O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 14 de junho de 2014

Constitucionalismo antropologicamente informado, democracia e América Latina

O jurista e professor Enzo Bello me convidou para escrever em uma coletânea que ele organiza sobre o novo constitucionalismo latino-americano. Como participo da campanha Índio é nós, e os documentos da ditadura militar me levaram aos problemas da espoliação das terras dos povos indígenas e do genocídio, aceitei escrever para tratar dessas questões.
No meu breve texto, "Direitos indígenas, provincianismo constitucional e o novo constitucionalismo latino-americano", coloquei entre parênteses esse novo constitucionalismo e não considerei que ele estivesse, de fato, presente no Brasil.
A novidade desse constitucionalismo seria ele estar antropologicamente mais bem informado e, por essa razão, propor-se como uma ampliação da democracia, reconhecendo a autonomia dos povos indígenas.
Como era de se esperar, continua em disputa a efetividade desse novo constitucionalismo. Abaixo, pode-se ver um pequeno excerto do texto.



Pensemos na última questão: o que se chama de novo constitucionalismo latino-americano compreenderia a Constituição de 1988, que surgiu, como outras no continente, em resposta ao fim das ditaduras militares apoiadas pelos EUA no contexto da Guerra Fria? Em uma acepção larga, a Constituição brasileira o integraria. Segundo a definição “empírica e descritiva” de Ana María Bejarano e Renata Segura[6], o novo constitucionalismo abarca os processos constituintes desde o que deu origem à Constituição brasileira de 1988, que foram realizados de “maneira participativa”, com ”eleição popular dos constituintes” e, em certos casos, com o referendo da nova Constituição.
No entanto, mais detalhada e precisa parece a classificação adotada por César Augusto Baldi[7], que vê mais de uma fase nesse período: um constitucionalismo pluricultural, de 1989 a 2005, com a internalização da Convenção n. 169 de Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe sobre a autonomia dos povos indígenas (ou povos originários) e quer garantir seus direitos e terras, rompendo com padrões integracionistas (isto é, de dissolução das culturas indígenas na dominante).  Neste caso, temos os casos de Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina (que altera a constituição em 1994), Paraguai e México. De 2006 a 2009, Baldi vê um “constitucionalismo plurinacional”, no Equador e na Bolívia, com o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas como nações.
A Constituição brasileira, apesar dos artigos 231 e 232, não entraria dentro desse quadro, tendo em vista a garantia mais tímida dessa autonomia, que não chega a uma “radical aplicação da teoria democrática da Constituição”, inspirada por “teorias garantistas”, que determinados juristas entendem como próprio desse novo constitucionalismo; é a visão, por exemplo, de Viciano Pastor e Martínez Dalmau, que fazem o recorte a partir do início da década de 1990[8].
Outros autores creem que a importância da questão indígena na Bolívia e no Equador não seria “extrapolável” para o restante da América Latina; outras seriam as ideias “aplicáveis a todas as realidades”, a saber: “encampação da teoria neoconstitucional, participação popular, não esvaziamento do texto constitucional, força do poder constituinte e ativismo judicial[9]. Tais juristas, lamentavelmente, são do Estado latino-americano com maior diversidade em termos de populações e idiomas indígenas, isto é, o Brasil, em que, ademais, vem ocorrendo uma série de ataques oficiais e não oficiais aos povos indígenas, incluindo propostas de emenda constitucional para retirar direitos[10].
Um dos maiores antropólogos vivos, Manuela Carneiro da Cunha, em abril de 2014, no lançamento da campanha nacional Índio é Nós, denunciou que estamos em um momento inédito na história brasileira, porque estão sendo preparadas, de fato, leis anti-indígenas, o que não se via desde a colonização[11].
Nesse contexto, que a maior parte dos constitucionalistas brasileiros não veja esse ataque aos direitos dos povos indígenas como uma “questão importante” é um sintoma de como a matriz etnocêntrica da cultura jurídica brasileira contamina o soi-disant pensamento constitucional nesse país, e que ainda estamos diante de um constitucionalismo muito velho, antropologicamente desinformado, e que não está à altura da Constituição brasileira. Um pensamento, pois, colonizado e colonizador.
Crítica semelhante pode ser feita, por exemplo, a Roberto Gargarella e Christian Courtis, que também procuram reduzir geopoliticamente as questões indígenas na América Latina:

[...] podemos plantearnos una pregunta a futuro, pertinente para muchos de los restantes países latinoamericanos que, a diferencia de los casos del Estado Plurinacional de Bolivia o Guatemala, por ejemplo, no parecen estar fundamentalmente marcados por la marginación de lós grupos indígenas. ¿Qué problema debería escoger el futuro constituyente latinoamericano, como problema-objetivo a atender a través de una eventual reforma de la Constitución? ¿Tal vez el problema de la desigualdad, que viene afectando de modo decisivo el desarrollo constitucional de la región? Posiblemente, pero en todo caso la pregunta está abierta, y es una que el constituyente no puede dejar simplemente de lado, como a veces ha hecho.[12]

É lamentável que uma afirmação desse tipo venha de autores argentinos, quando é tão conhecida a situação de terrível marginalização que os povos originários naquele país continuam a enfrentar, mesmo após a democratização. Se a questão central é realmente a desigualdade, porque diversos constitucionalistas preferem ignorar a situação extremamente desigual em que continuam a viver os povos indígenas?
Tal desigualdade, em primeiro lugar, está no desrespeito no direito cultural à própria identidade: de que seus valores e formas de viver sejam respeitados. Na Constituição brasileira, esse direito está previsto, o que foi fruto da intensa mobilização das organizações indígenas e das entidades de não-índios comprometidas com a defesa desses povos, em reação ao genocídio promovido pela ditadura militar.
O que, no entanto, parece-me de fato colocar a Constituição brasileira fora desse novo constitucionalismo é justamente a falta de mecanismos de democracia direta que respondam à autonomia e à identidade cultural desses povos; nesse sentido, para tomar a expressão de César Augusto Baldi no estudo antes citados, ele ainda não é completamente descolonizador – o que é uma condição imprescindível para que seja realmente novo, tendo em vista que o passado do continente é a colonização, e realmente latino-americano. É necessário que se pesquise mais o constitucionalismo velho latino-americano sob o prisma dos estudos pós-coloniais que, na América Latina, destacam a continuidade entre a situação colonial e os processos de construção nacional[13].
A esse respeito, deve-se lembrar que, notadamente em relação aos povos indígenas, a colonização ainda não acabou: em Estados como o Brasil e a Argentina, a relação do Estado e do chamado agronegócio com esses povos ainda é a de espoliação e violência.
Dessa forma, parece-me acertado afirmar que a questão da democracia não pode ser colocada sem os direitos dos povos indígenas e de outras populações tradicionais.


[6] BEJARANO, Ana María; SEGURA, Renata. Asambleas constituyentes y democracia: una lectura crítica del nuevo constitucionalismo en la región andina. Colombia Internacional, n. 79, p. 19-48, septiembre a diciembre de 2013.
[7] BALDI, César Augusto. Do constitucionalismo moderno ao novo constitucionalismo latinoamericano descolonizador. BELLO, Enzo (org.) Ensaios críticos sobre direitos humanos e constitucionalismo. Caxias do Sul: Educs, 2012, p. 127-150.
[8] VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latinoamericano. ÁVILA LINZÁN, Luis Fernando (Ed.). Política, justicia y Constitución. Quito: Corte Constitucional para el Período de Transición, 2012, p. 157-186.
[9] OLIVEIRA, Daltro Alberto Jaña Marques de; MAGRANI, Eduardo Jose Guedes; VIEIRA, Jose Ribas; GUIMARÃES, José Miguel Gomes de Faria. O novo constitucionalismo latino-americano: paradigmas e contradições. Revista Quaestio Iuris, vol. 6, nº 2. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/9316.
[10] Sobre a questão, ver o estudo das antropólogas Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla, O rolo compressor ruralista, publicado em Brasil de Fato, 17 dez. 2013, disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/26920.
[11] Índio é Nós constitui-se numa rede de entidades e pessoas físicas para defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil. A declaração de Manuela Carneiro da Cunha pode ser lida nesta ligação: http://www.indio-eh-nos.eco.br/2014/05/03/os-videos-do-lancamento-paulista-de-indio-e-nos/.
[12] GARGARELLA, Roberto; COURTIS, Christian. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: promesas e interrogantes. Santiago de Chile: Naciones Unidas, Introducción, p. 7-44, 2009, p. 11.
[13] Na historiografia latino-americana, Verdo e Vidal opõem essa tendência à dos estudos que veem nos povos indígenas atores plenos da formação do Estado nacional (VERDO, Geneviève; VIDAL, Dominique. L’ethnicité en Amérique latine: un approfondissement du répertoire démocratique? Critique internationale. Paris: SciencesPo., n. 57, octobre-décembre 2012, p. 9-22). Se o papel desses vários povos variou muito de acordo com cada um deles e cada um dos Estados latino-americanos, parece-me que a perspectiva da continuidade é mais adequada para o Brasil, tendo em vista o perfil historicamente integracionista da legislação e da política indigenistas.

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