O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 21 de maio de 2016

Alberto Pimenta a toda voz




Quais poetas conseguiram se renovar depois dos setenta anos? Ou chegar a um novo clímax? E ainda a ponto de completarem oitenta? No Brasil, nenhum dos vivos pode reivindicar algo parecido. No entanto, é o que Alberto Pimenta (Porto, 1937) tem feito, sem holofotes, apenas com a dignidade de quem sobreviveu ao exílio, ao boicote, à ignorância, a estes tempos.
A intensidade participante de De nada (Lisboa: Boca, 2012), o experimentalismo de Autocataclismos (Lisboa: Pianola, 2014) revelavam que o poeta,d e fato, continua sem se acomodar e seguia incomodando. No entanto, eles não preparavam para de novo falo, a meia voz/ nove fabulo, o mea vox (Lisboa: Pianola, 2016), mais um ponto alto desta obra que chegou a dezenas de títulos.

O tom da meia voz, raro em Pimenta, predomina neste livro; Vários poemas adotam a forma de um diálogo, com travessão, mas são sempre solilóquios: ele conversa consigo, geralmente em voz baixa. Lemos em "Gong":
Passo
tão silenciosamente quanto posso.
Nem sempre
foi assim,
mas agora,
que ainda passo,
passo silenciosamente, tanto quanto posso.
Esse tom decorre de um desconforto do corpo: "Acorde ou não acorde,/ é o mesmo:/ no meio da noite/ viro-me na cama,/ decerto à procura de outro sonho,/ vindo do outro lado." ("O que é? O que é?). Mais do que isso, trata-se de um tempo do corpo e também do mundo. Ambos estão enredados neste livro e compõem a mesma paisagem desolada, como no poema de título irônico "Beau Monde":
Vejo as flores,
não sei o nome,
não figura nas pétalas,
vejo dentro da minha cabeça
onde passeia o aroma nocturno
de Verão,
mas já não o respiro.

O que neste momento respiro
pertence à temporada petrolífera.
Até os gatos se foram embora.

Tanto abandono
à minha volta.

O livro começa, apropriadamente, com um "Antelogium", dirigido a quem o livro é dedicado, Teresa Negrão, e a todo leitor, na verdade:

Deixo-me ir
na maré dos teus olhos
quando ela flui
diante de mim,
e espero.

Não sei que espero.
A espera é cega,
o apagamento provisório da luz,
o escuro,
o vazio,
nada.

Como sempre,
tudo chegará
na ocasião de chegar.
Sem dúvida,
tudo chegará:
o tempo
que em ti há-de continuar
a formar-se,
que em mim
irrevogavelmente,
está a acabar.
É na maré dos olhos do leitor que o poeta ainda pode existir: "Quando me dás do teu tempo/ dás-me um pouco de mim:/ o meu detém-se." Vejam que o apelo é totalmente diferente do de Baudelaire, "mon semblable, mon frère". Pimenta se dirige aos dessemelhantes, tendo em vista a posição dependente do escritor: é o leitor que poderá conferir-lhe o tempo e a sobrevida.

As referências clássicas, presentes desde sempre na obra deste tradutor de Marcial, não negam nem um pouco a contemporaneidade do livro. O título bilíngue não indica nenhuma reviravolta neoclássica neste livro. Sabemos que esse tipo de mudança estilística por vezes acontece, e até mesmo em autores que buscam refugiar-se do presente na certeza das formas do passado.
Não é o caso de Pimenta, em que o procedimento da tradução obedece à estratégia dos cruzamentos interculturais que abundam em sua obra, cujo ponto mais radical, neste sentido, é o conhecido Verdichtungen, (Viena: Edition Splitter, 1997), livro em que os poemas são escritos em várias línguas, com predominância do alemão. Um momento em que Pimenta esteve, talvez, mais próximo da obra de Emilio Villa.
Nesse espírito, um dos poemas do livro novo, "Folia" termina com a tradução que Pimenta faz de Das trunkene Lied, de Nietzsche, a propósito da Terceira Sinfonia de Mahler (que utiliza a voz humana, assim como a Segunda, a Quarta e a Oitava).
Pimenta revisita alguns dos temas que atravessam sua obra. No embate de décadas com a filosofia ocidental, ela, de Sócrates a Heidegger, é promovida a pó nos cantos da casa, no poema "Pó". Em razão da comparação com Heidegger, desta vez Sócrates é visto com mais bons olhos, no entanto, a limpeza da casa faz-se necessária: "Tenho os olhos cansados;/ vou lavá-los/ e aproveito/ para levar o papel/ de novo para a retrete."
Outro tema que lhe é caro, o dos refugiados, sempre associado à critica ao imperialismo, é retomado com  "Entre a Morte e o Norte", sobre os refugiados que tentam chegar clandestinamente na Europa, fugindo da guerra. Este poema, como outros, assume a forma de diálogo, mas a voz que pergunta (indicada com travessão e outro tipo de fonte para as letras) acaba sendo a que dá a última resposta:

Antes dos cânticos
vem muito a propósito
a leitura do livro de Job:
“O esplendor de ouro
Vem do Norte.”

Será que entendo bem?
Não terei ouvido mal?
Ou será que ouvi bem
e então entendi mal?

Não será “da morte”?


– Isso é depois,
primeiro é sempre o ouro.
Depois é que é o euro
e então a morte.
As novas regras de imigração da União Europeia, hostis ao Direito Humanitário, seguem essa diretriz.

Este livro termina com um "Postscriptum", que reverbera o primeiro poema:
Se eu amanhã
não entender a razão disto
que hoje escrevi,
isso prova
que meu tempo decai
como o das maçãs
que um dia
começam a apodrecer.

Nessa ocasião,
já quase Inverno,
não há Newton por baixo:
maçãs que caem de podres
não lhe interessam.

Se forem outros
que não entendem
isto que
decidi escrever,
isso prova
que é infinita
a variedade de apodrecimento
das maçãs, bem como
a do tempo dos outros.
Essa abertura sobre o declínio como uma lei universal, como a da gravidade (daí a referência a Newton), leva, surpreendentemente, não para a velhice, mas para a infância: relembra-se um episódio em que o menino é atingido por um saco de... maçãs. Mais desventuras dessa época, com risco de morte, um namoro infantil mal sucedido, até o final que, para os brasileiros, lembrará Manuel Bandeira e seu "Profundamente".
– Não há pai,
não há boné,
não há casa,
o gato
anda lá fora a brincar...
E os caixotes de lixo
estão a arder.
Que mais pode acontecer?

Ele responde, mas não revelo aqui o verso final. Bandeira não pensaria na imagem dos caixotes a arder, que sintetiza o mundo exterior, aqui imbricado com este corpo que, a meia voz, logra uma intensidade de denúncia e indignação que mil gritos de certos poetas contemporâneos não poderão jamais atingir.

2 comentários:

  1. Grande texto, Pádua. Aliás, está mais do que na hora do poeta ser publicado decentemente no Brasil. A edição da Chão da Feira ficou linda, o "Indulgência Plenária" é um primor, mas a cada leitura renovo minha curiosidade sobre outros títulos do Pimenta que nem mesmo em Portugal, quando lá vivia, consegui achar.

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    1. Obrigado, Gustavo. De fato, precisamos de mais edições de Pimenta no Brasil.

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