz, no vídeo, de Francis Ponge, sairia o título de um livro seu: Mundo mudo.
Em O Estado de S.Paulo, dois de seus amigos escreveram, elevando bastante o nível das notícias da imprensa diária: Mariana Ianelli falou da poesia, "Um olhar sobre a obra de Donizete Galvão", em 31 de janeiro, e Humberto Werneck, da amizade e da convivência, "Um artista do convívio", no dia 2.

Ainda sobre a convivência: no texto anterior deste blogue, incluí algumas das fotos que tirei de Donizete. Nesta ao lado, de 2007, anterior ao primeiro problema cardíaco que teve, ele abre um sorriso tão grande que decidi resgatá-la. Era aniversário de Veronica Stigger. Em pé, está o poeta Paulo Ferraz. Do fundo até chegar ao sorriso do poeta, estão a esposa de Paulo, Fernanda Crancianionova, a psicanalista Elaine Armenio, o filósofo Luiz Repa.


Mais uma do último lançamento, de O homem inacabado, em 2010, com Fabio Weintraub.
Termino também esta nota com a lembrança de que é necessário recolher sua obra para que não não cessem os leitores desta poesia. 
Talvez o melhor elogio fúnebre que se lhe possa fazer é o de que encontrará ainda mais leitores daqui em diante do que o fez até agora.



P.S.:  Vejo agora que Tarso de Melo fez uma lista com referência a textos sobre Donizete Galvão: http://tarsodemelo.wordpress.com/2014/02/05/presenca-ausencia-de-donizete-galvao/