O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 26 de abril de 2016

Desarquivando o Brasil CXXIV: Homenagem a Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte, em 27 de abril





No dia 27 de abril, a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, no Arquivo Histórico (Praça Coronel Fernando Prestes, 152, no Bom Retiro, às 19:00h, ao lado do metrô Tiradentes), homenageará Inês Etienne Romeu (1942-2015), que era a única sobrevivente da Casa da Morte, um dos centros de tortura e extermínio da ditadura militar.
Sua contribuição para o processo de justiça de transição no Brasil foi notável e, em 2009, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos na categoria de “Direito à memória e à verdade". Ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foi ela que levou o país a comprovar a existência e a descobrir a localização da Casa, em Petrópolis.

A defesa da ditadura significa apoiar, entre outras práticas criminosas, o estupro e a tortura. Inês Etienne Romeu, como outras presas políticas, foi torturada e estuprada. Ela tentou suicídio mais de uma vez. Como era a prática sistemática da ditadura militar, sua própria prisão foi ilegal, como foi destacado no capítulo 8, "Detenções ilegais e arbitrárias", do primeiro volume do Relatório da CNV:
33. É também ilustrativa a prisão de Inês Etienne Romeu, em 5 de maio de 1971, na cidade de São Paulo, por agentes comandados pelo delegado Sérgio Fleury, sem ordem judicial. Inês foi levada para o Rio de Janeiro, onde ficou detida em uma delegacia de polícia em Cascadura. Em razão de seu estado de saúde e de uma tentativa de suicídio em decorrência da tortura sofrida, foi encaminhada ao Hospital Carlos Chagas e, em seguida, internada no Hospital Central do Exército. No dia 8 de maio, foi conduzida, de carro, para a “Casa da Morte”, em Petrópolis, local onde enfrentou todos os tipos de tortura e onde permaneceu incomunicável por mais de três meses, até 11 de agosto de 1971. A prisão de Etienne Romeu somente foi oficializada em 7 de novembro desse ano, e ela permaneceu em unidade penitenciária regular até 29 de agosto de 1979.
Presa (sequestrada, na verdade) em maio, mas detida oficialmente apenas em novembro. Tais abusos de poder decorriam do caráter criminoso das forças de repressão: enquanto a prisão não era oficializada, tortura e/ou execuções extrajudiciais e/ou desaparecimento forçados eram praticados, e era como se o Estado brasileiro nada tivesse que ver (oficialmente, nada teria ocorrido...) com o "sumiço" súbito do cidadão ou da cidadã.
Ela somente não foi executada após os estupros e torturas porque fingiu que concordava em se tornar um agente infiltrado na esquerda. No capítulo 12 do primeiro volume do Relatório da CNV, sobre "Desaparecimentos forçados", podem-se ler algumas linhas de sua história. Ela somente foi libertada com a lei de anistia:
116. Quando a Lei de Anistia foi aprovada, em 1979, Inês havia cumprido oito anos de pena. Foi libertada em 29 de agosto de 1979. Uma semana depois, compareceu à sede do Conselho Federal da OAB, no Rio de Janeiro, para registrar sua denúncia. Na ocasião, listou nove nomes de desaparecidos sobre os quais teve notícia durante os três meses na Casa da Morte. Destes, seis teriam sido assassinados em Petrópolis: Carlos Alberto Soares de Freitas, Mariano Joaquim da Silva, Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, Heleny Ferreira Telles Guariba, Walter Ribeiro Novaes e Paulo de Tarso Celestino da Silva. Etienne citou ainda Ivan Mota Dias, José Raimundo da Costa e o deputado Rubens Paiva. A CNV não
conseguiu comprovar a passagem dos três últimos pela Casa da Morte.
117. Quase dez anos após sua prisão, em 1981, Inês reconheceu, com a ajuda de Sérgio Ferreira, primo de Carlos Alberto Soares de Freitas, o local da Casa da Morte, ao procurar o endereço relativo a um número de telefone que ouvira durante o cativeiro. O centro clandestino situava-se na rua Arthur Barbosa, no 668, em Petrópolis.
Ela reconheceu também Amílcar Lobo, um dos médicos torturadores, que atuou na Casa da Morte. Os impressionantes relatos que Inês Etienne entregou à OAB, inclusive a declaração de 1971 de que, se ela aparecesse morta em emboscada ou tiroteio, seria uma "armação" da ditadura, podem ser lidos nos anexos do capítulo 8 do relatório da CNV: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo8/Nota%2026%20-%2000092.000660_2013-31.pdf





A Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, que organiza esta homenagem, é uma das comissões da verdade em funcionamento no Brasil, assim como a de Petrópolis, município em que estavam a Casa da Morte e outros centros de extermínio, segundo as apurações publicadas no Relatório da Comissão da Verdade do Rio:
[Paulo] Malhães também admitiu que houve outros centros de tortura montados pelos militares na região serrana fluminense. “Nós não tínhamos só um em Petrópolis. Tínhamos outros, mais desviados”. Um deles seria uma casa em Itaipava: “É uma casa até bonita, na beira do rio (...) Não funcionou muito tempo não, o melhor é apagar isso do mapa”. (p. 305)
A CEV-Rio, com base em depoimentos, levanta ainda a possibilidade de um segundo centro clandestino ter sido montado na cidade de Petrópolis, em endereço desconhecido (p. 308).
A Comissão do Estado do Rio de Janeiro não logrou, no entanto, descobrir esses endereços, pelos quais, por sinal, Inês Etienne Romeu não passou. Talvez a Comissão de Petrópolis possa vir a fazê-lo.
O cartaz do evento do dia 27 destaca o fato de ela ter sido diretora do Arquivo Público do Estado de São Paulo, instituição que detém um papel importante no processo de recuperação da memória e da verdade, pois guarda o acervo do DEOPS/SP, e menciona a premiação que Inês recebeu em 2009. Podemos acrescentar que, postumamente, ems etembor de 2015, foi homenageada com a Medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro: https://www.youtube.com/watch?v=RSBveenUtpU
Ela foi tão importante para a memória e a verdade no Brasil que foi citada também no capítulo 15 do Relatório da CNV, sobre "Instituições e locais associados a graves violações de direitos humanos", como responsável pelo fim do centro de extermínio:
159. Deixar Inês Etienne sair com vida da casa teria sido um erro, na avaliação de oficiais
do CIE [Centro de Informações do Exército]. Segundo Marival Chaves,
[...] nós temos um caso clássico aqui na serra de Petrópolis, naquela Casa da Morte de Petrópolis, que foi Inês Etienne Romeu; mas depois eu ouvi um comentário a respeito, disse que foi uma das maiores mancadas que deram, foi deixar a Inês Etienne viva.
Comissão Nacional da Verdade: Quem teria dito isso?
Marival Chaves: Isso aí foi num contexto do pessoal que gerenciava o cárcere lá. Especificamente, eu não sei, essa informação circulou no CIE.
160. Paulo Malhães corroborou essa avaliação:
Paulo Malhães:A Inês Etienne saiu e derrubou a casa. Foi a Inês Etienne Romeu que derrubou a Casa de Petrópolis.
Comissão Nacional da Verdade: Foi o Cyro que soltou a Inês.
Paulo Malhães: Entendeu? Derrubou a casa porque ela reconheceu a casa.
Ela pagou um preço por sua contribuição ao Brasil. Um deles não foi investigado pela CNV, pois não era de sua competência temporal: em 2003, sofreu um atentado em sua casa. Sobreviveu, mas sua fala ficou prejudicada: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-04-28/ines-etienne-romeu-uma-historia-de-luta-contra-a-tortura.html
No entanto, sua voz continua, e ocasiões como esta são uma oportunidade importante para ouvi-la novamente.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Desarquivando o Brasil CXXIII: Impeachment, ou o trauma de 1964 não passou

Continuo a ler sobre o vexame mundial que a Câmara dos Deputados fez no último domingo, refletido em periódicos deste continente e de outros. A imprensa internacional, que não acompanha o usualmente baixo nível intelectual (e ético) das discussões do Legislativo brasileiro, certamente teve do que se admirar.
Para nós, brasileiros, que acompanhamos o que é apresentado como projetos de lei, vociferado em discursos, revirado em manobras regimentais, não havia surpresa nenhuma, apenas o horror multiplicado pelo fato de que se tratava de uma votação em que quase todos falariam.
Para mim, o que mais incomodou (o horror previsível é algo que se sofre já na antecipação) foi a retórica messiânica parlamentar, que consistiu não exatamente nas menções a deuses ou igrejas, e sim na ideia de que cada voto proferido salvava o país. Mais de um deputado citou o "feliz é a Nação cujo Deus é o Senhor", que a atual presidenta, com o mesmo estilo de discurso, havia repetido na campanha eleitoral passada e agora retornou contra ela. As referências religiosas talvez estejam antes a serviço dessa retórica do que de alguma religião específica (afinal, tantas vezes a religiosidade parlamentar é acusada de medir-se em cédulas, como se acusou na relação entre Eduardo Cunha e a Assembleia de Deus).
O parlamentar subia, aproveitando-se do reality show legislativo, não na condição de representante do povo brasileiro a resolver grave questão sobre a admissibilidade de um processo contra a presidenta da república, e sim na de salvador da pátria, ou dos médicos brasileiros, ou dos corretores, dos desempregados, da praça de que vinha o orador... O vexame era internacional, o reality show era nacional, mas os votos eram locais, daí o espetáculo de provincianismo exacerbado.
De vez em quando algum acadêmico publica invectivas contra Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, do estilo "não somos patrimonialistas, ou se somos, quem não é?"; creio, porém, que o velho historiador reconheceria o quinto capítulo desse livro na miríade de referências aos cônjuges, ascendentes e descendentes, amigos ("Quero agradecer também à minha esposa, à minha filha, que vêm me dando muita força; à minha mãe; à minha tia Eurides, que cuidou de mim quando pequeno; à minha tia Geo, que me ensinou a educação"), a escancarar a prevalência da lógica privada sobre a pública, como se o Parlamento se tornasse tão doméstico quanto a sala ou o quarto do espectador que, pela tevê, acompanhava o cordial espetáculo, e o lugar da política cedesse à estrutura do reality show.
Entre outras taras da família tradicional brasileira, note-se que poucos deputados (lembro apenas de Luiza Erundina e Jean Wyllys) denunciaram o sexismo da Câmara, que muitas deputadas foram tratadas de forma desdenhosa pelos colegas e que outra, com a gravidez avançada, foi vaiada por estar ausente, embora provavelmente fosse votar com a maioria.


Felipe Pacheco deu-se ao trabalho de recolher as palavras mais citadas nas justificativas de voto em duas nuvens, bem como reproduziu os discursos. A leitura, embora penosa, não deixa de informar. Os dois traços que mencionei dos discursos dos parlamentares, o messianismo e a cordialidade sergiobuarquiana, combinados às poucas luzes que possuem, geraram momentos de:
  • Confusão do impeachment com cirurgias de redesignação sexual por deputado investigado por tortura e doações eleitorais suspeitas ("formamos uma família no Brasil, que tanto esses bandidos querem destruir com propostas de que criança troque de sexo e aprenda sexo nas escolas, com 6 anos de idade");
  • Inconsistência de votar simultaneamente pela presidente e pelo impeachment ("pela querida e amada população da BR-429 — é o momento também de aqui externar gratidão à Ministra Dilma Rousseff, que tirou aquela população do sofrimento — , pelo meu partido e pela unificação das famílias, dos partidos, da política, do povo de Rondônia, da juventude e das mulheres, eu voto sim");
  • Profunda incoerência dos que votaram contra ou a favor do governo alegando que ele está fazendo coisas de que está, de fato, muito distante ("em defesa dos direitos indígenas e dos quilombolas, em defesa da reforma agrária, em defesa da agricultura familiar [...] eu sou contra esse golpe"; "contra a imposição desse partido de esquerda, que quer transformar este Brasil numa ditadura de esquerda"; "Em nome dos direitos da população LGBT, do povo negro exterminado nas periferias, dos trabalhadores da cultura, dos sem-teto, dos sem-terra, eu voto não ao golpe");
  • Distorções graves da história recente ("Há 11 anos, meu pai perdeu seu mandato porque disse a verdade, quando muitos aqui disseram que o que ele estava falando era mentira");
  • Desconexão lírica, alertando para o terrível risco de termos, depois de José Sarney, outro mau poeta no governo, se Michel Temer assumir ("eu digo: O verde de teumar, oh, Angra dos Reis! A luz de teu luar, oh, Angra dos Reis! O brilho do teu sol, oh, Angra dos Reis! Sim pelo impeachment da Dilma.);
  • Desconexão sintática e voto pelo suicídio ("sinto cheiro das mesmas aves de rapina de 54, que levaram Getúlio ao suicídio, mas a força do voto de Cascavel, do Oeste do Paraná, do Noroeste, dos Campos Gerais, dos meus eleitores, dos mais de 150 mil eleitores, do povo do Paraná e do Brasil, meu voto é sim"); 
  • Incoerência em votar para o Brasil ter "jeito" e dedicar o voto a marido/prefeito que seria preso no dia seguinte ("O meu voto é para dizer que o Brasil tem jeito, e o Prefeito de Montes Claros mostra isso para todos nós com a sua gestão."); em homenagear Eduardo Cunha, réu no Supremo Tribunal Federal, e votar sim "contra a corrupção" - crime que não é, aliás, o motivo para o processo de impeachment, e sim a "Abertura de créditos suplementares por decreto presidencial, sem autorização do Congresso Nacional" e a "Contratação ilegal de operações de crédito", ou seja, as pedaladas fiscais.


No entanto, não resolvi escrever esta nota por causa das confusões, distorções, desconexões e incoerências de diversos graus e naturezas dos excelentíssimos deputados, e sim por causa da ditadura militar. As vociferações de domingo e as reações subsequentes deixaram bem claro que o trauma de 1964 não passou.
Atos, discursos, notícias giraram em torno da ditadura, inclusive nas redes sociais: foram muito compartilhados vídeos de Amelinha Teles contando como ela e sua família foram torturadas por Brilhante Ustra, como este: https://vimeo.com/66483419). Destaco, entre os pronunciamentos, o da Associação Juízes para a Democracia:

terça-feira, 12 de abril de 2016

Transfobia e Literatura: Gisberta Salce e Alberto Pimenta



No dia 14 de abril, na Casa do Povo, em São Paulo (Rua Três Rios, 252), às 20h, ocorrerá uma mesa-redonda com o tema "Transfobia e Literatura", organizada por mim e Fabio Weintraub. A editora Chão da Feira lançou no fim de 2015 um volume que reúne dois livros recentes de Alberto Pimenta, "Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta", com poemas sobre a invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América, e "Indulgência Plenária", poema longo sobre o assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce na cidade do Porto.
A ativista transfeminista Daniela Andrade e o poeta e professor de literatura portuguesa Leonardo Gandolfi estarão lá, e eles certamente tornarão o evento muito interessante.
Neste ano, o assassinato completou uma década; tratou-se de um crime (e de um julgamento tão bárbaro quanto o crime) que chocou a sociedade portuguesa, e suscitou reações contrárias à transfobia, inclusive artísticas (além do livro de Pimenta, posso mencionar, de Armando Silva Carvalho, o Auto do Branco de Neve e os Sete Machões, que Gandolfi me enviou, e a peça Gisberta, de Eduardo Gaspar, peça que critiquei em outra nota).
Para o extinto K Jornal de Literatura, em outubro de 2007, escrevi uma breve resenha sobre Indulgência Plenária. Talvez seja útil para quem não conhece o livro.





“Extravagante e viajado estrangeiro daqui e de todo lugar”: Indulgência Plenária de Alberto Pimenta


Pádua Fernandes

Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa: &etc, 2007).[1] A capa da obra sugere um rasgão sob o quadro (parte de um tríptico de Emil Nolde), que mostra uma mulher de seios nus diante de três homens aparentemente embriagados.
Após todo um livro sobre um crime internacional (Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, resenhado em K 3), Pimenta voltou seus olhos para esse delito português (revelador do tratamento que a União Européia dedica aos “extracomunitários”) e escreveu uma elegia em cinco partes.[2] Como anterior, temos aqui um texto de intervenção. Bem escreveu Manuel de Freitas em resenha, "Não fosse um livro como este, com o seu raro poder de corrosão e de denúncia, e Gisberta Salce esperaria a sua segunda e definitiva morte – o esquecimento – tão indefesa como esteve perante o horror da primeira."[3]
Na primeira parte do poema, lemos o encontro do poeta com Gisberta em um mictório, mediado por um animal psicompopo (intermediário entre os vivos e os mortos), a mosca. A cirurgia de mudança de sexo é referida. A invocação anímica se dá em um ambiente não edificante – não se trata da emulação do modelo da elegia clássica, ao contrário de Antinous de Fernando Pessoa.
A segunda parte aborda a prostituição e apresenta o nome de Gisberta. A terceira faz-nos conhecer o sobrenome – que levará ao belo final – e menciona os assassinos, sem realmente os caracterizar: o autor não tenta descrever o crime e o julgamento. O poema não é dramático, e sim reflexivo, com meditações sobre o corpo e a finitude. Nisso, ele tem muito em comum com Imitação de Ovídio, o penúltimo livro de Pimenta (também resenhado em K 3).
A quarta parte alude à doença e à situação ilegal em Portugal. Na última, temos a retomada dos motivos anteriores – a mosca, a doença, a ilegalidade, o assassinato, num movimento cada vez mais intertextual: a voz de Pimenta busca dar lugar à de Gisberta – mas não a pode mais encontrar: “tira-me daqui não sei se foste tu que disseste/ não mexeste os lábios// nem sei se poderias continuar/ as tuas trocas/ os teus desejos/ entre os habitantes dos mundos invisíveis” (p. 54). Pimenta vai-se substituindo por outras vozes, o que inclui excertos de ópera (na página 49, o Judiciário é comparado aos cortesãos, segundo a furiosa ária de Rigoletto na ópera homônima de Verdi) e culmina no trecho final, que é a reprodução de um trecho do Otelo de Shakespeare: a Canção do Salgueiro (Salce, em italiano), que antecede o assassinato de Desdêmona. A quarta parte já terminava com o seu apelo desesperado para que Otelo somente a matasse no dia seguinte. Avançando no livro, e recuando na peça, optou-se não pelo grito, mas pela canção que a personagem entoa para silenciar o pressentimento da morte: “If I court moe women, you’ll couch with moe men.” E assim é, no silêncio de Pimenta, reencenada a morte de Gisberta.
Indulgência plenária realiza uma espécie de monumentalização da figura de Gisberta Salce, que se torna um “monumento aos tempos presentes” (p. 17), caído, portanto, e comparado a uma estátua de “braço decepado” em Toulouse, “de que nenhum funcionário sabe ou pode/ dizer nada” (p. 18). Gisberta se torna uma sacerdotisa da lua (a ária Casta diva, da ópera Norma, de Bellini, é citada na página 53), de quem se diz: “rodava o universo/ preso entre a Alavanca das tuas pernas” (p. 13).
Como de se esperar num livro de Pimenta, o poema é contrário ao Cristianismo (“Mas por que não tinhas tu um cão da raça trifauce/ que trespassasse as outras trindades”, p. 15), à hipocrisia (sobre Porto lemos: “uma Terra de melómanos/ com casas de putas e de música/ não perdoa”, p. 42) e ao fascismo (“mas não conhecias as muralhas/ que te encarceravam/ nem os graffiti suásticos/ que as cobriam”, p. 32).
No percurso do poema, do encontro de Pimenta com Gisberta até o silêncio de ambos, encontramos pedras-de-toque, como esta revisão de Platão: “Não tinhas uma direcção fixa/ porque isso são olhos dentro duma Cela/ Sempre a espreitar pelo buraco/ à procura da luz oficial que é autorizada a entrar” (p. 24). Dessa luz oficial foge um estrangeiro como Gisberta, estrangeira lá, mas também no Brasil – o que remete ao verso de Shakespeare citado no título. O preconceito racial, que seguiu Otelo (ele também é vítima na peça), no caso da brasileira foi substituído pelo sexual, que a tornou estrangeira em mais de um sentido e a levou à clandestinidade.
Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da morte física: “Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal cidade/ não há relação possível” (p. 48).


[1] Note-se a ironia do título: indulgência plenária é o nome de um perdão a penas temporais, uma vez que os pecados já foram remitidos, concedido pela Igreja Católica.
[2] A aproximação entre os dois livros foi feita pelo próprio poeta, que, em 26 de maio de 2007, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, leu ambos em um espetáculo a que deu o nome “Pequenos Estragos”. A leitura foi precedida de uma fala sobre “Poesia e violência”, por ele assim anunciada: “Alberto Pimenta é um daqueles poetas que levam muito a sério e agradecem a tolerância que Aristóteles lhes concede através da permissão de desvios da norma que ele normativamente fixa na Retórica e na Poética. Assim, considera-se um ‘tolerado’, no mesmíssimo sentido do termo administrativo com que eram designadas as prostitutas em Portugal até cerca de meados do século XX. Continuando o raciocínio, e da mesma maneira que não há mestres ou políticos iguais, separa os poetas em duas categorias: os tolerantes e os tolerados.
Na 1a Parte do serão, A.P. vai tratar o tema «Poesia e Violência», a partir da sua perspectiva de tolerado, portanto sem a mais mínima espécie de tolerância.” (http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=993)
[3] Casta morte. O Público, Lisboa, 16 de junho de 2007.