O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 23 de março de 2014

Tudo o que não presta, medicina legal, os índios


O deputado federal Luis Carlos Heinze (PP/RS) ganhou recentemente um prêmio de racista do ano pela organização Survival, de defesa dos povos indígenas. A “distinção” ocorreu em virtude de discursos proferidos em 2013, descobertos no início de 2014.
O primeiro ocorreu em 29 de novembro. Em audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados no município de Vicente Dutra (RS), com o tema da demarcação de terras indígenas, o parlamentar atacou, diante de seu público de produtores rurais, o Secretário-geral da Presidência: “O Gilberto Carvalho também é ministro da presidenta Dilma. É ali que estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que não presta ali está aninhado, e eles têm a direção e o comando do governo”. Outro deputado, Alceu Moreira (PMDB/RS), também aparece no vídeo, vituperando as demarcações de terras indígenas. Segundo a Constituição, deveriam ter sido realizadas até 1993, mas o parlamentar, em conflito evidente com a lógica e a linha cronológica, acha que estão sendo feitas “de repente”.
Em razão do “leilão da resistência”, que tinha como plano financiar as ações anti-indígenas dos ruralistas, Heinze voltou a discursar contra as minorias. Era 7 de dezembro, em Campo Grande (MS). O deputado novamente criticou Gilberto Carvalho e o governo de Dilma Rousseff:
Tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver nosso problema [aplausos]
Imagino que houve diversos discursos semelhantes, mas somente esses vieram à tona. Um dos pontos de insensatez, que provavelmente deve ser o que os tornam mais convincentes para o público conivente, é a ideia de que tais minorias estão sendo realmente atendidas, como se este governo federal fosse, de fato, pró-indígena... Talvez ele não seja suficientemente contrário aos índios, para tais pessoas, que provavelmente desejam ações mais radicais.
Em 27 de fevereiro deste ano, foi protocolada, por lideranças indígenas e quilombolas, bem como por indigenistas e outras organizações da sociedade civil, uma representação na Procuradoria-Geral da República contra Heinze e Moreira.
Há tantos pontos interessantes nesse desnudamento do perfil essencialmente contrário aos direitos humanos desse ruralismo brasileiro. Heinze afirmou, depois de ser flagrado, que se “excedeu” no discurso, mas é interessante ressaltar os elementos de sua lista de “tudo que não presta” (“tudo”, e não todos; não podemos dizer que ele homenageia a dignidade dessas pessoas). O que une quilombolas, índios, gays, lésbicas, negros, sem terra? Tratar-se-ia de uma lista arbitrária como a que Borges menciona em O idioma analíticode John Wilkins? Certamente que não, pois deixa de provocar o riso. E não é arbitrária: há, em certo sentido, um espaço comum onde se encontram os enumerados (lembro agora de Foucault). Todos os sujeitos invocados são o outro em relação a poderes que têm classe social, gênero e raça.
Já escrevi neste blogue ("Sexualidades que sedesviam da direita: Bolsonaro e a medicina legal"), a propósito de um deputado federal do Rio de Janeiro que, historicamente, o ensino jurídico, no Brasil, foi racista e homofóbico, doutrinando que a preferência por relações sexuais entre pessoas de etnias diferentes (chamadas, significativamente, de cromoinversão e etnoinversão), como também pelas relações entre pessoas de mesmo sexo, eram perversões.
Provavelmente o mesmo problema pode ser encontrado na história do ensino de medicina, mas não tenho elementos para afirmá-lo.
Citei o manual de medicina legal de Hélio Gomes, da edição de 1992, que explica uma das consequências terríveis que a cromoinversão geraria:
Há casais cromo-invertidos, casados há muitos anos, com filhos de epiderme diversa assim como o tipo de cabelo, analisado em sua qualidade. Esses filhos podem se constituir numa constante preocupação, pois os pais temem que a diferença de cor dos filhos tenha conseqüências graves no futuro.
A homossexualidade possuiria causas igualmente terríveis:

Perturbações e deficiências mentais, histerismo, esquizofrenia, senilidade, epilepsia, personalidade psicopática, debilidade mental, etc. A anomalia sexual é uma conseqüência, um sintoma das perturbações psíquicas.
Lembrei dos antecedentes em Nina Rodrigues. Mas tais ideias não se extinguiram de todo, infelizmente. Leiamos sobre os “transtornos de personalidade”, segundo o livro Medicina Legal de Celso Luiz Martins (5a ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 p. 123), que incluem tanto homossexualismo quanto a cromoinversão ("atração erótica de certas pessoas por outras de cor diferente") e a etnoinversão ("manifestação erótica por pessoas de raças diferentes").
Para não me acusarem de apontar apenas publicações do Sudeste, que seria uma região mais reacionária, lembro desta obra de professores da Universidade Federal de Alagoas, Gerson Odilon Pereira, e Luís Carlos Buarque Gusmão, Medicina LegalEntre as anomalias sexuais, estão as “inversões”, que são as relações entre pessoas do mesmo sexo, como as de raças diferentes e as de cores diferentes. Creio que Gobineau, um dos teóricos do racismo “científico” do século XIX, encontraria o que reconhecer neste livro.
Tal ex-embaixador da França no Brasil foi um dos autores que influenciaram o ditador alemão que transformou câmaras de gás em política pública. Por essa razão, destaco este exemplo de objetividade científica do livro dos professores da UFAL:
A e B homossexuais assumidos, ambos trancam-se numa sala para cometer suicídio e B, abre a torneira de gás.a - B sobrevive e A morre. Homicídiob– B morre e A sobrevive. Induzimento ao suicídio
Essas coisas são estudadas por quem deseja passar em certos concursos públicos. Deixo para outros pesquisarem as provas, que devem mostrar como essas coisas são perguntadas, em que os postulantes a cargos do Estado brasileiro devem mostrar que sabem o que o poder público deseja fazer. No submundo didático das apostilas de concurso, tais lições racistas e homofóbicas perduram, pelo que pude ver na internet.
Aqueles dois preconceitos por vezes se amalgamam ainda mais intensamente. Certa delegada de polícia em São Paulo cria uma grande categoria, “inversão ou homossexualismo”, na qual aparecem tanto práticas homossexuais quanto a cromoinversão (“prazer sexual com pessoas de outra cor”) e a etnoinversão (“prazer sexual com pessoas de outra raça”).
Escrevi acima que a lista de Heinze não era arbitrária, pois as categorias enumeradas eram o outro em relação a poderes burgueses, brancos, patriarcais. E que havia um espaço comum a elas, em certo sentido, em sua posição na relação subordinada com aqueles poderes.

No entanto, um espaço comum entre essas minorias, entendido como possibilidade de articulação e ação conjunta, é algo que ainda deve ser construído, e essa deveria ser a tarefa mais importante de uma política de esquerda.


P.S.: Ainda não tratei disto no blogue, mas estou entre vários que participam de uma mobilização nacional em prol dos direitos e terras indígenas: Índio é nós. Entre os participantes, estão vários nomes e instituições notáveis, como Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Deborah Duprat, José Celso Martinez Corrêa, Gilberto Gil, Alfredo Bosi, o CTI, o ISA, o IPMDS, a AJD e vários outros: http://www.indio-eh-nos.eco.br/apresentacao/. 
Trata-se de nomes de diferentes campos e regiões. Creio que a campanha deverá gerar espaços comuns, em que índios e não índios possam se articular contra a política e o Estado que figuras como Heinze perpetram.

Acima, vê-se a marca criada por André Vallias e Age de Carvalho.


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