No meu breve texto, "Direitos indígenas, provincianismo constitucional e o novo constitucionalismo latino-americano", coloquei entre parênteses esse novo constitucionalismo e não considerei que ele estivesse, de fato, presente no Brasil.
A novidade desse constitucionalismo seria ele estar antropologicamente mais bem informado e, por essa razão, propor-se como uma ampliação da democracia, reconhecendo a autonomia dos povos indígenas.
Como era de se esperar, continua em disputa a efetividade desse novo constitucionalismo. Abaixo, pode-se ver um pequeno excerto do texto.
Pensemos na última questão: o que se chama
de novo constitucionalismo latino-americano compreenderia a Constituição de
1988, que surgiu, como outras no continente, em resposta ao fim das ditaduras
militares apoiadas pelos EUA no contexto da Guerra Fria? Em uma acepção larga,
a Constituição brasileira o integraria. Segundo a definição “empírica e
descritiva” de Ana María
Bejarano e Renata Segura[6], o novo constitucionalismo
abarca os processos constituintes desde o que deu origem à Constituição
brasileira de 1988, que foram realizados de “maneira participativa”, com
”eleição popular dos constituintes” e, em certos casos, com o referendo da nova
Constituição.
No entanto, mais
detalhada e precisa parece a classificação adotada por César Augusto Baldi[7], que vê mais de uma fase
nesse período: um constitucionalismo pluricultural, de 1989 a 2005, com a
internalização da Convenção n. 169 de Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que dispõe sobre a autonomia dos povos indígenas (ou povos originários)
e quer garantir seus direitos e terras, rompendo com padrões integracionistas
(isto é, de dissolução das culturas indígenas na dominante). Neste caso, temos os casos de Colômbia, Peru,
Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina (que altera a constituição em 1994),
Paraguai e México. De 2006 a 2009, Baldi vê um “constitucionalismo
plurinacional”, no Equador e na Bolívia, com o reconhecimento da autonomia dos
povos indígenas como nações.
A Constituição
brasileira, apesar dos artigos 231 e 232, não entraria dentro desse quadro,
tendo em vista a garantia mais tímida dessa autonomia, que não chega a uma
“radical aplicação da teoria democrática da Constituição”, inspirada por
“teorias garantistas”, que determinados juristas entendem como próprio desse
novo constitucionalismo; é a visão, por exemplo, de Viciano Pastor e Martínez Dalmau, que fazem o recorte
a partir do início da década de 1990[8].
Outros autores creem que a importância da
questão indígena na Bolívia e no Equador não seria “extrapolável” para o
restante da América Latina; outras seriam as ideias “aplicáveis a todas as
realidades”, a saber: “encampação da
teoria neoconstitucional, participação popular, não esvaziamento do texto
constitucional, força do poder constituinte e ativismo judicial”[9]. Tais juristas,
lamentavelmente, são do Estado latino-americano com maior diversidade em termos
de populações e idiomas indígenas, isto é, o Brasil, em que, ademais, vem
ocorrendo uma série de ataques oficiais e não oficiais aos povos indígenas, incluindo
propostas de emenda constitucional para retirar direitos[10].
Um dos maiores antropólogos vivos, Manuela Carneiro da
Cunha, em abril de 2014, no lançamento da campanha nacional Índio é Nós, denunciou
que estamos em um momento inédito na história brasileira, porque estão sendo
preparadas, de fato, leis anti-indígenas, o que não se via desde a colonização[11].
Nesse contexto, que a maior parte dos
constitucionalistas brasileiros não veja esse ataque aos direitos dos povos
indígenas como uma “questão importante” é um sintoma de como a matriz
etnocêntrica da cultura jurídica brasileira contamina o soi-disant pensamento constitucional nesse país, e que ainda
estamos diante de um constitucionalismo muito velho, antropologicamente
desinformado, e que não está à altura da Constituição brasileira. Um
pensamento, pois, colonizado e colonizador.
Crítica semelhante pode ser feita, por exemplo, a
Roberto Gargarella e Christian Courtis, que também procuram reduzir
geopoliticamente as questões indígenas na América Latina:
[...] podemos plantearnos una pregunta a futuro,
pertinente para muchos de los restantes países latinoamericanos que, a
diferencia de los casos del Estado Plurinacional de Bolivia o Guatemala, por
ejemplo, no parecen estar fundamentalmente marcados por la marginación de lós grupos
indígenas. ¿Qué problema debería escoger el futuro constituyente
latinoamericano, como problema-objetivo a atender a través de una eventual
reforma de la Constitución? ¿Tal vez el problema de la desigualdad, que viene
afectando de modo decisivo el desarrollo constitucional de la región?
Posiblemente, pero en todo caso la pregunta está abierta, y es una que el
constituyente no puede dejar simplemente de lado, como a veces ha hecho.[12]
É lamentável que uma afirmação desse tipo
venha de autores argentinos, quando é tão conhecida a situação de terrível
marginalização que os povos originários naquele país continuam a enfrentar,
mesmo após a democratização. Se a questão central é realmente a desigualdade,
porque diversos constitucionalistas preferem ignorar a situação extremamente
desigual em que continuam a viver os povos indígenas?
Tal desigualdade, em primeiro lugar, está
no desrespeito no direito cultural à própria identidade: de que seus valores e
formas de viver sejam respeitados. Na Constituição brasileira, esse direito
está previsto, o que foi fruto da intensa mobilização das organizações
indígenas e das entidades de não-índios comprometidas com a defesa desses
povos, em reação ao genocídio promovido pela ditadura militar.
O que, no entanto, parece-me de fato
colocar a Constituição brasileira fora desse novo constitucionalismo é
justamente a falta de mecanismos de democracia direta que respondam à autonomia
e à identidade cultural desses povos; nesse sentido, para tomar a expressão de
César Augusto Baldi no estudo antes citados, ele ainda não é completamente
descolonizador – o que é uma condição imprescindível para que seja realmente
novo, tendo em vista que o passado do continente é a colonização, e realmente
latino-americano. É necessário que se pesquise mais o constitucionalismo velho
latino-americano sob o prisma dos estudos pós-coloniais que, na América Latina,
destacam a continuidade entre a situação colonial e os processos de construção
nacional[13].
A esse respeito, deve-se lembrar que,
notadamente em relação aos povos indígenas, a colonização ainda não acabou: em
Estados como o Brasil e a Argentina, a relação do Estado e do chamado agronegócio
com esses povos ainda é a de espoliação e violência.
Dessa forma, parece-me acertado afirmar que a
questão da democracia não pode ser colocada sem os direitos dos povos indígenas
e de outras populações tradicionais.
[6] BEJARANO, Ana María; SEGURA, Renata. Asambleas constituyentes y democracia: una lectura crítica del nuevo
constitucionalismo en la región andina. Colombia
Internacional, n. 79, p. 19-48, septiembre a diciembre de 2013.
[7] BALDI, César Augusto. Do constitucionalismo moderno ao
novo constitucionalismo latinoamericano descolonizador. BELLO, Enzo (org.) Ensaios críticos sobre direitos humanos e
constitucionalismo. Caxias do Sul: Educs, 2012, p. 127-150.
[8] VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos generales del
nuevo constitucionalismo latinoamericano. ÁVILA LINZÁN, Luis Fernando (Ed.). Política, justicia y Constitución.
Quito: Corte Constitucional para el Período de Transición, 2012, p. 157-186.
[9] OLIVEIRA, Daltro Alberto Jaña Marques de; MAGRANI, Eduardo Jose Guedes; VIEIRA,
Jose Ribas; GUIMARÃES, José Miguel Gomes de Faria. O novo constitucionalismo
latino-americano: paradigmas e contradições. Revista Quaestio Iuris, vol. 6, nº 2. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/9316.
[10] Sobre a questão, ver o estudo das antropólogas Artionka Capiberibe e
Oiara Bonilla, O rolo compressor ruralista, publicado em Brasil de Fato, 17 dez. 2013, disponível em
http://www.brasildefato.com.br/node/26920.
[11] Índio é Nós constitui-se numa rede de entidades e pessoas físicas para defesa dos
direitos dos povos indígenas no Brasil. A declaração de Manuela Carneiro da
Cunha pode ser lida nesta ligação:
http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/.
[12] GARGARELLA, Roberto; COURTIS, Christian. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: promesas e interrogantes.
Santiago de Chile: Naciones Unidas, Introducción, p. 7-44, 2009, p. 11.
[13] Na historiografia latino-americana, Verdo e Vidal opõem essa tendência à
dos estudos que veem nos povos indígenas atores plenos da formação do Estado
nacional (VERDO, Geneviève; VIDAL, Dominique. L’ethnicité en
Amérique latine: un approfondissement du répertoire démocratique? Critique internationale. Paris: SciencesPo., n. 57, octobre-décembre 2012, p. 9-22). Se o papel desses vários povos variou muito de acordo com cada um deles
e cada um dos Estados latino-americanos, parece-me que a perspectiva da
continuidade é mais adequada para o Brasil, tendo em vista o perfil
historicamente integracionista da legislação e da política indigenistas.
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