O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

V Seminário do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais: a academia e a ação coletiva

Participei do V Seminário do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), que ocorreu na Faculdade de Direito de Vitória (ES) entre 22 e 26 de setembro de 2015. Eu havia tomado parte de reuniões preparatórias do Instituto, porém nunca dos seminários.
O IPDMS vai de encontro ao que normalmente se faz no âmbito da academia jurídica, em primeiro lugar por ser realmente um instituto de pesquisa, e a "pesquisa", em faculdades de Direito, ainda é confundida, tantas vezes, com a mera busca de jurisprudência na internet.
Em segundo lugar, por recusar-se a qualquer encastelamento, mesmo nas torres de marfim dos fóruns.
Luiz Otávio Ribas, conselheiro do IPDMS, escreveu no Brasil de Fato sobre a abertura do evento, deixa bem clara essa orientação, enfatizando a pesquisa militante: "Chamada ao compromisso do estudo militante": http://www.brasildefato.com.br/node/33072
Os espaços de discussão aconteceram ao mesmo tempo, e perdi tanto o início quanto o final do seminário, que ainda serviu para o lançamento da plataforma da revista Insurgência. Mesmo assim, gostaria de levantar, sem me estender, alguns dos pontos positivos que consegui perceber:
  • O IPDMS leva realmente a sério o fato de que não são apenas os acadêmicos do Direito que produzem conhecimento sobre o Direito, ao contrário de associações epistemologicamente mais adeptas de reservas de mercado, como a ANPUH (que patrocinou isto - vejam a ligação). Dessa forma, havia coordenadores dos espaços de discussão e palestrantes que detinham diplomas em outras áreas.
  • O IPDMS leva a sério o propósito científico e político de não se guiar pelos medalhões, contrariando os procedimentos habituais na cultura jurídica brasileira de gerar homenagens ("estudos em homenagem a **", em que o homenageado praticamente não é citado, até porque não haveria nada mesmo a citar) e, assim, substituir o conhecimento científico pelo capital social.
  • O IPDMS aceitou trabalhos de graduandos, o que pode perfeitamente ser feito se a avaliação é séria. No espaço de discussão de que participei no seminário, todos eles tinham mérito científico e trouxeram novidades. Essa orientação contraria a política habitual das publicações científicas brasileiras, de (em submissão à burocracia federal e seus parâmetros de avaliação, que eu não seguia quando editor) vedar a publicação a quem não é doutor, ou seja, de trocar a qualidade pelo qualis.
  • O IPDMS sabe, o que boa parte da Academia não descobriu até hoje (seja por cegueira teórica ou por um propósito de dominação), que não existe inteligência apenas dentro das instituições universitárias. Dessa forma, organizações não governamentais estavam no seminário, bem como, evidentemente, os movimentos sociais.
  • O IPDMS sabe, ao contrário de boa parte dos professores de Direito (não ouso dizer pesquisadores, seria um desvio político, semântico e epistemológico), que os sujeitos sociais, por meio de suas práticas e seus discursos, criam Direito e saberes. Lembro de ter visto as Mães de Maio reclamando recentemente de certas pesquisas acadêmicas que as tomam apenas como "objeto" e de cujo resultado nem mesmo ficavam sabendo. Os movimentos estavam no seminário como sujeitos. Por sinal, no espaço de discussão de que participei, havia pesquisadores que estudavam a própria comunidade tradicional de que se originavam.
  • "A literatura é uma das fontes da pesquisa jurídica militante", lembrou Breno Bringel no minicurso Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina que ocorreu durante o evento. Com efeito, um dos livros lançados foram os cadernos de poesia militante e ocorreram dois saraus (participei do primeiro, lendo dois poemas do Cálcio, que lançarei nesta quinta em São Paulo).
  • Não pude ver o fim do minicurso, mas ele foi um dos exemplos no seminário de que o IPDMS sabe que o Brasil faz parte da América Latina, algo de que até mesmo alguns vizinhos não lembram, e tem muito a ganhar com as trocas teóricas e de práticas com os movimentos e autores de outras partes do continente.
  • O Instituto leva a sério, e pratica, a diversidade em termos de gênero e étnicos, e também regionais: vi gente do Rio Grande do Sul ao Pará; a presença do Nordeste é particularmente forte; parece mais fraca, porém, a de São Paulo.
Alexandre Bernardino Costa, em palestra, apontou com justeza que as teorias dos anos 1980 de direito crítico teriam que ser ultrapassadas. Quando eu era estudante de graduação (entrei na faculdade de direito em 1988), comprei a primeira reimpressão, de 1988, de O Direito achado na rua, com os textos do curso de extensão dado pela Universidade de Brasília, fortemente baseado em textos de Roberto Lyra Filho. Foi importante para mim, como estudante de graduação, especialmente em um curso fraco, com um currículo mal estruturado, de um tecnicismo falho até para os estreitos propósitos a que se destinava.
De 1988 para cá, é impressionante como os temas desse direito crítico se ampliaram (basta ver pelas ementas dos grupos de trabalho do Instituto) e como a conexão com os movimentos também cresceu. Coordenei com Diogo Justino uma roda de conversa sobre Direito, memória e justiça de transição (agradeço a Ricardo Pazello, da Secretaria Nacional do IPDMS, pelo convite!) e essa área é uma das áreas novas em relação a 1988.
Entre os documentos selecionados para a roda conversa, estava o "Bagulhão", carta que os presos políticos em São Paulo escreveram para o presidente do Conselho Federal da OAB em outubro de 1975, com o nome ou codinome de 233 agentes da repressão, denunciando diversos casos de tortura e execução extrajudicial pela ditadura militar. Amelinha Teles, no livro que a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" publicou com essa denúncia, escreveu que "A carta significa um não categórico ao esquecimento, escrita por um coletivo, num tempo em que o ato de se reunir, organizar e lembrar era proibido."
Creio que ela vai ao fundo da questão, pois o associativismo era vigiado, e as ações coletivas eram, de antemão, suspeitas. O mesmo ocorreu, em geral, na América Latina; cito agora Elizabeth Jelin: "En el plano nacional, em plena dictadura, estos movimientos eran expressiones de demandas que podían ser leídas como parte de la oposicion política y social al régimen." (Por los derechos: Mujeres y hombres en la acción colectiva, Buenos Aires: Nueva Trilce, 2011, organizado por ela, Sergio Caggiano e Laura Mombello).
Como estamos no Brasil em um momento em que, apesar do regime formalmente democrático, a ação coletiva é novamente enquadrada como suspeita pelos governos federal e estaduais, e os projetos legislativos vão no sentido da criminalização (leiam a nota técnica que a Associação Juízes para a Democracia elaborou sobre o projeto de lei antiterrorismo), creio que as atividades do Instituto vão na contramão tanto do que se faz preponderantemente na academia jurídica, quanto a contrapelo das vagas antidemocráticas da política institucional, o que demonstra a dupla necessidade - acadêmica e política - desse Instituto.

2 comentários:

  1. Pádua, muito obrigado por este relato que me emociona e dá forças para seguir adiante, agora com mais ombros em nosso cordão. Forte abraço!

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