O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXIX: FIESP, as empresas e a polícia política

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" fez avançar nosso conhecimento sobre a relação entre a FIESP e a repressão política, com a revelação de que representante da Federação (e também do Consulado dos EUA) frequentava o DOPS, às vezes de madrugada, horário em que não era incomum ocorrerem torturas.
A Comissão Municipal da Verdade trouxe a denúncia de que o General Amaury Kruel, que comandava o II Exército, foi subornado pela FIESP para aderir ao golpe.
A Frente de Esculacho Popular realizou ato em frente à FIESP por causa de seu apoio à repressão política, que foi, por sinal, objeto de um documentário importante de Chaim Litewski, "Cidadão Boilesen", que leva o nome do empresário da Ultragaz que ajudou a coletar dinheiro do empresariado para financiar a Operação Bandeirante (OBAN) e gostava de assistir às sessões de tortura.
A OBAN, lançada em julho de 1979 para combater os grupos da esquerda armada (sugiro ver este breve texto de Mariana Joffily), foi o laboratório para a instituição dos Destacamentos de Operações de Informação - Centros de Operações de Defesa Interna (CODI-DOI), que a substituíram. Um dos seus agentes, Marival Chaves Dias do Canto, falou à Comissão Nacional da Verdade sobre tal centro de torturas.
São Paulo, nesse momento, estava na vanguarda da repressão, e ela foi criada informalmente, fora dos parâmetros mínimos do direito administrativo, exatamente durante a gestão, à frente da Secretaria de Segurança Pública, de Hely Lopes Meirelles, que foi o grande nome do direito administrativo brasileiro. Ele não foi, naturalmente, o primeiro jurista que, em nome do poder, não só viola o direito como ignora os próprios escritos.

Antes da ditadura militar, a espionagem sobre sindicatos envolvia o acompanhamento das conquistas salariais, que era uma das principais preocupações das empresas. A questão social nunca havia deixado de ser um problema da polícia.
Nesta Informação reservada do DOPS/SP, elaborada em 1963, vemos um dos vários documentos que se ocupam dos percentuais remuneratórios que as diferentes categorias de trabalhadores reivindicavam na Delegacia Regional do Trabalho e na Justiça do Trabalho.
Preocupava-se também com a possibilidade de que as conquistas de certa categoria pudessem servir de inspiração para outras. No documento ao lado, a que já me referi em outra nota, temos a menção a
[...] um caminho aberto para as demais categorias profissionais, as quais, em futuras lutas reivindicatórias, irão reivindicar e exigir dos empregadores as mesmas vantagens hoje obtidas pelos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Combustíveis, principalmente no que se refere ao salário-família, férias de 30 dias e, em alguns casos, o adicional por tempo de serviço. Portanto, finaliza a fonte, acha-se em aberto mais uma questão na luta reivindicatória do proletariado brasileiro.

Não é de se estranhar que, em 1963, dirigentes dos sindicatos patronais falassem em derrubar Goulart à força, em fazer o que chamavam de revolução.
A CNTI era a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria, que, desde o fim de 1961, contava com uma direção trabalhista-comunista e havia comandado greves gerais. Era uma das preocupações do empresariado: outro documento do Arquivo Público do Estado de São Paulo, um relatório do DOPS/SP de 14 de janeiro de 1964, mostra a preocupação com a presença comunista na CNTI e no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), e a possibilidade de eclosão de greves.
Mantenho a curiosa ortografia do documento de 1963, que encontrei há poucos anos:
Acontece que, nesse interim, o nosso observador estivera na séde da F.I.E.S.P., onde ouviu de vários líderes sindicais do grupo patronal, os quais, dizendo falar em nome da F.I.E.S.P., a cujo grupo de orientação de cúpula pertencem, afirmaram que "desta vêz, ou cooperavam para pôr ordem na situação social anarquizada pelo atual govêrno federal,  ou então partiriam para a revolução, de vêz que jamais iriam concordar com a imposição da C.N.T.I e "Pacto de Ação Conjunta".
Dado o golpe, sem praticamente nenhuma resistência expressiva, inclusive dos meios sindicais, o controle sobre os sindicatos multiplicou-se e diversos, milhares de nomes foram afastados por razões políticas. Já há diversos estudos sobre isso, e o Grupo de Trabalho relativo aos trabalhadores tem a missão de aprofundar as descobertas nesse campo. Eis o sítio correspondente na internet, ainda incompleto: http://trabalhadoresgtcnv.org.br
Quero lembrar de outra coisa nesta pequena nota. Durante a ditadura militar, existe toda uma correspondência das empresas com o DOPS/SP solicitando que a polícia resolva seus problemas trabalhistas, como greves, faltas e reivindicações salariais, bem como remetendo nomes de empregados que se sindicalizavam ou que se tornavam politicamente suspeitos.

Há diversos e diversos casos, e provavelmente podem ser encontrados em outros Estados uma correspondência análoga entre empresas e polícia. Como exemplo deste caso, a Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em 6 de novembro de 1978, remeteu à Divisão de Ordem Política do DOPS uma lista de professores "interessados em constituir uma associação de Professores da FAAP".
Essa correspondência poderia incluir o agradecimento a policiais que reprimissem greves; já incluí neste blogue a gratidão da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) de São Bernardo do Campo, em 14 de abril de 1970 ao então delegado titular de ordem política, Alcides Cintra Bueno Filho.

A polícia também atendia a telefonemas de empresários e diretores de empresas. No caso ao lado, a Auto Aviação Tânia, em 1976, queixou-se de que metade dos empregados não apareceu para trabalhar, o que "seria por descontentamento quanto ao percentual do aumento salarial e que teria como órgão incentivador o sindicato de classe", e que isso ocorreria com as "demais empresas", "uma por dia". Os policiais envolvidos com  a ordem social parecem ter-se incumbido do caso.
Não sei o que ocorreu com esses trabalhadores. Sabemos, porém, que a repressão a movimentos de reivindicação trabalhista poderia, em alguns casos, resultar em morte.

Foi o caso de Orocílio Martins Gonçalves, a que se refere o panfleto ao lado. Ele, nascido em 1954, foi assassinado pela Polícia Militar de Minas Gerais em 30 de julho de 1979 numa repressão a uma passeata de operários da construção civil em greve. Além do projétil da arma de fogo, o laudo de necropsia registrou marcas de agressões.
No Seminário Direito e Ditadura que o PET-Direito da UFSC organizou em 2010, dei uma palestra no dia em que Romeu Tuma faleceu. Sua memória havia sido bastante "higienizada" pela imprensa, inclusive por veículos de esquerda. Aproveitei e, como estava com vários arquivos no computador, fiz um fecho para minha fala com um documento dessa época, que mostrava esse tipo de função trabalhista da polícia política.

O banco Itaú agradece ao Delegado Tuma "pela magnífica atuação à frente desse Departamento, colaborando com isso para o normal desenvolvimento das atividades deste Banco". Os funcionários da madrugada lograram ir trabalhar. Tratava-se de uma grande greve de bancários, que irrompeu no Rio Grande do Sul em setembro de 1979 foi seguida no Rio de Janeiro e em São Paulo, com uma adesão menor nesta cidade.
Quando se trata da legitimidade social da ditadura militar, um dos caminhos foi o da eficiência econômica, caminho que acabou de degringolar no governo Figueiredo. O outro, essa função repressiva dos trabalhadores que tornava o regime simpático às "classes produtoras", para usar uma expressão empregada pela FIESP, e mostra como parte da sociedade se relacionava e colaborava com o regime autoritário.

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