O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXIX: Favelas e militarização da segurança, ou fortificar-se contra o próprio povo

Tentei fazer um curso sobre justiça de transição. No penúltimo trabalho, era necessário voltar ao tema da segurança pública, e escrevi um textinho (o limite era mínimo) que talvez interesse por causa do pequeno adendo que escrevi para cá, com referência a três documentos.
Dentro desse amplo campo da segurança, resolvi me concentrar na criminalização das favelas e de seus moradores. Como o trabalho exigia não só pesquisa e referência de periódicos da época da ditadura e também dos de hoje, além de diálogo com os textos da bibliografia do curso, tive de ser altamente sucinto.
Para os dias de hoje, referi-me especialmente à serie premiada de reportagens do jornal "O Dia" (escritas pela repórter Juliana Dal Piva) com a ONG Justiça Global sobre a ocupação militar das favelas no Rio de Janeiro em 2015. Para a época da ditadura militar, escolhi matérias do "Jornal do Brasil", que fazia oposição e publicava notícias críticas às políticas sociais do regime.
A moradia, em regra, não era tratada pelos governos daquela época como direito social, mas, segundo a doutrina de segurança nacional, como uma questão relativa ao binômio segurança e desenvolvimento. Não por acaso, apesar do movimento de reforma urbana durante a Assembleia Constituinte, somente em 2000 esse direito ganhou status constitucional como direito social.
Dessa forma, as favelas ficaram sob a vigilância dos mecanismos de segurança nacional da ditadura militar, bem como dos mecanismos de segurança pública de hoje.
Uma colega lembrou da tese de Boaventura de Sousa Santos sobre pluralismo jurídico a partir de seu estudo de campo no Rio de Janeiro. Foi oportuno, pois ele não divulgou, na época do estudo, o nome da Favela do Jacarezinho, que ele chamou de Pasárgada, exatamente por razões de segurança. Os principais líderes da Associação de Moradores do Jacarezinho se afastaram na época do golpe e só retornaram à ativa na década de 1970.

A moradia urbana era vista pela ditadura militar não como direito social (o que ocorreu, em nível constitucional, só com a emenda no 26 de 2000), mas como um problema de segurança e desenvolvimento, o que norteou os programas e instituições voltados para essa área, como o Banco Nacional da Habitação. A solução oficial para as favelas eram a criminalização e a erradicação.
Um dos casos foi a Favela Mata Sete, no bairro de Boa Viagem, em Recife. O Chefe da 2a seção do IV Exército, coronel Ney Armando de Mello Meziat (no relatório da CNV, é o autor número 316 de graves violações de direitos humanos), foi acusado em 1978 pelos próprios moradores de forçá-los a “abandonarem seus barracos” (JORNAL DO BRASIL. Coronel não responde à denúncia. Rio de Janeiro, 17 agosto 1978, p. 17). O deputado Roberto Freire (MDB/PE), denunciou no Congresso “as violências feitas pela madrugada, com homens armados e mascarados que derrubam casas”; Meziat era também “acusado de ser sócio de uma empresa imobiliária que quer afastar os moradores” (JORNAL DO BRASIL. Deputado denuncia Coronel. 16 agosto 1978, p. 8). A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife “assumiu a luta”  (JORNAL DO BRASIL. Igreja defende favelados. 15 de dezembro de 1978, Nacional, p. 8) em prol dos moradores. A favela acabou sendo expulsa pela Empresa de Urbanização do Recife (URB) e a Polícia Militar, mas na “Nova República”, em 1989, e boa parte de seus moradores criou a comunidade Entrapulso (CARVALHO, João. Entrapulso, uma minicidade entre os espigões de Boa Viagem. Jornal do Commercio. 22 de setembro de 2012)

O governo Geisel tentou formalizar a criminalização das favelas por meio de projeto (não aprovado) de alteração do Código Penal: “É imprescindível, diz o Ministro Armando Falcão, atender-se aos reclamos do Ministério do Interior, que trata de evitar favelas, tanto em terrenos públicos, como em particulares”; “a ação penal será pública e a ação policial, impeditiva da formação das novas favelas [...] o complemento da legislação penal à política do Plano Nacional de Habitação Popular, para a eliminação de todas as subabitações no território nacional” (ABRANCHES, Carlos A. Dunschee. Fim da indústria das favelas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 agosto 1975, p. 6).
Na atualidade, podem-se apontar a continuidade da criminalização das favelas e de seus moradores, e a presença do Estado não pelos serviços públicos, mas pelas forças de segurança. Um exemplo foram os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007: “no Complexo do Alemão, onde a Força de Segurança Pública [...] agiu na ocasião dos Jogos Pan-Americanos, existem 180 mil moradores, uma escola estadual, nenhum posto de saúde em funcionamento. Em apenas um dia de ação, 19 pessoas foram mortas 13 ficaram feridas” (FIDELES, Nina. As Forças Armadas e a ideologia na construção do inimigo. Revista Sem Terra, n. 41, set./out. 2007, p. 26). O morador de favela ocupa o lugar que era do subversivo. O alvo da segurança pública “é quem sobrou de uma sociedade de mercado, quem é inempregável.” (declaração do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ) na reportagem citada).
No Rio, repetiram-se as ocupações das Forças Armadas em favelas, em geral à revelia da previsão constitucional da garantia da lei e da ordem. Isso gerou o “‘crescimento expressivo do número de civis processados e julgados por tribunais militares, mais comumente por desacato [....]’, analisa Sandra Carvalho, diretora da Justiça Global.” (PIVA, Juliana dal. Justiça militar condena cidadãos sem direito de defesa. O Dia. Rio de Janeiro, 5 jul. 2015). 
Uma série de matérias do jornal O Dia com a ONG Justiça Global identificou “25 processos relativos ao período em que o Exército ocupou os complexos do Alemão e da Penha entre 2010 e 2012” (PIVA, idem). Todos levaram à condenação, o que mostra a relevância do que Rogério Dultra dos Santos trata (“A lógica do ‘inimigo interno” nas Forças Armadas e nas Polícias Militares e sua impermeabilidade aos direitos fundamentais: elementos para uma emenda à Constituição”, da bibliografia deste curso) sobre a necessidade de limitar os julgamentos de civis pela Justiça Militar.
Há outras questões ligadas à criminalização dos moradores de favelas, como a “guerra” ao tráfico e o genocídio da juventude negra e periférica (tema só aludido em texto da bibliografia, “A Doutrina de Segurança Nacional e a invisibilidade do massacre da população preta, pobre e periférica”, de Dario de Negreiros, Fábio Luís Franco e Rafael Schincariol), assunto da Comissão da Verdade das Mães de Maio.

O discurso oficial da erradicação de favelas hoje é menos forte, embora a prática continue, junto com a criminalização e a repressão. Em relação aos periódicos pesquisados, foram escolhidos o Jornal do Brasil, que fazia denúncias contra a ditadura, e, para as notícias deste século, o jornal O Dia, que fez matérias sobre justiça de transição, e a revista Sem Terra, simpática aos movimentos sociais.


Um adendo: não se trata, claro, de algo que tenha acabado depois que generais deixaram de usurpar o cargo de presidente da república. A militarização das políticas de segurança foi uma das diversas preocupações das Forças Armadas durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), além da exploração de energia nuclear e a limitação dos direitos dos povos indígenas.
Ao lado, trecho de Memória da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN), de 15 de janeiro de 1986 (ou seja, era o ano em que seriam eleitos os parlamentares com funções constituintes), sobre os debates entre os militares a respeito da vindoura ANC. 
Os documentos aqui referidos do CSN podem ser baixados do Projeto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional.
No início de 1986, organizaram-se reuniões no Estado-Maior do Exército, em Brasília, e na Escola de Guerra Naval, no Rio de Janeiro, sobre o assunto. Vejam que perceberam que polícia civil queria a unificação das polícias, "acabando com a figura da polícia militar fardada e calcada nos princípios militares da hierarquia a e da disciplina."

Com a ANC instalada, os militares passam a fazer lobby para que seus interesses prevaleçam no futuro texto constitucional. Isso incluía palestras da Secretaria-Geral do CSN; neste caso, em 23 de abril de 1987, à Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança.
Entre os tópicos, "Forças Armadas na função de Segurança Interna" e "Polícias Militares sob a tutela do Exército", que eram julgados essenciais.
Existem diversos documentos sobre isso, e um deles, ainda sobre a Comissão coordenada por Afonso Arinos, em 1986 (que elaborou um anteprojeto, entregue ao presidente da república José Sarney, que não foi adotado pelos constituintes), é bastante revelador.


Trata-se das "Sugestões das Forças Armadas": "Algumas ideias em curso, visando suprimir ou reduzir drasticamente as Polícias Militares e seu papel, não têm respaldo na realidade nacional e na nossa tradição."  E mais: "Desconhecer o que significam hoje para a segurança pública os quase 300.000 policiais militares é um risco gravíssimo".
O que mudou nesse discurso oficial? No Exame Periódico Universal sobre a situação dos direitos humanos nos membros da ONU, em 2012, foi aconselhado ao Estado brasileiro o fim da Polícia Militar, que está ligada tantas vezes a graves violações de direitos humanos como as execuções extrajudiciais.
Tendo em vista o resultado do lobby das Forças Armadas na ANC, a embaixadora do Brasil, Maria Nazareth Farani Azevêdo, pôde responder desta forma, meses depois, em 20 de setembro de 2012, como se o Estado brasileiro fosse "legalista":

Recommendation No. 60 [“Work towards abolishing the separate system of military police by implementing more effective measures to tie State funding to compliance with measures aimed at reducing the incidence of extrajudicial executions by the police”] cannot enjoy the support of Brazil, in light of the constitutional provision on the existence of civilian and military police forces.

Vejam que o Itamaraty nem mesmo diz qual era a recomendação neste comunicado. Talvez tenha havido certo embaraço em responder que, à luz da previsão constitucional "sobre a existência de forças policiais civis e militares", a recomendação de trabalhar para abolir a polícia militar não poderia ser apoiada pelo Estado brasileiro. A resposta nonsense do Estado brasileiro é de fato constrangedora, pois a Constituição não impede que se apresente emenda para alterá-la nesse ponto específico e, se o governo tivesse apresentado (ou apoiado) proposta de emenda constitucional para desmilitarizar a polícia, estaria cumprindo a recomendação.
Mais constrangedora ainda foi a curiosa leitura das recomendações feita pelo Conselho Nacional do Comando de Comandantes-Gerais das Polícias Militares, que entendeu que não se pediu o fim da PM, o que sugere um diminuto command of English.
Lembremos que se tratou da única recomendação recusada integralmente nessa ocasião pelo Estado brasileiro.
Desse vexame internacional de 2012 para cá, mais chacinas aconteceram, movimentos contra o genocídio da juventude negra cresceram. Leiam a nota pública das Mães de Maio sobre as ameaças feitas contra Comitê Contra o Genocídio da Juventude Preta, Pobre e Periférica; ela se refere ao ano de 2012, em que o Estado brasileiro reafirmou internacionalmente seu propósito de tratar o próprio povo como inimigo: "O ascenso da violência contra a população preta, sobretudo no ano de 2012, onde mais de cinco mil pessoas foram mortas (executadas), é reflexo do projeto Genocida do Estado brasileiro, que historicamente legou ao povo preto e periférico o abandono e a repressão".
Houve mais denúncias no estrangeiro. Vanessa Bárbara, em artigo para The New York Times, em 19 de fevereiro de 2014, "Pity Brazil's Military Police", escreveu que a desmilitarização, além de garantir mais direitos aos policiais (que, em maioria, a apoiam), seria uma forma de se distanciar da ditadura militar.
Por que nada se faz? Jaime A. Alves, em "Terror policial no Brasil",  de 14 de outubro de 2015, apresenta a mesma resposta das Mães de Maio: "Cada vez que um novo relatório sobre assassinatos por parte da polícia é divulgado, revela níveis surpreendentes sobre o número de mortes. Ninguém parece se importar, afinal a maioria das vítimas são negros, pobres e favelados."
Enquanto o Estado brasileiro se arma contra a própria população, são importadas armas israelenses de guerra para a PM do Rio de Janeiro (matéria do Brasil De Fato) e nove mil bombas são compradas contra eventuais "agitações sociais" nos Jogos Olímpicos, mantém-se atual o que Eduardo Prado escreveu em 1890, sob pseudônimo Frederico de S., no Faustos da Ditadura Militar no Brasil (republicado pela Martins Fontes em 2003), sobre o primeiro governo da República: "O governo militar não se arma contra o estrangeiro; o que ele pretende é fortificar-se contra o próprio povo brasileiro mantido em rigorosa sujeição."

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