O deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS) ganhou
recentemente um prêmio de racista do ano pela organização Survival, de defesa dos
povos indígenas. A “distinção” ocorreu em virtude de discursos proferidos
em 2013, descobertos no início de 2014.
O primeiro ocorreu em 29 de novembro. Em audiência pública da Comissão de
Agricultura da Câmara dos Deputados no município de Vicente Dutra
(RS), com o tema da demarcação de terras indígenas, o parlamentar
atacou, diante de seu público de produtores rurais, o Secretário-geral da
Presidência: “O Gilberto Carvalho também é
ministro da presidenta Dilma. É ali que
estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que não presta ali
está aninhado, e eles têm a direção e o comando do governo”. Outro deputado, Alceu
Moreira (PMDB/RS), também aparece no vídeo, vituperando as demarcações de
terras indígenas. Segundo a Constituição, deveriam ter sido realizadas até
1993, mas o parlamentar, em conflito evidente com a lógica e a linha
cronológica, acha que estão sendo feitas “de repente”.
Em razão do “leilão da
resistência”, que tinha como plano financiar as ações anti-indígenas dos
ruralistas, Heinze voltou a discursar contra as
minorias. Era 7 de dezembro, em Campo
Grande (MS). O deputado novamente
criticou Gilberto Carvalho e o governo de Dilma Rousseff:
Tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver nosso problema [aplausos]
Imagino que houve diversos discursos semelhantes, mas somente
esses vieram à tona. Um dos pontos de insensatez, que provavelmente deve ser o
que os tornam mais convincentes para o público conivente, é a ideia de que tais
minorias estão sendo realmente atendidas, como se este governo federal fosse,
de fato, pró-indígena... Talvez ele não seja suficientemente contrário aos
índios, para tais pessoas, que provavelmente desejam ações mais radicais.
Em 27 de fevereiro deste ano, foi protocolada, por lideranças indígenas
e quilombolas, bem como por indigenistas e outras organizações da sociedade
civil, uma representação na
Procuradoria-Geral da República contra Heinze e Moreira.
Há tantos pontos interessantes nesse desnudamento do perfil
essencialmente contrário aos direitos humanos desse ruralismo brasileiro.
Heinze afirmou, depois de ser flagrado, que se “excedeu” no
discurso, mas é interessante ressaltar os elementos de sua lista de “tudo
que não presta” (“tudo”, e não todos; não podemos dizer que ele homenageia a
dignidade dessas pessoas). O que une quilombolas,
índios, gays, lésbicas, negros, sem terra? Tratar-se-ia de uma lista arbitrária
como a que Borges menciona em O idioma analíticode John Wilkins? Certamente
que não, pois deixa de provocar o riso. E não é arbitrária: há, em certo
sentido, um espaço comum onde se encontram os enumerados (lembro agora de
Foucault). Todos os sujeitos invocados são
o outro em relação a poderes que têm classe social, gênero e raça.
Já escrevi neste blogue ("Sexualidades que sedesviam da direita:
Bolsonaro e a medicina legal"), a propósito de um deputado federal do
Rio de Janeiro que, historicamente, o ensino jurídico, no Brasil, foi racista e
homofóbico, doutrinando que a preferência por relações sexuais entre pessoas de
etnias diferentes (chamadas, significativamente, de cromoinversão e
etnoinversão), como também pelas relações entre pessoas de mesmo sexo, eram
perversões.
Provavelmente o mesmo problema pode ser encontrado na história do
ensino de medicina, mas não tenho elementos para afirmá-lo.
Citei o manual de medicina legal de Hélio Gomes, da edição de
1992, que explica uma das consequências terríveis que a cromoinversão geraria:
Há casais cromo-invertidos, casados há muitos anos, com filhos de epiderme diversa assim como o tipo de cabelo, analisado em sua qualidade. Esses filhos podem se constituir numa constante preocupação, pois os pais temem que a diferença de cor dos filhos tenha conseqüências graves no futuro.
A homossexualidade possuiria causas igualmente
terríveis:
Perturbações e deficiências mentais, histerismo, esquizofrenia, senilidade, epilepsia, personalidade psicopática, debilidade mental, etc. A anomalia sexual é uma conseqüência, um sintoma das perturbações psíquicas.
Lembrei dos antecedentes em Nina Rodrigues. Mas tais ideias não se
extinguiram de todo, infelizmente. Leiamos sobre os “transtornos de
personalidade”, segundo o livro Medicina Legal de Celso Luiz Martins
(5a ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 p. 123), que incluem
tanto homossexualismo quanto a cromoinversão ("atração erótica de certas
pessoas por outras de cor diferente") e a etnoinversão ("manifestação
erótica por pessoas de raças diferentes").
Para não me acusarem de apontar apenas publicações do Sudeste, que
seria uma região mais reacionária, lembro desta obra de professores da
Universidade Federal de Alagoas, Gerson Odilon Pereira, e Luís Carlos
Buarque Gusmão, Medicina Legal. Entre as
anomalias sexuais, estão as “inversões”, que são as relações entre pessoas do
mesmo sexo, como as de raças diferentes e as de cores diferentes. Creio que
Gobineau, um dos teóricos do racismo “científico” do século XIX, encontraria o
que reconhecer neste livro.
Tal ex-embaixador da França no Brasil foi um dos autores que
influenciaram o ditador alemão que transformou câmaras de gás em política
pública. Por essa razão, destaco este exemplo de objetividade científica do
livro dos professores da UFAL:
A e B homossexuais assumidos, ambos trancam-se numa sala para cometer suicídio e B, abre a torneira de gás.a - B sobrevive e A morre. Homicídiob– B morre e A sobrevive. Induzimento ao suicídio
Essas coisas são estudadas por quem deseja passar em certos
concursos públicos. Deixo para outros pesquisarem as provas, que devem mostrar
como essas coisas são perguntadas, em que os postulantes a cargos do Estado
brasileiro devem mostrar que sabem o que o poder público deseja fazer. No
submundo didático das apostilas de concurso, tais lições racistas e homofóbicas
perduram, pelo que pude ver na internet.
Aqueles dois preconceitos por vezes se amalgamam ainda mais
intensamente. Certa delegada de polícia em São
Paulo cria uma grande categoria, “inversão ou homossexualismo”, na qual
aparecem tanto práticas homossexuais quanto a cromoinversão (“prazer
sexual com pessoas de outra cor”) e a etnoinversão (“prazer sexual com pessoas
de outra raça”).
Escrevi acima que a lista de Heinze não era arbitrária, pois as
categorias enumeradas eram o outro em relação a poderes burgueses, brancos, patriarcais. E que havia um espaço comum a
elas, em certo sentido, em sua posição na relação subordinada com aqueles
poderes.
No entanto, um espaço comum entre essas minorias,
entendido como possibilidade de articulação e ação conjunta, é algo que ainda deve ser construído, e essa deveria ser a tarefa mais importante de uma
política de esquerda.
P.S.: Ainda não tratei disto no blogue, mas estou
entre vários que participam de uma mobilização nacional em prol dos direitos e
terras indígenas: Índio é nós. Entre os participantes,
estão vários nomes e instituições notáveis, como Manuela Carneiro da
Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Deborah Duprat, José Celso Martinez Corrêa,
Gilberto Gil, Alfredo Bosi, o CTI, o ISA, o IPMDS, a AJD e vários outros: http://www.indio-eh-nos.eco.br/apresentacao/.
Trata-se de nomes de diferentes campos e regiões. Creio
que a campanha deverá gerar espaços comuns, em que índios e não índios
possam se articular contra a política e o Estado que figuras como Heinze
perpetram.
Acima, vê-se a marca criada por André Vallias e Age de Carvalho.
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